segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Guiné 61/74 - P19403: (Ex)citações (350): Ponto e contraponto: calão, crioulo, linguagem obscena, racismo, colonialismo e nacionalismo... (Cherno Baldé / António Rosinha)


Guiné- Bissau > Bissau > Maio de 1997 > "Eu e a minha mãe"

Foto (e legenda): © Cherno Baldé (2011). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Comentários ao poste P19396 (*)


(I) Cherno Baldé [, n. c. 1960 em Fajonquito, setor de Contuboel, região de Bafatá, estudou na Ucrânia e em Portugal, quadro superior na GB, gestor de projetos, vive em Bissau, nosso colaborador permanente, especialista em questões etnolinguísticas]

[...] Convém ter em conta que parte das expressões apresentadas [, no Pequeno Dicionário da Tabanca Grande,]  como sendo "crioulo",  podem ser invenções da tropa metropolitana e seus soldados indígenas,  e que os guineenses dito crioulos nunca ou quase nunca utilizavam por representar caricaturas de crioulo. 

Por exemplo,  "Partir mantenha, partir catota, cabaço, mama-firme", entre outras expressões, podiam representar formas impróprias e pouco respeitosas para com os nativos, vistos como inferiores e pouco dignos do respeito devido às pessoas civilizadas, nesse caso aos portugueses da metrópole.[...] 

O uso do calão ou do baixo calão pode ser normal e existe em todas as sociedades humanas. O que pode chocar é a sua utilização com caracter racista e/xenófobo como era o caso na Guiné durante a guerra. No inicio, até 1970, pareciam-nos expressões normais no convivência com a tropa, sobretudo porque a maioria era originária do Norte de Portugal, mas quando começaram a chegar as mulheres (as senhoras) brancas, esposas de alguns oficiais, constatamos com desagrado que todo o arsenal de obscenidades era só e unicamente reservado a nossa gente e de forma especial as nossas mulheres, sem distinção entre casadas e mulheres grandes. Isto não era só calão, era racismo e abuso do poder sobre os dominados, portanto, inaceitável. Se os militares não tivessem posto um ponto final na guerra em 74, com a nossa geração de jovens escolarizados e nacionalistas, certamente que não seria a mesma coisa. E penso que é isso que explica, entre outras coisas, a adesão do grupo de Domingos


(II) António Rosinha:

(i) beirão, tem mais de 115 referência no nosso blogue;

(ii) é um dos nossos 'mais velhos' e continua, ativo, a participar, com maior ou menor regularidade, no nosso blogue, como autor e comentador;

(iii) andou por Angola, nas décadas de 50/60/70, do século passado;

(iv) fez o serviço militar em Angola,  em 1959, sendo fur mil, em 1961/62;

(v) diz que foi 'colon' até 1974 e continua a considerar-se um impenitente 'reacionário' (sic);

(vi) 'retornado', andou por aí (, com passagem pelo Brasil, já sem ouro, nem pedras preciosas...), até ir conhecer a 'pátria de Cabral', a Guiné-Bissau, onde foi 'cooperante', tendo trabalhado largos anos (1987/93) como topógrafo da TECNIL, a empresa que abriu todas ou quase todas as estradas que conhecemos na Guiné, antes e depois da 'independência';

(vii) o seu patrão, o dono da TECNIL, era o velho africanista Ramiro Sobral;

(viii) é colunista do nosso blogue com a série 'Caderno de notas de um mais velho'';

(ix) pelo seu bom senso, sabedoria, sensibilidade, perspicácia, cultura e memória africanistas, é merecedor do apreço e elogio de muitos camaradas nossos, é profundamente estimado e respeitado na nossa Tabanca Grande, fazendo gala de ser 'politicamente incorreto' e de 'chamar os bois pelos cornos';

(x) ao Antº Rosinha poderá aplicar-se o provérbio africano, há tempos aqui sabiamente citado pelo Cherno Baldé, o "menino e moço de Fajonquito": "Aquilo que uma criança consegue ver de longe, empoleirado em cima de um poilão, o velho já o sabia, sentado em baixo da árvore a fumar o seu cachimbo". ]



Não concordo com a ideia do Cherno sobre os motivos de adesão à luta e ao nacionalismo de figuras como Domingos Ramos e Amílcar Cabral, coisas como a falta de respeito pelas mulheres grandes e as mulheres africanas.

