terça-feira, 8 de março de 2016

Guiné 63/74 - P15833: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (41): Estação de Tomar, 28 de Julho de 1983 e Uma White cansada da guerra

1. Em mensagem do dia 5 de Março de 2016, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos mais uma das suas Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

41 - Estação de Tomar, 28 de Julho de 1983 – (quinta-feira)

Decorridos 10 anos e cinco meses, revejo hoje o local de embarque, rumo a Lisboa e à África desconhecida, de umas centenas de jovens condenados à guerra colonial, que no RI 15 desta cidade se constituíram como Batalhão. Sento-me numa das enormes esferas de pedra que ornamentam e ladeiam a escadaria de acesso a este terminal ferroviário e por mim passam, indiferentes, em correrias despreocupadas, magotes de jovens que se apressam a ir comprar bilhete para as suas viagens de fim-de-semana. Nos seus semblantes não pairam as nuvens que ensombravam os jovens de há dez anos atrás.

Foto 1 - Estação de Tomar [Foto tirada de gelasbrfotografias, com a devida vénia]

O facto de estar novamente aqui, hoje, faz-me sentir uma estranha serenidade. Vêm-me à memória, com impressionante nitidez, as imagens do meu embarque, aqui mesmo nesta gare. E posso imaginar também como teria sido a enorme confusão do embarque do meu Batalhão, a que eu não assisti por ter partido dois dias antes para Lisboa com a missão de inspeccionar e aceitar o navio que nos levaria para a Guiné. Imagino ainda o movimento das viaturas militares neste largo da estação, as gares a transbordar de jovens angustiados, as vozes de comando, os comboios apinhados a partir. Foi assim que os recebi no Cais da Rocha do Conde de Óbidos em Lisboa umas horas depois.

Para tranquilizar os pais, e num gesto atencioso, o Comandante do Batalhão, Ten-Cor Inf César de Andrade e Sousa, enviou-lhes uma longa carta pouco antes do embarque. Transcrevo algumas partes:

REGIMENTO DE INFANTARIA N.º 15 

Tomar, 27 de Fevereiro de 1973 

Exmo. Senhor, 

Desejaria ter escrito por meu punho e individualmente aos familiares mais próximos e muito particularmente aos Pais, de tantos quantos comigo vão partir para o Ultramar constituindo o Batalhão de Caçadores 4513. (...).

É meu único e firme propósito, dado a vossa qualidade de Pais, tentar minorar-lhes o desgosto da próxima separação do vosso filho, procurando com todos os meios ao meu alcance descansá-los em tudo e em tanto, quanto os meus préstimos possam alcançar e ser-lhes útil. (...). 

Primeiro que tudo e a partir deste preciso instante, podem ficar certos, que neste Batalhão tudo se fará para que o vosso filho se sinta dentro dele como numa sã e autêntica família, que a todo o custo procurará substituir os senhores – os seus próprios PAIS – (...). O vosso filho e meu soldado, será a meus olhos alguém que me diz muito e a quem oferecerei com todo o entusiasmo, o melhor que seja capaz de encontrar em mim, incluindo claro, a minha amizade, a que já tantos direitos tem. (...). 

Outro ponto que desejo focar, é que os Senhores não necessitarão, seja de quem for para saberem ou para que melhor se cuide do vosso filho, pois estarei sempre pronto a atendê-los e servi-los, logo que se me dirijam. Ele próprio lhes dirá como escrever-me para o Ultramar onde ficarei à vossa inteira e absoluta disposição. (...).

Para terminar desejo ainda informá-los que todos os Senhores Oficiais e Sargentos que comigo orientarão a Unidade e as suas Companhias estão animados dos mesmos propósitos, (...), que o vosso filho encontrará sempre à sua volta um grupo de graduados que muito o estimam, e que tudo vão fazer para o devolver ao vosso lar como um homem de carácter, são e brioso, e um SOLDADO que soube servir PORTUGAL honrando o nome que usa e o dos Pais que tão bem o souberam criar e educar. (...). 

Que aos Senhores e ao vosso filho tudo corra bem e que dentro em pouco tempo seja ele próprio que junto de vós comprove tanto quanto acabo de vos afirmar. 

Por Portugal, para todos nós e especialmente para vós, as maiores felicidades. 

