Divagações e recordações de um dia de verão em Paços de Sousa
Sobra-me o tempo, faltam-me as palavras, na minha cabeça semi-adormecida haverá prazeres e desgostos sem comédias, farsas ou dramas, e há esta música que me embala e me transporta num vaivém que com suavidade, leveza e beleza me cobre o corpo e o espírito como um lençol de linho macio.
Continuarei a viver como quem cumpre um calendário com dias bons e dias maus, os antigos romanos, com mais sabedoria do que eu, tinham os dias fastos e os dias nefastos que eu somente sei distinguir depois de os viver. A alegria de viver está no contraste dos dias e no realce que os melhores momentos vividos atingem. A felicidade contínua não existe na terra e eu confesso que tenho dificuldade em imaginá-la para além da morte. A nostalgia do nada, a melancolia sem razão, o olhar perdido no tempo que passa, a forma de viver pelas sensações mais primárias, que recebemos através dos sentidos, o frio, o calor, a música, o cheiro da terra , a chuva.
Foi desta forma que vivi dois anos na Guiné, bastante indiferente à razão, à dor e ao perigo, ao ódio, ao amor. Os nossos cientistas em antropologia dizem que o nosso antepassado, o homo sapiens nasceu em África. Na África voltei a ser um animal mais bípede do que sábio, e a viver segundo essas emoções primordiais.
Tudo me convidava a viver dessa forma, desde as razões e sem-razões, que se combatiam em mim, por lá ter ido parar, ao paraíso bíblico, dessa terra de bolanhas, florestas, rios e mares, que tinha o cheiro forte e quente do início do mundo quando os nossos antepassados, por serem negros ou não terem pecados, andavam nus, sem frio ou calor, sem vergonha ou pudor.
A acrescentar a tudo isso, a água não era recomendável, podia causar cólera, diarreias e outras doenças, mas arranjava-se cerveja e whisky por bom preço. Um camarada que esteve na Guiné, no meu tempo e não muito longe de mim, contou-me este ano, que o capitão da companhia dele mandava retirar umas pequenas barras de chocolate das rações de combate e as punha à venda no bar dos soldados. Conheci-o lá, sem saber dessa vigarice, por outras razões nunca gostei dele, sei que ainda hoje consegue congregar uma grande parte da companhia em almoços anuais.
Será que se arrependeu e agora anda a devolver os chocolates roubados? Será que os portugueses gostam de ladrões bem-falantes?
Sobre os capitães que comandaram as duas companhias onde estive, não me pronuncio, um já morreu há muitos anos e o outro penso que era um homem honesto. Ainda hoje tenho raiva a esses ladrões, sobretudo graduados de várias patentes, que roubaram tanto alimento essencial às dietas dos soldados. A somar aos trabalhos, sacrifícios e perigos que diariamente sofriam, ainda tinham que ser roubados por quem os devia proteger, do pão necessário e essencial à vida.
Com comandantes destes, qualquer guerra estaria perdida pois um soldado mal alimentado é um soldado desmotivado. Penso que depois do 25 de Abril de 1974, com o fim da guerra, muitos desses heróis, com o registo criminal limpo e com uma folha de serviços gloriosa, arranjaram bons lugares no aparelho do estado e nas autarquias para continuarem a fazer o que bem sabiam, roubar e enganar o povo.
Para que ninguém diga que eu entre queixumes, lamurias e acusações só uso o blogue para lavar a alma do lixo que vai acumulando entre rugas pronunciadas que já não consegue disfarçar, vou enviar algumas fotos dum dia alegre e memorável de sol radioso, que passei, já há quase dois meses com alguns camaradas da Guiné e de outras guerras, num ambiente bucólico, debaixo de uma ramada, com boa comida, bom vinho e boa música popular portuguesa, bem cantada e tocada por camaradas e amigos.
O convívio passou-se na casa da mãe do camarada Vitorino, uma senhora idosa mas alegre e jovial. Tenho encontrado bons camaradas e amigos na Tabanca Grande. Na Tabanca de Matosinhos, o tipo de contacto mais físico, já que almoçamos frequentemente juntos proporciona conversas mais privadas e pessoais entre todos e uma amizade mais personalizada. Foi pelo Vitorino e outros camaradas músicos, que encontrei ocasionalmente num convívio em casa de um amigo comum, que tive conhecimento da Tabanca Pequena ONGD e fui convidado a entrar para sócio e frequentar os almoços semanais.
O Vitorino quase não perde um dos almoços da Tabanca. Eu que nem sempre posso ir (tenho outros amigos para almoçar no mesmo dia) gosto sempre de o encontrar lá. Sou muito amigo dele e ele dá-me a honra de ser também meu. Sou um entre os muitos amigos que ele tem, pois é consensual entre todos os que o conhecem, que ele consegue distribuir a sua simpatia natural e a amizade, entre muitos e consegue estar sempre bem disposto mesmo quando a vida lhe corre menos bem. A casa situada em Paços de Sousa, perto de Penafiel, está isolada numa zona de pinhal com vinha e horta contíguas.
