Queridos amigos,
Permito-me destacar, em primeiro lugar, o notável contributo da Drª Lúcia Bayan, investigadora do povo Felupe, pelo documento que generosamente nos ofereceu, bem como as imagens que são da sua propriedade. Nunca ouvi qualquer referência a este monumento comemorativo do V Centenário do Descobrimento da Guiné, ainda mais em Chão Felupe. Não se pode deixar de ler o documento que a estudiosa elaborou, é um documento surpreendente. Bolama declina mas recebe de 30 para 31 de Maio de 1942 D. Duarte Nuno de Bragança que chegou num Clipper, seguirá depois para o Rio de Janeiro, irá casar-se com uma princesa brasileira.
Atenda-se, por último, aos pormenores do relatório sobre o mercado em tempo de guerra.
Um abraço do
Mário
Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (26)
Beja Santos
A mudança da capital para Bissau e os acontecimentos relacionados com a II Guerra Mundial merecem acento tónico nos relatórios da agência de Bissau, em 1941. Falando da filial de Bolama, escreve o gerente de Bissau:
“À data que fazemos este relatório ainda Bolama não nos enviou cópia do seu relatório semestral, motivo porque nenhuma análise se lhe pode fazer. A praça de Bolama continua no seu natural declínio, e este irá acentuar-se, em Setembro futuro, logo que passem para Bissau as direções dos serviços que ainda ali estão e o próprio governo da colónia. Tirando um ou dois estabelecimentos comerciais que se equilibram, o resto do comércio não vale nada. Vegeta e prejudica, talvez, os que estão equilibrados.
Passados os serviços do Tesouro para Bissau, não há razão para que não se reorganize o serviço da filial da Bolama, de modo a que esta deixa de ser o pesadíssimo encargo que é, há tanto ano, isto se não se considerar melhor que feche totalmente.
Não podemos deixar de registar a falta de educação, de disciplina e de correcção que tem manifestado o encarregado, senhor Baptista, para com a gerência geral, da qual, nunca recebeu o menor agrado pessoal. Verifica-se um propósito firme de magoar e desrespeitar, rasando insolência no modo de escrever e até no modo propositado de fazer com que as suas incorrecções sejam conhecidas dos nossos subordinados. É de notar que o senhor Baptista, incorrecto em extremo, no procedimento e correspondência, é perfeitamente subserviente – sem necessidade nenhuma de o ser – quando está na nossa frente e isto atribuímos à duplicidade de carácter”.
E regista-se a situação da praça, nada lisonjeira:
“Como consequência da guerra, parte das casas estrangeiras têm afrouxado os seus negócios e estão impossibilitadas de despertar. Por esta última razão, têm reduzido as suas compras de produtos. A casa alemã Ringel, impossibilitada de trabalhar, visto não poder importar nem exportar, fechou os estabelecimentos que tinha na colónia. Como é excepção, as casas sírias têm desenvolvido uma actividade notável em que devem ter ganho imenso dinheiro. Movimentam-se com uma considerável actividade, quanto à aquisição de produtos da colónia e têm-nos vendido bem. Encheram-se de mercadorias estrangeiras, enquanto puderam e depois de mercadorias nacionais, compradas ainda a bons preços. A maior parte desta mercadoria tem sido passada para o território francês que é paga por todo o preço, não se importando as casas sírias de receber o pagamento em francos senegaleses pois deles carecem para o giro, ou de casas próprias que têm no Senegal ou para o encontro das suas compras com outras casas sírias estabelecidas em território francês.
Não se têm estas firmas importado com as sanções inglesas, visto que estão a trabalhar de um modo que não foi afectado pela vigilância. A única maneira desta vigilância os poder prejudicar seria proibindo-lhes as importações. Mas estas vêm de intermediários que só entregam as mercadorias depois de, em seu nome, as levantarem da Alfândega. Se não nos enganarmos, é de esperar que, para não saírem mercadorias para o território francês, os ingleses lancem mão de uma medida de violência extrema, tal seja a de tolher toda a importação de fazendas, mesmo das nacionais, para esta colónia. Os negócios referentes à mancarra têm mostrado certa actividade e os preços têm subido bastante, embora haja grande incerteza na exportação e colocação do produto. No final, é provável que venha a ser a Casa Gouveia a ficar com a quase totalidade da produção.
