quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Guiné 61/74 - P18293: Historiografia da presença portuguesa em África (108): Origem da palavra Guiné na revista O Mundo Português, editada pela Agência Geral das Colónias (Mário Beja Santos)




1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Dezembro de 2017:

Queridos amigos,
O artigo do padre Dias está bem fundamentado dentro de um determinado quadro lógico em que ele extrapola Djennê para Guiné. Não é de excluir esta possibilidade, dezenas de outros investigadores fizeram outras abordagens, para sermos francos ninguém pode por as mãos no lume sobre a versão fidedigna.
Não resta sombra de dúvida que Azurara demarca os territórios dos Azenegues (o fim da Mauritânia) da Terra dos Negros e fala claramente na Guiné, mas nunca diz a origem da palavra. Aquele mundo opulento de Tungubutú e Djennê esteve permanentemente sujeito a conquistas e pilhagens e desmoronou-se definitivamente com a chegada dos europeus, que alteraram as rotas comerciais e tomaram conta do tráfico de escravos.

Um abraço do
Mário


Origem da palavra Guiné 

Beja Santos

Não é a primeira vez que aqui se faz referência à revista O Mundo Português, intitulada revista de cultura e propaganda, arte e literatura coloniais, editada pela Agência Geral das Colónias, e onde se encontra informação de muito interesse. No número de Dezembro de 1938 insere-se um artigo assinado pelo padre António Joaquim Dias sobre a origem da palavra Guiné. Convém informar previamente o leitor que ainda hoje não existe consenso, a despeito de muita investigação e posição categóricas sobre a proveniência da palavra. Tudo quanto este investigador escreve tem erudição e rigor, mostra-se convicto mas estudiosos seguintes não confirmaram os termos apodíticos que ele aqui utiliza. Mas é um belo artigo, como se segue:
“A partir do século XIII, duas povoações do Sudão Ocidental desfrutaram um grande predomínio comercial e político: Tungubutú ou Tombuctú e Djennê.
A primeira, fundada no século XII pelos Tuaregues, Berberes, postada no limite da zona fértil sudanesa, à entrada do Sara, e quase debruçada sobre o rio Níger, ocupava posição privilegiada. A segunda deve a fundação aos Saracolés, pelos anos de 1250. Ficava perto da margem esquerda do Bani, o grande afluente do Níger.
Na vida da velha Tungubutú sobressaem dois períodos notáveis, pelo esplendor político, comercial, demográfico, intelectual mesmo arquitetónico. Marca-os o domínio dos Mandingas (1325-1435) e dos Sôngoi (1493-1528). Semelhante esplendor atraiu numerosos mercadores estrangeiros, sobretudo Berberes, que ali vendiam tecidos da Europa e produtos vários. A Tungubutú afluíram letrados muçulmanos, artistas numerosos e tecelões. Judeus e sábios islamitas viviam em quarteirões reservados. Manuscritos árabes, provenientes do Norte de África eram disputados a peso de ouro. Abundavam cereais, leite, gado, manteiga e sal-gema das minas de Tegaza. Sobre o casario de tijolo cozido, elevava-se a mesquita magnífica, cuja construção demorara 40 anos.
Também Djennê possui pergaminhos valiosos. Durante mais de do0is séculos, desfrutou vida rica, independente e próspera. Este pequeno país estendia-se do Bani ao Debo e de Diafarabê à falésia de Bandiagara".

Azurara parece ignorar aqueles dois centros do Sudão Ocidental. Conhece um único reino da terra dos negros, Méli. Máli ou Méli é o nome dado pelos autores dados e cronistas sudaneses ora ao império Mandinga, ora a uma ou outra das suas sucessivas capitais. Tal império estendia-se do alto Níger até Siguiri.

Por meados do século XIV, o império de Méli absorvera muito outros reinos, nomeadamente o de Tungubutú. Djennê, porém, conseguira manter-se independente, sem embargo das tentativas dos Mandingas para a dominarem. O imperador Mandinga esteve em relações amistosas com os sultões brancos da África do Norte, caso de Marrocos. Méli conheceu então os seus dias felizes mas depois de os Tuaregues se reapossaram de Tungubutú, em 1435, viram-se na necessidade de pedir a proteção do rei português D. João II.

Azurara deve ter redigido os capítulos 77 e 78 da crónica da Guiné sobre informações antiquadas ou erróneas, possivelmente baseou-se nas informações do explorador João Fernandes.

