sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15189: Notas de leitura (762): “Morto em Combate”, de António Silveira, publicado na Caminho Policial, Editorial Caminho, 1990 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Novembro de 2014:

Queridos amigos,
Afinal, aquele morto em combate, que até merecia ser medalhado, foi vilmente abatido pelas costas, executado por um capitão com a consciência embotada. Releva a figura suprema da obra, o alferes Sobral, detetive, bravo contra-guerrilheiro e justiceiro.
Trata-se de um livro policial, o único que eu conheço, sobre a temática da guerra colonial. Tem um momento alto, a operação em que se realizará um ajuste de contas, preparado metodicamente a frio por Sobral. Fala-se na picada Zemba-Santa Eulália. E Calunga Samba. Estamos na terra dos Dengos.
A Casa da Mariquinhas acompanha o romance do principio ao fim, obsidiante.
Não sendo extraordinário, nem coisa parecida, é uma agradável surpresa, não vos posso esconder.

Um abraço do
Mário


Morto em combate: a literatura policial e a guerra colonial

Beja Santos

Tanto quanto me é dado saber, é a única incursão da literatura policial no contexto da guerra colonial. “Morto em Combate”, de António Silveira foi publicado na Caminho Policial, Editorial Caminho, 1990. Escreve-se na contracapa: “Único prémio literário do género em língua portuguesa, o já consagrado Prémio Caminho de Literatura Policial é atribuído de dois em dois anos é um livro inédito. Por vezes, o júri, pela qualidade da obra, recomenda outro livro para publicação. Foi o caso, com toda a justiça, de Morto em Combate. Com ele, António Silveira dá um contributo importante não só para o romance policial português mas também para a literatura tem como pano de fundo a guerra colonial. É doloroso, mas necessário, acrescentar que, quando o júri se reuniu e recomendou esta obra, António Silveira, vítima de acidente de viação, se encontrava em estado de coma. Não chegou a saber que o seu livro, o seu primeiro livro iria ser publicado”.

Estamos na terra dos Dembos, em 1970. O Capitão Miliciano João Soares, da CCAÇ 2509, andava na mata com dois pelotões. Pela primeira vez, ouvem-se versos do fado A casa da Mariquinhas, na sede da unidade, será uma constante de toda a obra. O operador de rádio comunica que a força está a ser atacada e há mortos, os oficiais vão aparecendo. A força atacada entretanto regressa. “As circunstâncias em que ocorreu o ataque eram simples. De volta da antiga Fazenda de Pedro Afonso um tiro de pistola acertara no Segundo-Sargento Simão, o quinto ou sexto da fila. O tiro atingiu a base da coluna vertebral. Na região dos tomates para ser mais exato. No dizer do Capitão Miliciano João Soares a bala de 9mm destroçara os ossos da coluna e da bacia. E isso o capitão devia saber, pois intercalava períodos de estudo de medicina com outros de serviço na tropa, em períodos de crise financeira mais aguda”. O autor vai-nos apresentando os diferentes alferes desta CCAÇ 2509. O capitão quer celeridade no processo do Simão, considera que o segundo sargento deve ter uma medalha a título póstumo. Vê-se que António Silveira não era grande apreciador dos oficiais superiores: “O tenente-coronel era um homem boçal, de óculos, com o cabelo à escovinha já todo grisalho”. E descreve a mesa dos oficiais, mesa única, comprida, com o comandante do batalhão à cabeceira: “De cada lado ficava o major, o de operações à esquerda, o segundo-comandante à direita, depois dois capitães, o da CCS e o da companhia de caçadores. O comandante da CCS era um capitão oriundo da classe de sargentos, a sua preocupação enquanto a reforma não chegasse era aumentar a sua coleção de selos e construir engenhocas eletrónicas. Logo a seguir vinha o tenente Portela da secretaria de batalhão, também do serviço geral, magro, quase esquelético, homem com uma certa cultura. Seguiam-se os alferes da CCS: Salgado das Transmissões, Martins do Material, Sousa da Administração, Coelho dos Sapadores, Faustino do Pelotão de Reconhecimento e de Informações. Medeiros, o padre-capelão, andava em missão de evangelização por algumas das outras companhias, normalmente a que estava numa zona habitada ou mesmo pelos cabarés de Luanda. Na outra cabeceira pontificava o tenente miliciano (ou amador como ele preferia) médico. Magro, brincalhão de resposta fácil. Ladeavam-no os alferes da CCAÇ 2509: Gama, Sobral, Silva e Nunes e o comandante do pelotão de morteiros de 81mm. Albuquerque, com os seus compridos bigodes, que tratava o comando do batalhão e da CCS com uma espécie de altivo distanciamento”.