Quanto a negócios de borracha, têm-se registado uma actividade fora de vulgar. Negócio quase abandonado, ainda há dois anos activou-se de tal modo que, no fim do ano, existia na colónia um depósito aproximado a 600 toneladas deste produto cuja exportação tem sido dificultada pelo regime de contingentes imposto pelos ingleses. Os negócios de arroz seguem sem alteração sensível, a não ser quanto aos preços, elevados a demasiada altura pelo sócio da Sociedade Arrozeira da Guiné, Sr. Mário Lima, cujas intenções não se percebem, ao registar-se a concorrência deslealíssima e desinteligente que vem fazendo à Sociedade Comercial Ultramarina e de que resulta, principalmente, a alta que prejudica todos.
Os negócios de coconote e azeite de palma seguem com certa fraqueza de preços, o que resulta das dificuldades de exportação. Neste negócio, como no da mancarra, deve ficar em campo a Casa Gouveia. Criou-se um organismo especial para fiscalização de preços, mas estes têm sofrido aumento verdadeiramente criminosos, sem a menor sanção exemplar, por parte da autoridade administrativa, positivamente falha de autoridade moral para agir. Uma vergonha.
Deste modo, torna-se incomportável, relativamente aos ordenados, a vida de quem por aqui moureja e aqueles, dentro em pouco serão insuficientes se é que o não são já, na maioria dos casos”.
Recorde-se que nenhumas operações militares atingiram esta região da África Ocidental. Neste ano de 1941, a suceder Carvalho Viegas apresentou-se em Bolama o major de artilharia Ricardo Vaz Monteiro. Traz a incumbência, sem mais tergiversações, transferir a sede do governo para Bissau. A decadência de Bolama acentua-se. Em termos de orgânica militar, a Guiné tinha um chefe de Estado Maior, agora surge uma nova figura, a do comandante militar da Guiné. Como vimos atrás, o transporte aéreo veio acompanhado de uma enorme expectativa e, entretanto, chega a radiodifusão.
Em 1942, um acontecimento inédito ocorre em Bolama: D. Duarte Nuno de Bragança, a caminho do Brasil, onde se vai consorciar com uma princesa brasileira, é acolhido nas instalações do BNU, com muita afabilidade e discrição. O ministério das Colónias não podia envolver-se directamente. Deram-se horas confidenciais para que o gerente da agência de Bissau e sua mulher fossem receber D. Duarte Nuno na casa do BNU em Bolama. D. Duarte Nuno viajava com D. Filipa de Bragança, sua irmã, e uma comitiva composta pelos condes de Almada e de Castro e o Dr. João do Amaral. A missão discreta era de os receber, alojar e alimentar durante a sua estadia em Bolama, oferecendo-lhes inteiramente a casa, na qual não ficaria mais ninguém.
O Clipper chegou na manhã de 30 de Maio. Escreve o gerente para Lisboa em 9 de Junho:
“Fomos a bordo receber os ilustres hóspedes e conduzi-los à casa do banco, transmitindo ao Senhor Dom Duarte Nuno as instruções que tínhamos quanto ao seu alojamento e recepção.
Convidou então o gerente desta agência, sua esposa e filha a não mais os deixarmos, acompanhando-os nas refeições.
Para que nada faltasse, tivemos que nos instalar numa das dependências do rés-do-chão, deixando totalmente livre aos hóspedes o primeiro andar.
O governo da colónia forneceu louças, roupas, talheres e criados e a Pan-Am emprestou camas.
Os ilustres hóspedes almoçaram e jantaram no dia 30 e tomaram o pequeno-almoço no dia 31.
No dia 30 estava projectada uma caçada no continente, que foi substituída por um passeio a Fulacunda.
No dia 31 de manhã cedo, o Senhor Dom Duarte Nuno solicitou-nos que déssemos um passeio por Bolama, a pé a sós com ele, o que fizemos mostrando-lhe toda a cidade. Partiu no mesmo dia, pelas 10h30, com destino ao Brasil.
Estamos totalmente convencidos que cumprimos a missão de que fomos encarregados, tão bem quando era possível cumprir-se e de modo a ter em pleno cumprimento as ordens que vieram para a colónia e a ficarem satisfeitas as pessoas que hospedámos. De todos ouvimos palavras de agradecimento pelo modo como tinham sido recebidos.
Em 2 do corrente, dirigido pessoalmente ao gerente desta agência, chegou um telegrama do Senhor Dom Duarte Nuno, expedido do Rio de Janeiro, dizendo: ‘Muitos gratos generosa hospitalidade enviamos lembranças sua mulher e filha’ Duarte.
O governo da colónia, alheio oficialmente à recepção do Senhor Dom Duarte Nuno pôs já Sua Excelência o Ministro das Colónias com o detalhe desejado e telegraficamente, a par de tudo o que se passou e como tudo correu e que, na verdade foi o melhor que se podia arranjar.
