sábado, 10 de fevereiro de 2018

Guiné 61/74 - P18306: Os nossos seres, saberes e lazeres (252): Em Bruxelas, para comemorar 40 anos de uma amizade (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 22 de Novembro de 2017:

Queridos amigos,
Conheço muita boa gente que tem uma imagem desconsoladora de Bruxelas. São sobretudo os funcionários que desembarcam na cidade ao fim da tarde e que no dia seguinte se encerram numa sala a conferenciar ou a ouvir outros a palestrar, regressando ao centro quando a luz se foi. E então dizem que se come bem mas não há nada praticamente para ver naquela cidade escura e que não dá sinais de ser muito acolhedora.
Tive a sorte de ser iniciado a conhecer lagos e jardins, museus extraordinários, artérias cheias de vida, com gente de 184 países. Bruxelas tem eventos culturais a um ritmo impressionante.
Vinha desta vez com o objetivo de rever e comparar a evolução da capital nos últimos 40 anos e exaltar uma nobre amizade. O que aqui se mostra é que tais objetivos foram alcançados.

Um abraço do
Mário


Em Bruxelas, para comemorar 40 anos de uma amizade (2) 

Beja Santos 

O viandante programou um dia azafamado, sai de Watermael-Boisfort em direção a Ixelles, vai a uma venda solidária de um empreendimento original e que goza de grande reputação por toda a Bélgica, dele se falará adiante. Faz todo o sentido, seguidamente, vadiar por Ixelles, uma comuna de larga superfície e que goza de um património imobiliário notável, e depois de matar a fome é imperativo visitar os locais que o deslumbraram, exatamente 40 anos atrás. Logo à saída de casa, este belo espetáculo das cerejeiras do Japão como incendiadas pelo Outono, todos os dias, enquanto o viandante aqui estiver, haverá um olhar de fascínio e ternura.



Só por pudor é que não se tiraram dezenas de imagens no interior desta venda solidária organizada pelos Compagnons Depanneurs, dedicam-se a prestar serviços a pessoas no limiar da pobreza. O viandante não sabia, mas um quinto da população belga vive em habitações com grandes problemas que vão da humidade à deterioração passando pelo excesso de pessoas vivendo em condições precárias. Trezentos companheiros prestam serviços de pintura, de arranjo do chão das casas, tratando de avarias em canalizações e eletricidade, facultando móveis utilitários, a sua consigna é de assegurar uma habitação decente e agradável a todos os que têm fracos rendimentos.
Os companheiros precisam de solidariedade, que não lhes é regateada, por todo o país. Naquele dia abriam as portas a uma venda solidária na Rue de la Glacière, ali se chegou para ver um edifício inteiro transformado numa caverna de Ali Babá: divisões com móveis e utensílios domésticos, divisões com eletrodomésticos, tapetes de todas as formas, tamanhos e feitios, quadros e mais adornos de paredes, divisões de bijuterias, roupas para todas as idades, material informático, cd’s, dvd’s, livros… O viandante tem limites severos de carga, ainda se assombrou com um espelho de parede, mas foi afeição de pouca dura, não resistiu a vários livros e alguns cd’s. Passeou-se por todos aqueles espaços, feliz por ver viçoso um projeto que visa a dignidade humana. Combateu o frio com uma boa sopa e uma saborosa sandes. E atirou-se ao trabalho, havia que calcorrear Ixelles, uma comuna cheia de história, um misto de Bairro Latino, Montparnasse e área residencial das classes médias, por ali pululam cafés com estudantada, uma livraria pejada de obras revolucionárias de todo o século XX, pequenos restaurantes, marcas concretas de que a comuna tem população vibrante.


O viandante gosta de fruir uma habitação cuidada ou renovada, contemplou esta que terá sido uma residência familiar, hoje deverá ter vários apartamentos, mas é um gosto ver tudo retocado, com as muitas bicicletas à porta. A cidade é plana e os ciclistas não desfalecem mesmo quando são confrontados com oceanos de carros que atravessam a cidade, há bicicletas com estranhíssimos atrelados onde vai a garotada. Bruxelas é outra coisa com o frémito deste tráfego a duas rodas.