O Comandante do Batalhão 
CÉSAR EMÍLIO BRAGA DE ANDRADE E SOUSA 
Tenente-Coronel de Infantaria 
SPM - 7088 

[O Ten-Cor Andrade e Sousa abandonaria a Guiné, por doença, logo no início da comissão, sendo substituído pelo Ten-Cor Carlos Alberto Simões Ramalheira].

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Agora tudo está calmo aqui no largo, nesta quentíssima tarde de Verão. Olho em redor e tudo parece estar rigorosamente na mesma, e está, mas tudo é diferente. O grande relógio no frontispício da estação é o mesmo, marca as mesmas horas, mas de um tempo novo. Na minha frente, no largo fronteiriço, o Monumento à Grande Guerra é o mesmo, mas o soldado que o encima já não é: antes, para os jovens de futuro incerto que passavam a seu lado ao dirigirem-se à Estação, era um marco de pesadelo por representar outras gerações que a guerra ceifou. Era um fantasma e uma premonição. Hoje, embora ainda corcovado sob o peso do equipamento, lembra apenas os que tombaram na Primeira Grande Guerra, sem qualquer outra conotação. Daqui a alguns anos quem se lembrará dos que tombaram na Guerra Colonial?

Foto 2 - Monumento aos Mortos da Primeira Grande Guerra (1914-18), junto à estação de Tomar. [Tirada de olhares.com, com a devida vénia].

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Histórias marginais (8): Uma White cansada da guerra

A imagem que sempre me ficou ligada à White, desde que um dia a vi à distância a deslizar de mansinho numa picada com um vulto em pé, foi a de um desfile numa parada com Hitler, hirto nela, de braço estendido. O nosso cérebro tem destas coisas. Ainda mais, um perfeito disparate, porque o Hitler não gostava muito de viaturas americanas. Mas associei-a sempre à Segunda Guerra Mundial, está claro. Porém, quando a conheci mais de perto sem que pudesse disfarçar as suas fraquezas, percebi que estava redondamente enganado. Afinal, devia ter sido numa White, e não a cavalo, que o D. Afonso Henriques em 1169 partiu a sua perna ao passar as portas de Badajoz na sua fuga precipitada. No que resultou ter ficado prisioneiro do seu genro D. Fernando II de Leão. O caso ficou conhecido por desastre de Badajoz, não pela derrota militar ou pela fractura da perna do nosso rei, mas sim porque lhe ficaram com a White, obrigando-o mais tarde a ir a cura de águas nas termas de Lafões sentado numa cadeira de rodas, diminuído e vexado aos sessenta anos de idade.

Isto vem a propósito de uma visita que ela, a White, nos fez em Nhala já muito derreada. Melhor: quem nos visitava eram duas fogosas Chaimites, essas sim, visitas importantes, cabendo-lhe a ela fazer a sua protecção, mas que acabaria por ser o alvo das atenções relegando para segundo plano o resto da Cavalaria e acompanhantes, nada menos que o Comandante do Batalhão Ten-Cor Carlos Ramalheira e o Capitão da CCAV 8350 António dos Santos Vieira que viria a comandar o destacamento de Colibuia e que um dia fora meu instrutor em Mafra com a alcunha de Ferro-bico, por qualquer coisa que tinha a ver com o seu nariz.

Tarde belíssima em Nhala, aproximam-se as visitas e eu corro a buscar a máquina fotográfica, pois não eram todos os dias que a Cavalaria nos visitava com todo o seu esplendor. Passo pelas duas Chaimites já paradas e avanço para ir cumprimentar o pessoal, mas fico de frente para a White que se aproxima na minha direcção. Eis senão quando, estupefacto, vejo sair um dos rodados da frente que, adiantando-se à White, vem oscilando, cai-não-cai, até se encostar mansamente a um poste providencial. A White ainda andou uns metros no encalço da roda rebelde, mas depois estacou e inclinou-se sobre ela numa reverência, parecendo dizer-lhe: “Deixa-te de amuos, rodinha... Volta para o teu lugar”. Fotografei tudo com a frieza possível, para mais tarde digerir o episódio insólito a que acabava de assistir. Muito mais tarde, quando de Espanha me chegaram os slides, não tive dúvidas de que tudo acontecera assim mesmo. A comprovar, deixo a reportagem a seguir.