Depois do almoço houve uma grande sessão de música popular portuguesa cantada e tocada pelo Vitorino e 9 ou 10 amigos, uns camaradas da Guiné, outros só amigos.
Dentre os amigos que pertencem à Tabanca Grande estava o José Teixeira, o Xico Allen, o João Rebola, o Barbosa, o coronel Coutinho Lima. O José Teixeira que se sabe distinguir tanto na prosa como na poesia, como muitos sabem, que tem por cá muitos amigos e muitos amigos na Guiné. Amizades obtidas e consolidadas nas deslocações que tem feito lá regularmente.
O Xico Allen que mais do que todos tem feito deslocações à Guiné, por terra, por ar e por mar, um camarada popular conhecido em todas as tabancas de Portugal e da Guiné. A haver cônsul da Guiné no Porto devia ser escolhido entre estes dois camaradas pois conhecem bem as realidades e a história recente da Guiné e sabem estabelecer laços de amizade entre os dois países.
O João Rebola, esse alentejano dum raio, que penso que já regressou à Guiné depois do susto que passou em Bissorã quando o inimigo emboscado o deixou passar a correr na motoreta dele.
O coronel Coutinho e Lima, um camarada sempre bem disposto, que eu não conhecia pessoalmente, um comandante famoso, que sem autorização do general Spínola ordenou e comandou a retirada de Guileje, essa praça forte mais flagelada do que todos os quartéis da Guiné, para poupar a vida dos homens sob o seu comando e a da população. Sobre isso escreveu um livro, que eu vi oferecer aos dois irmãos da casa. Disse-nos ainda que estava a escrever outro sobre as outras duas comissões que fez também na Guiné. Comandante ficamos a aguardar e que os ares de Vila Fria te dêem saúde e te inspirem!
Havia outros que só pertencem à Tabanca de Matosinhos, o Jorge Cruz, o Luís, o Ferreira, o Júlio, o Manuel Galvão que fizeram tropa na Guiné em variados lugares e diferentes especialidades. Todos estes camaradas penso que todos ou quase todos, já voltaram em visita à Guiné.
Seriamos cerca de 23 entre diferentes amigos, tendo ainda faltado alguns que não puderam ir.
Dentre os músicos, lembro-me agora de um deles que canta tão bem como toca, o Arménio, que se safou das guerras por ser mais novo do que a maioria presente.
Graças ao Vitorino e à sua família, passámos um dia muito agradável, com boa comida, bom vinho e boa música. Um grande dia só possível porque o Vitorino é um homem que tem um grande coração e gosta de organizar estas festas alargadas em que se celebra a amizade. Na amizade vivem-se as virtudes mais nobres entre os homens; a confiança, o respeito, a honestidade, a lealdade, a tolerância, a solidariedade.
"Dos sentimentos humanos, o menos egoísta o mais puro e desinteressado é a amizade"
Cícero
P.S.
- Agradeço ao Vitorino e ao irmão Emílio, bem como às simpáticas cozinheiras (a comida estava óptima) as esposas deles e à esposa do Carlos Teixeira, pelo grande convívio que nos proporcionaram, sem esquecer a animação feita pelos músicos.
- Agradeço ao Chico Allen pelas muitas fotos que me remeteu e pela boleia que me deu e ao João Rebola pelas fotos que me enviou também.
A todos um abraço.
Francisco Baptista
O Xico Allen em acção
Quase pronto a ser servido
João Rebola, Cor Coutinho e Lima, José Teixeira e Francisco Baptista
Vitorino, o nosso anfitrião, dedilhando a viola
Emílio, irmão do nosso camarada Vitorino, durante um pezinho de dança
A Matriarca, senhora D. Eva Salgado, com uns bonitos 88 anos, feitos há dias, mãe de 9 filhos, entre os quais o Vitorino e o Emílio.
Para ouvir "Videira que dá uvas azuis e brancas" na interpretação dos Musikotas, clicar aqui
Centro de operações
Francisco Baptista, António Barbosa e Xico Allen
António Barbosa ataca o tacho
Francisco Baptista e Coronel Coutinho e Lima
Fotos: © Xico Allen e João Rebola
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Nota do editor
Último poste da série de 22 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15142: Convívios (710): XVII Encontro do pessoal da CCAÇ 4544, levado a efeito no passado dia 13 de Setembro de 2015, em Alcobaça (António Agreira)
2 comentários:
Xico(s): isso é a Frátria do norte a operar!... Eu gosto distinguir, há a Pátria, a Mátria e a Frátria... Um alfabravo caloroso para todos os pequenos e grã-tabanqueiros. Luis
Caro Francisco
Fizeste muito bem "a ponte" entre os teus pensamentos mais 'carregados' e a alegria e até jovialidade desse convívio que as fotos revelam.
Gostei de ver.
Abraço
Hélder S.
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