Este é o edifício comunal, o Hotel de Ville, respira prosperidade, sempre teve, a comuna tem este privilégio de uma intensa vida intelectual, Bruxelas não dispõe de uma cidade universitária, os seus equipamentos estão dispersos, mas é aqui que os estudantes gostam de viver, misturados com as gentes de todas as categorias. O viandante delicia-se com esta arquitetura, faz uma pausa, toma um café e apanha um transporte para o centro da cidade.


Convenhamos que a imagem em si nada tem de fulgurante, merece uma explicação. Quando o viandante aqui arribou há 40 anos, em frente à Gare Central era como que um deserto, pontuava a um canto uma igreja, de nome Santa Maria Madalena, deu depois para aprender que é uma das mais antigas da cidade, que conheceu como todas acrescentos e reconstruções. Duranta a última fase de restauros, em meados de 1950, meteram-lhes estes vitrais, nalguma profusão. Foi um movimento artístico que as novas gerações hoje passam ao lado. Finda a II Guerra Mundial, ignorou-se o classicismo e o academismo, emergiu uma arquitetura de vanguarda que ocupou os espaços destruídos pela guerra, a pintura encontrou outros motivos, e o vitral também. Passadas estas décadas, aquilo que era modernidade para o viandante, ainda por cima um arrojo de inserir num edifício estruturalmente talhado nos séculos XV, XVI e XVII, é hoje um dado assente, já foi modernidade. E ainda bem que assim é.


Estamos num espaço icónico, daqui avista-se o Hotel de Ville de Bruxelas e a sua agulha majestosa, quem entra na Grand Place não resiste a contemplá-la demoradamente. Preferiu-se naquele dia registá-la de outro modo, de uma rua lateral, havia pressa em bater à porta do teatro La Monnaie, a mais bela casa de ópera e de música da cidade.


O viandante chegara aguado, esperançado em poder ver a ópera Lucio Silla, do jovem Mozart. Tem um certo historial afortunado de entradas nesta casa, e a preços altamente abordáveis. Recorda-se sempre que desembarcara na cidade aí pelas 17h, no dia seguinte estaria em reunião até ao fim da tarde, regressando a Lisboa no último avião. Arrumada a trouxa no hotel, rumou sem propósito definido até La Monnaie, eram 17h50 quando chegou à bilheteira para farejar se havia algum espetáculo. Sim, dentro de minutos começaria uma récita de Tristão e Isolda. Lamentavelmente, só havia um bilhete de 10 euros lá para o último andar, quase a tocar o teto. Não hesitou, saiu dali pela meia-noite, consolado com uma das obras-primas de Wagner, o pior foi encontrar um sítio para matar a fome, e não foi fácil. Vinha com esperança de mais um golpe de sorte, os bilhetes que restavam orçavam os 100 euros, foi pronta a desistência. Lucio Silla nem de longe nem de perto tem a genialidade de Don Giovanni, os estudiosos já anotaram as pequenas falhas do jovem Mozart, mas também não deixam de se surpreender como aquela criança pôs em música a profundidade das emoções humanas e como precisou psicologicamente bem a personalidade narcísica do Lucio Silla, o homem mais poderoso do seu tempo, mas a quem faltava o amor. Paciência, fica para a próxima, o viandante confia que não lhe faltem oportunidades de regressar a Bruxelas.


Serve de consolo à despedida registar o teto da grande entrada de La Monnaie, é um festival de cor e garridice naquele átrio que exibe majestade e convencionalismo. Chega de deambulação pelos lugares matriciais que o viandante tanto aprecia. É fim de tarde, vai embrenhar-se numa livraria de obras em segunda mão. Será afortunado, imagine-se que encontrou um livro de história de arte… escrito por Jorge Pais da Silva, que foi seu professor de História de Arte. Contente e feliz, regressa a penates, amanhã também será um dia grande – num dia curto de Outono.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18281: Os nossos seres, saberes e lazeres (251): Em Bruxelas, para comemorar 40 anos de uma amizade (1) (Mário Beja Santos)

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