O Alferes Sobral quer saber mais pormenores do ataque, começa a fazer as suas investigações. O Silva, que ia no patrulhamento onde morreu Simão, dá a sua versão. Sobral apercebe-se que há ali uma história montada, alguém preparou a cilada a Simão, prossegue os seus interrogatórios. Deixa de ter dúvidas, houve um crime. Sobral conversa com o Major Laranjo e o Tenente Portela, dá-lhes conta das suas cogitações:
- "Durante a caminhada para a antiga Fazenda de Pedro Afonso o nosso Capitão Soares escolheu local próprio para efetuar a emboscada que tinha planeado ao sargento. O local foi bem escolhido. A mata é densa. A antiga picada faz uma curva e desce para o ribeiro onde um pseudo-guerrilheiro se pode emboscar desenfiado do fogo das armas de tiro tenso. As outras não são utilizáveis. A companhia passou provavelmente as duas noites junto das ruínas da fazenda. Na manhã do terceiro dia regressaram pelo mesmo caminho. O risco nem era grande, de facto, a zona não é habitada, só sítio de passagem. Ao chegar ao local previamente escolhido o capitão fez a encenação de coxear. Passou o Cabo Rui para a frente e ele pôs-se atrás. O facto de ser o segundo permitiu que o cabo se distanciasse o suficiente para se emboscar e fazer o papel de atacante. Foi para isso que o básico serviu, para fazer de cortina para o resto da companhia. Assim um básico assustado seguia o vulto do seu capitão, para os lados não devia ver mais que uma mancha verde indistinta. Mas entre eles e o pelotão, à cautela, ainda estava o condutor. Também era para isso que ele lá estava”.

Sobral procura descobrir o motivo. Simão andava a fazer a conferência do armamento pouco antes de “morrer em combate”. Far-se-á uma nova conferência, tinham desaparecido armas, para Sobral é inequívoco que o capitão fizera a venda daquele armamento a fazendeiros para pagar dívidas dos bródios em Luanda. E como sabia que eram a fazendeiros? É Sobral quem responde: “Vê-se pelas armas em falta. Mauser para a caça. Walter para defesa pessoal, FBPs para terem nas fazendas. Nada de G3 para a guerra a sério. O Simão deve ter-se posto a fancos. O capitão contou-lhe umas histórias quaisquer, mais já não serviam. O Simão devia andar a chateá-lo para resolver a situação”.

A trama desenvolve-se. O Major Laranjo é colocado em Luanda. O capitão apercebe-se das diligências de Sobral, prepara-lhe também uma cilada. E vamos ter uma operação que é o ponto alto da obra, Sobral prepara os seus homens, previne-os de como é que o capitão irá procurar agir. Na sede do batalhão, em Zemba, ficam dois grupos de oficiais divididos: os oficiais superiores, que esperam que Soares limpe o sarampo a Sobral, e o grosso de oficiais milicianos, conhecedor da manobra que Sobral gizara para neutralizar Soares e os seus homens. E aqui o policial torna-se num policial de ação, é a vez do feitiço se voltar contra o feiticeiro, no Batalhão 3033 aguardam-se notícias no decorrer da operação. Feita justiça entre militares, começa a guerra a sério, com gente da UPA e do MPLA, Sobral dá provas de liderança e de bravura no combate. E tal como Soares fizera, dá uma versão dos acontecimentos irrebatível. Ficaram para trás os momentos de equívoco que se estabelecera em Zemba para saber qual tinha sido o oficial que morrera em combate. Como um justiceiro, Sobral põe condições aos oficiais superiores para a natureza do seu relatório: “Os senhores podem arquivar o relatório, esquecê-lo, não tocar mais no assunto. Pretendo apenas que o Sargento Simão fique ilibado de qualquer responsabilidade pela falta do material. Quanto à sua morte, nada podemos fazer para julgar os culpados, fica arrumado por natureza”. E tudo isto se passa sob a zoada da voz de Amália que vem dum rádio transistorizado:  
“… Pois dar de beber à dor é o melhor 
Já dizia a Mariquinhas…”.
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15167: Notas de leitura (761): “Tratado breve dos rios de Guiné do Cabo-Verde”, de André Álvares d’Almada (1594) (Mário Beja Santos)

2 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Valha-nos Deus, que histórias!

Abraço,

António Graça de Abreu

Hélder Valério disse...

É só um livro....
Com características de 'policial'.
O 'ambiente' é só para 'enquadrar.
Não há lugar para azedumes. Digo eu!
Se calhar, há! A letra é pequena demais, ... as páginas não estão bem, ... o apresentador não se expressa bem... enfim, um sem número de fortes razões podem, de facto, existir.

Hélder S.