quinta-feira, 28 de junho de 2018

Guiné 61/74 - P18787: Memórias de Gabú (José Saúde) (68): As minhas memórias de Gabu: A antiga Nova Lamego (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série. 



Histórias e memórias de Gabu

A antiga Nova Lamego

Denominada então como Nova Lamego, sobretudo ao longo da guerra colonial, Gabu é uma região cujas fronteiras confinam a norte com o Senegal, a leste e a sul com as regiões de Tombali e a oeste com Bafatá.

Recorrendo a dados históricos contemplados na Wikipédia, enciclopédia livre, Gabu foi a capital do Império Kaabu, um reino Mandinga que existiu entre os anos de 1537 e 1867 e que se chamava Senegâmbia. Antes, fora uma província do Império Mali. No século XIX a etnia fula impôs, em força, a sua verdadeira supremacia na região e colocou ponto final no domínio de Kaabu.

Recorde-se, simultaneamente, que sendo Gabu a pátria do chão fula (79,6%), existe também a etnia mandiga (14,2%) que se espalha por toda a zona mas numa menor escala. Foi-me dado a oportunidade em conhecer alguns dos princípios éticos de uma população que prima pela honra de uma herança que assumem como um indeclinável direito.

Territorialmente Gabu possui uma área de 9.150 kms2 e tinha no ano de 2004 uma população que se estimava em 178.318 almas, sendo, por isso, considerada uma das maiores, senão a maior, das regiões do país. 

Como nota de rodapé, que entendo como credível, após a independência do país Gabu recuperou o seu nome tradicional existindo, atualmente, um pequeno núcleo urbano de inspiração colonial. 

Detentora de clima tropical, quente e húmido, a região de Gabu é composta por uma população em que a doutrina praticada aponta como alvo principal a religião muçulmana (77,1%).

Os usos e costumes das gentes de Gabu derrapam para primórdios éticos onde é visível uma hierarquia humana que não abdica do erário transmitido de gerações para gerações.

Redijo este tema sobre um “estágio” no qual me foi proporcionado observar algo mais ao longo da minha comissão em solo guineense, embora encurtada devido à Revolução de Abril de 1974, uma vez que fui um dos cerca de 40 mil militares dos três ramos das Forças Armadas – Exército, Força Aérea e Marinha – quando ali prestava serviço. Conheci, portanto, a guerra e a paz. 

Num trivial conhecimento com os nativos que muito me estimulou, gentes simples que viviam no interior de um adensado mato e entre as duas frentes da guerra, usufrui da possibilidade em conhecer alguns dos seus expeditos hábitos.

Assevero que um dos seus tradicionais costumes seculares era o fanado, uma festa tradicional nalgumas etnias indígenas, sendo comum deparámo-nos com grupos de jovens no mato que foram submetidos a um rito de passagem, um processo cultural nativo que passava, e passa, pela iniciação dos rapazes e das raparigas à idade adulta. 

A ideia possuída por todos nós sobre o fanado era de que se tratava de uma espécie de operação primária, feita por métodos obsoletos utilizados pelos homens e mulheres grandes aos jovens que se preparavam para despontar para a transição da puberdade para a vida sexual.

Sabíamos que a cerimónia era secreta e que os órgãos genitais, pénis e vagina, sofriam pequenos cortes focais, sendo a finalidade manter a tradição dos seus antepassados. A pequena cirurgia era dolorosa, segundo confessavam aqueles que conheceram o sofrimento.

Numa análise minuciosa feita ao conteúdo dessa velha tradição, existe o conhecimento que no caso dos rapazes a microcirurgia resume-se ao corte do prepúcio e no caso das raparigas trata-se de uma autêntica Mutilação Genital Feminina.

Sabe-se que a excisão do clítoris e dos grandes lábios nas meninas, era, e é, uma prática inaceitável à luz dos direitos humanos e como tal um crime penalizado pela lei dos Estados modernos.

Porém, a lei, concretamente neste caso, está longe de ser rigorosamente cumprida na Guiné-Bissau, face ao atavismo desta prática secular e ao secretismo das cerimónias que são realizadas em separado (rapazes e raparigas).

Por outro lado, as fanatecas (mulheres que fazem a excisão feminina) têm ainda, em termos simbólicos e materiais, um grande peso nas comunidades mais tradicionais (em geral islamizadas). É, no fundo, uma prática para a qual é necessário encontrar alternativas, embora saibamos que esses princípios são há muito alvos denunciados e combatidos pela Organização Mundial de Saúde.

Num périplo feito aos reflexos futuros que implicam intrinsecamente com o estado de saúde sexual reprodutiva das mulheres que são submetidas ao fanado tradicional, é normal que existam problemas numa fase adulta. 

O método, segundo dados recolhidos na altura em que por lá prestámos serviço, era, e é, rude, feito com ortodoxas facas de mato entre outros apetrechos caquéticos e as feridas curadas com mesinhos caseiros, asseguravam os antigos sofredores.

Camaradas, o texto que vos deixo aponta sobretudo para recordar Gabu em memórias históricas e trazer à estampa um tema que me deixava de facto perplexo quando me deparava com jovens em pleno mato a contas com o sofrimento do fanado.

Termino a narrativa passando ao lado de um cenário de guerra onde o cheiro a pólvora era atroz, mas com a infalibilidade sobre um fenómeno acerca das tradições na Guiné as quais permanecem irrefutáveis em populações que convivem com reações filantrópicas que o evoluir do tempo teima em preservar. 

Crianças de uma Guiné em guerra 


Madina - Crianças

Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: 

7 DE ABRIL DE 2017 > Guiné 61/74 - P17220: Memórias de Gabú (José Saúde) (67): As minhas memórias de Gabu: A morte de um camarada (José Saúde)

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