Não telegrafamos a pedir instruções a V. Exa. sobre todo este assunto, porque pensámos que tudo que nos foi solicitado foi aí conhecido de V. Exa. por intermédio do ministério das colónias.
A despesa que fizemos foi de 732$00, que a filial adiantou sob a nossa responsabilidade pessoal, e que vamos receber do governo da colónia, ao qual já prestámos a respectiva conta”.
(Continua)
D. Duarte Nuno de Bragança e a sua mulher
“Foi aqui que o primeiro Felupe ergueu a sua casa da tradição”
Estas são as palavras inscritas num marco implantado no chão Felupe para comemorar o V centenário da chegada dos portugueses à Guiné-Bissau.
Desde que, em 1446, Álvaro Fernandes desembarcou na praia de Varela e pela primeira vez contactou com os felupes, que estes são conhecidos pelo seu espírito guerreiro e aversão a qualquer tipo de poder externo. Nos primeiros séculos, eram temidos pelos seus ataques aos navios portugueses e pelas suas setas venenosas, aivadas nas palavras dos cronistas.
No século XVI, dizia Valentim Fernandes que os felupes tinham impedido a entrada dos portugueses na foz do rio Casamansa durante 25 anos. Uns séculos depois, em 1878, infligiram uma desastrosa derrota ao exército português, um episódio que ficou conhecido como “desastre de Bolol”. Na década seguinte, com as fronteiras delimitadas iniciam-se as campanhas de pacificação que se prolongam pelo século XX.
São várias as acções militares portuguesas efectuadas no chão felupe. René Pélissier, no 2.º volume da História da Guiné, portugueses e africanos na senegâmbia 1841-1936, descreve as várias campanhas, mostrando como foi difícil “pacificar” os felupes. O último grande confronto deveu-se ao desaparecimento do avião francês Potez-Salmson, em 30 de Junho de 1933. Este incidente, denominado Affaire Gaté, vai provocar, de 1933 a 1935, diversos e violentos confrontos entre portugueses e felupes.
Depois desta data, os felupes “sossegam”. Compreendendo que não serão capazes de impedir que outros, neste caso Portugal, dominem o seu chão, mudam de táctica adoptando “aquela resistência passiva mais difícil de vencer que a rebeldia”, como bem referiu Amadeu Nogueira (1947:716).
A mais brilhante acção dessa resistência passiva acontece quando a administração colonial decide comemorar o V centenário da chegada dos portugueses à Guiné-Bissau. Para isso, a administração colonial decide implantar um marco comemorativo no local onde, segundo o mito fundador dos felupes de Suzana, Emit-ai (Deus) deitou à terra um casal felupe, que construiu a primeira casa felupe e deu origem à primeira tabanca felupe, denominada Sabotul. Situada perto de Suzana, Sabotul terá sido destruída, provavelmente no século XIX, por Ambona, o herói felupe que fundou Suzana.
Conhecendo esta história, a administração colonial decidiu homenagear o mito felupe, quem sabe, provavelmente acreditando que a instalação do marco em Sabotul poderia ajudar a apaziguar a resistência felupe. Engano!
Mandou então arrebanhar um grupo de homens para desbravarem a floresta até ao local onde se teria situado Sabotul. Durante alguns dias os felupes abriram caminho pela mata até que um dia, cansados do trabalho e irredutíveis na sua resistência, disseram que já tinham chegado ao local e o marco foi aí instalado. Daquilo que se sabe as cerimónias decorreram pacificamente. No entanto, esta celebração foi mais uma derrota infligida pelos felupes, pois o marco não foi colocado em Sabotul, mas a alguns, muito poucos, quilómetros de distância, na estrada que liga Suzana ao porto de Buadje, onde os jovens suzanenses pescam deliciosas ostras.
Hoje, quase tapado pela floresta, o marco passa despercebido servindo apenas para provocar sorrisos nos felupes quando desperta a curiosidade de algum estrangeiro mais atento.
Lúcia Bayan
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Notas do editor
Poste anterior de 9 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18395: Notas de leitura (1047): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (25) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 12 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18406: Notas de leitura (1048): “A History of Postcolonial Lusophone Africa”, autor principal Patrick Chabal, com participações de David Birmingham, Joshua Forrest, Malyn Newitt, Gerhard Seibert e Elisa Silva Andrade, Hurst & Company; Londres, 2002 (2) (Mário Beja Santos)
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