Foto 3 – Nhala, 1974 – A White e a sua roda rebelde.

Foto 4 – Nhala, 1974 – Militares da Cavalaria (?) avaliam a delicada situação.

Foto 5 – Nhala, 1974 – Dois meninos de Nhala observam à distância a assembleia à volta da White.

Foto 6 – Nhala, 1974 – Enquanto se aguarda a evolução dos acontecimentos, o Alf Mil Murta faz uma pose junto de uma das Chaimites.

Foto 7 – Nhala, 1974 – As visitas, sem outro remédio, aguardam a reparação da White junto à messe de oficiais. Em primeiro plano na foto e fixando-se na objectiva, um militar que não recordo. Por trás dele olhando o chão, é o Alf Mil Tibério Barros de Nhala; no alpendre e de camuflado novo, o Cap. Santos Vieira, tendo à sua esquerda o Cap. Mil Brás Dias de Buba e o Alf Mil Carlos Lopes de Nhala; à direita na foto e de mãos nas ancas, o Cap. Mil Braga da Cruz tendo à sua direita, meio encoberto, o Comandante do BCAÇ 4513, Carlos Ramalheira. Em audiência, um soldado de Nhala com um problema qualquer.

Foto 8 – Nhala, 1974 – Finalmente, a partida dos camaradas da Cavalaria, escolta e ilustres visitas.

Foto 9 – Nhala, 1974 – Grupo de escolta que julgo ser da CCAÇ 18 de Aldeia Formosa. Alguns habitantes da tabanca assistem à partida, talvez decepcionados, creio, a avaliar pela mercadoria no chão que ficou sem boleia desta vez. Não se vislumbra a White nesta partida, mas não recordo se ficou em Nhala, ainda desconseguida de seguir viagem.

(continua)
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Nota do editor

Poste anterior de 1 de março de 2016 Guiné 63/74 - P15814: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (40): A moeda relíquia e as mães dos combatentes

2 comentários:

Carlos Vinhal disse...

Da minha passagem pela Infantaria, Artilharia e Engenharia, os oficiais mais "civilizados" eram sem dúvida os de Engenharia.
Uma vez circulávamos na Parada da EPE, eu e mais dois camaradas Cabos Milicianos, quando ouvimos insistentemente chamar Ó nossos cabos, Ó nossos cabos!!! Mau Maria, também aqui nos insultam? Combinámos nem sequer abrandar a passada. Instantes depois chega um oficial apressado junto de nós, hesita e pede-nos desculpa por nos ter confundido com os Cabos da Guarnição. Aí sim, pusemo-nos em sentido e cumprimentámos com uma palada o referido oficial. Afinal na Engenharia éramos respeitados.
Carlos Vinhal
Ex-1.º Cabo Miliciano
Licenciado em Atirador com Pós-Graduação em Minas e Armadilhas.

Carlos Vinhal disse...

No BAG 2 (mais tarde GAG 2), no Funchal, gravitava um Sargento-Ajudante que não deixava por mãos alheias contribuir para a fama de que a classe dos Sargentos do Quadro era a mais antipática e dura, principalmente para os fracos, subentenda-se Praças e Cabos Milicianos, já que até perante um Aspirante a Oficial Miliciano baixavam a bolinha.
Esse bandalho adorava chegar junto de qualquer um de nós e dizer algo do género: Ó nosso cabo, quando eu era cabo miliciano...
Ainda no BAG 2, cabia ao Cabo Miliciano, de Sargento de Dia, organizar a formatura do render da Parada, e apresentá-la ao Oficial de Dia. A formatura ficava virada para o Edifício do Comando, logo o "comandante" ficava de costas. Sua excelência o Ajudante, desceu a escadas, falou e disse - Ó nosso cabo, não sabe que tem de apresentar a formatura quando chega um superior?
A coisa ficou preta com o meu camarada, primeiro porque ele não era (só) cabo e segundo nem tinha visto aquela sinistra personagem descer as escadas, e não fosse a chegada providencial do oficial de dia para pôr água na fervura, aquele "cabo" não teria ido na 2731 para Angola mas talvez na 2732 para a Guiné.
Carlos Vinhal
Ex-1.º Cabo Miliciano