quarta-feira, 14 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18413: Recortes de imprensa (93): A guerra e a censura: o caso de Armor Pires Mota (Sílvia Torres, "Diário de Coimbra", artigo de opinião, 9/3/2018)



1. Texto enviado pela nossa amiga e grã-tabanqueira Sílvia Torres, com data de ontem. Foi publicado no Diário de Coimbra de 9 de março de 2018, como artigo de opinião.

Crónicas de guerra "perigosas"
por Sílvia Torres

Há 57 anos, a Guerra do Ultramar dava os primeiros passos em Angola, estendendo-se à Guiné Portuguesa em 1963 e a Moçambique, no ano seguinte. Os meios de comunicação social portugueses noticiaram o conflito, na medida do possível, com o controlo severo e discreto da censura. A guerra era um tema tabu, sobre o qual pouco se podia contar e, menos ainda, mostrar.

O Diário de Coimbra, jornal considerado hostil ao Estado Novo, estava na lista dos mais vigiados. O "lápis azul" tinha especial atenção à imprensa "opositora" e de maior tiragem, sendo nestes casos mais rigoroso. Perante jornais de pequena difusão, com sede em meios rurais, o rigor diminuía e, por vezes, temas proibidos viam a luz do dia. O quinzenário Jornal da Bairrada, que ainda hoje se publica como semanário, beneficiou desta imperfeição da censura.

Entre 1964 e 1965, o Jornal da Bairrada publicou "crónicas de guerra", da autoria do bairradino e então alferes Armor Pires Mota (*) que cumpria parte do Serviço Militar Obrigatório na Guiné Portuguesa. Aerogramas transportavam as palavras da província ultramarina para a metrópole. Nenhuma das crónicas, que se confundem com páginas de um diário, sofreu qualquer corte por parte da censura. 

Em todas, como neste excerto, o alferes Mota mostrou aos leitores a guerra que conheceu, sem filtros: 

"(…) causa-me calafrios a morte daqueles dois moços que, ao entardecer, foram encontrados nus. Só lhes deixaram as meias enfiadas nos pés (…) Tinham o sexo mutilado, o nariz arrancado e os olhos, e, pelos rasgões espalhados pelo corpo, tudo leva a crer que lutaram corpo-a-corpo, quando se viram sós e sem munições. (…) Sinto-me em baixo. E estive mesmo tentado a pôr de parte a intenção de contar as guerras. Mas achei que devia trazer para a luz o que anda nas sombras: o mistério do sangue".

Já na metrópole, findas as obrigações militares, Armor Pires Mota reuniu em livro os textos que já tinham sido publicados no jornal bairradino. A obra Tarrafo – crónicas de um soldado na Guiné foi posta à venda na livraria Vieira da Cunha, em Aveiro (**). O que havia escapado à censura na aldeia fez soar o alarme do "lápis azul" na cidade. Consequentemente, o livro foi apreendido pela PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado). E, sabe-se agora graças aos arquivos que guardam documentos da época, a censura levou um valente "puxão de orelhas" por ter permitido a publicação de textos "perigosos" no Jornal da Bairrada.

Hoje, quase a chegar aos 80 anos, Armor Pires Mota não precisa de ler o que escreveu para recordar os dois anos passados na Guiné Portuguesa. Há histórias que a memória, por mais que se esforce, não consegue apagar.


Sílvia Torres (***)

[Fixação de texto, para efeitos de edição no blogue: LG]
_______________

Notas do editor:

Armor Pires Mota, Lisboa, 10/11/2010.
Foto: Luís Graça (2010)
(*) Armor Pires Mota [ex-alf mil acv, CCAV 488/BCAV 490, Bissau e Jumbembem, escritor, autor dos livros, entre outros, o "Tarrafo", 1965 (com edição facsimilada, com as anotações do "lapis azul" dos censores, em 2013); "Guiné, Sol e Sangue, 1968; "Cabo Donato, Pastor de Raparigas", 1991; "Estranha Noiva de Guerra, 1995: e a "Cubana que dançava flamenco", 2008,  alguns podendo ser adquiridos pela interneta, aqui].

(**) Vd. poste de 5 de novembro de 2011
Guiné 63/74 - P9000: Antologia (75): Tarrafo, crónica de guerra, de Armor Pires Mota, 1ª ed, 1965 (8): Ilha do Como, 15 de Março de 1964: E Deus desceu à guerra para a paz (Último episódio)...

(***) Último poste da série de 2 de março de 2018
Guiné 61/74 - P18372: Recortes de imprensa (92) : artigo de opinião de Sílvia Torres: A Guerra em 'copo meio cheio', "Diário de Coimbra", 23 de fevereiro de 2018

4 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Em pequenos jornais de província, em geral ligados à Igreja Católica, como o "Jornal da Bairrada" (Oliveira do Bairro) ou o "Alvorada" (Lourinhã), os censores (coronéis...) confiavam na "autocensura" e sobretudo na "lealdade" dos diretores...Claro que podia haver surpresas desagradáveis...

Antonio Rosinha disse...

Silvia Torres também ajuda a contar a história da guerra sem ter participado, porque a luta continua.

A semana passada testemunhou umas verdades, agora testemunha outras verdades.

Só com todas as verdades se faz a história, e o ferro ainda está bem quente para poder ser malhado.

Sobre a censura, hoje há muitíssimos testemunhos que os censores e a PIDE como em tudo que nos rodeia, havia corruptos com bastante abundância.

A região da bairrada, talvez por ser misturada com Coimbra dos estudantes e ponto de paragem Lisboa-Porto pelos leitões, era de gente muito politizada, verificava-se isso em Luanda, onde estavamos misturados milhares do minho a timor, como se fosse um quartel.

Hélder Valério disse...

Acho, sinto, que a Sílvia Torres à medida que se envolveu com estas coisas da "guerra de África" ficou sensibilizada para o tema.

É consolador ver que há gente mais nova que percebeu que há um manancial quase inesgotável de histórias à volta das "guerras de África".
Histórias dramáticas, mas também de solidariedade, de altruísmo, de valentia, de heroísmo.
Histórias de meninos que rapidamente se transformaram em homens.
Histórias de familiares que suportaram as ausências, que sofreram os afastamentos.

E, ao contrário do que se possa dizer, ou pensar, não está tudo dito!

Bom trabalho, Sílvia!

Anónimo disse...


Sílvia Torres
14 mar 2018 22:31

Luís: Eu é que agradeço: a partilha do texto no blogue, a sua simpatia e o convite para o Encontro Nacional (que não posso aceitar – calha no dia do batizado da minha sobrinha – mas que muito me honra).

Quanto à tese, ainda está longe da meta final. Não corre, apenas caminha! Mas, ainda que lentamente, atingirá a meta final! E quando lá chegar, informar-vos-ei, claro!

Interesso-me muito pelo tema Guerra do Ultramar e, no que depender de mim, não cairá no esquecimento: continuarei a falar, a ler e a escrever sobre a Guerra do Ultramar!