Segundo Diogo Gomes, tivemos conhecimento do Sudão antes dos Descobrimentos haverem atingido do Cabo Branco, e anos antes da estadia de João Fernandes no Rio do Ouro (1444). Em 1441, Antão Gonçalves e Nuno Tristão obtiveram os primeiros indígenas da África Ocidental e deles as primeiras notícias a respeito da ignota África aquém-Bojador.

Após o descobrimento de Arguim, e mormente depois de construído o castelo daquela ilha, traficámos largamente com os mercadores sudaneses. Di-lo Cadamosto ao descrever detalhadamente o comércio ativo que ali fazíamos em 1455. Diogo Gomes corrobora as afirmações de Cadamosto relativamente ao comércio entre Arguim e Tunbugutú. Lendo-se o relato Esmeraldo de situ orbis, de Duarte Pacheco, parece poder deduzir-se ser Tunbugutú mais habitada de Berberes e de Mouros marroquinos do que de negros, sucedendo precisamente o contrário em Djennê. Pacheco diz esta última povoada de negros. Julgo poder asseverar que, anteriormente à nossa avançada para Sul do Golfe de Arguim, nossos descobridores e primeiros mercadores supunham Djennê o verdadeiro chão dos negros. Dali nos terão vindo os primeiros a Arguim, através do comércio a Tunbugutú ou mesmo a Djennê. Os próprios escravos obtidos, interrogados sobre o nome da sua pátria, dir-se-iam naturalmente oriundos de Djennê, que, entre nós ficou sendo, por antonomásia, a terra dos negros. E a estes demos então o nome de Djenéus, forma rapidamente transformada em guinéus. As formas atuais de Guiné e guinéus são já usadas por Azurara.

Depois do descobrimento do Senegal e de vermos os indígenas deste litoral Jalofo tão negros como os que recebíamos do Sudão em Arguim, estendemos aqueles o nome de Guinéus, perpetuado até nossos dias; por Guiné ficou sendo conhecida toda a terra dos negros desta zona africana.

O autor da crónica da Guiné, que muitas vezes chamara Mouros aos Berberes e aos avermelhados Tuaregues como aos negros, discrimina bem, desde certa data o chão dos Mouros, a Mauritânia, da terra dos negros. Ocupando-se da viagem de Dinis Dias ao chão guineense, assevera que ele “nunca quis amainar, até que passou a terra dos Mouros, e chegou à terra dos negros que são chamados guinéus”. Pela primeira vez, Azurara marca a separação geográfica clássica entre Berberes da Mauritânia e os negros, depois reproduzida por Cadamosto, por João de Barros, por Duarte Pacheco, por André Alvares de Almada e ainda outros.

João de Barros observa ter sido Djennê, outrora, mais célebre de que Tungubutú e que esta é a cidade principal das que marginam o rio Senegal. O cronista confunde o Senegal com o Níger, mas é bem explícito acerca da origem da palavra Guiné. Barros dá a entender que povos vários, indígenas, traficavam connosco em Arguim. Declina os nomes deles, todos ou quase todos ainda identificáveis e relacionados com os mercadores de Djennê.

Tudo isto prova, suficientemente, a identificação e assimilação de Djennê como sinónimo da terra dos negros, como base etimológica, histórca e geográfica da palavra Guiné, em uso desde o século XV.

Tungubutú e Djennê figuram ainda nos mapas de África. Tunbugutú constitui hoje apenas uma recordação do passado relativamente glorioso e brilhante, desfeito pelo tempo. Imponente outrora, guarda dessa imponência toda somente altíssima torre, de perto de 53 metros, que vigia, como velho e gigantesco cipreste, as ruínas mais ou menos majestosas, da vetusta cidade adormecida.

Sobre uma falésia, divisam-se também as ruínas impressionantes de Djennê, outrora capital de grande e próspero império, cujos palácios, desmantelados, nitidamente inspirados na arquitetura berbere, sonham com o esplendor de antanho.



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Nota do editor

Último poste da série de 16 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18218: Historiografia da presença portuguesa em África (107): Alfa Moló (c 1820-1881) e Mussá Moló (1846-1931), heróis de todos os fulas, tanto dos fulas-pretos (antigos servos) como dos fulas-forros (antigos senhores), uns e outros oprimidos pelos mandingas (Cherno Baldé, Bissau)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

BS está a ser um autêntico «azurara» para um dia ajudar a entender o que foi a Guerra do Ultramar.