A juventude de Domingos Ramos e de Amílcar nunca foi semelhante à vida de "quartel" que o Cherno foi obrigado a conhecer e a viver, não só porque só havia quartéis nas capitais, e a tropa europeia era praticamente reduzida a alguns sargentos e oficiais, e alguns cabos, isto, antes da guerra (1961).

Essa realidade que Cherno conheceu, não existia em 1959, quando Domingos Ramos fez a sua recruta, frequentando o 1º CSM - Curso de Sargentos Milicianos.

Nesse tempo, os mestiços ou brancos de 2ª ou pretos escolarizados (Domingos Ramos), já tinham outros motivos para as suas independências que iam muito além de qualquer descriminação racial, ou complexos de superioridade da parte do branco.

No caso das colónias portuguesas já havia uma convicção absolutamente formada na cabeça dos estudantes da simples 4ªa classe, preto ou branco de 2ª  que eles estavam muito mais preparados para tomar conta da sua terra, do que os «atrasadinhos» que vinham da metrópole. 

Cherno, no minha recruta e CSM (Huambo 1959),  éramos 30 no meu pelotão, dividamos, 10, como eu da metrópole, 10 eram "Domingos Ramos", e outros 10 Amílcares à mistura com dois ou três brancos de 2ª

Cherno, aí já eramos nós,  os dez da metrópole,  as grandes vítimas discriminadas, que nem sabíamos jogar à bola, que vínhamos abanar a árvore das patacas, minhotas com pernas peludas, ainda se fôssemos ingleses ou franceses...e outro mimos  que nem menciono, porque seria uma ladainha que nunca mais acabava.

Até que veio o 15 de Março de 1961, "para Angola e em força" do Salazar, e dos "Ramos" e dos "Amílcares", muito pouquinhos se passaram, e foi ao lado de muitos que eu fiz a minha guerra de 13 anos em Angola.

Embora a realidade de Angola e Guiné fosse diferente, sabemos que o MPLA e PAIGC foram irmãos, de maneira que facilmente encontro semelhanças.

Cherno, a vida que conheceste (tropa e guerra) não tem a mínima semelhança com o sonolência que se passava com os velhos chefes de posto, velhos comerciantes, velhos régulos, a rotina dos fanados e cultura do arroz, tudo ao ritmo de travessias de jangada, passa quando passa,  uma morte lenta, em que além do chefe de posto e do isolado comerciante, muitas tabancas não viam mais qualquer branco ou qualquer alteração da rotina, durante meses, e na própria capital da "colónia" era ao domingo o Benfica x Sporting a maior movimentação de massas.

Claro que houve e há "doutrinações" que podem ser aproveitadas para vários fins, mas não no caso de Domingos Ramos ou  do  Amílcar, creio eu.  (**)

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Nota do editor:


9 comentários:

Luís Graça disse...

Ainda em relação à observação do Cherno sobre uma eventual degradação das relações das NT com a população local, a partir de 1970... É a perceção dele, a partir dos seus 10 anos...

Eu não sou, nem posso nem quero ser "advogado" das NT: não estou sequer "mandatado" para isso... E nunca seria o melhor advogado desta causa...

Em todo o caso, eu andei na Guiné, fardado, usando uma G3, exerci funções de graduado num companhia independente, que esteve em intervenção no setor L1 (Bambadinca), de julho de 1969 a março de 1971... Não me posso, pois, pôr de fora: em suma, fiz parte do exército português, cumpri o melhor que soube e pude no exercício das minh.as funções... E até tive, no final da comissão, um louvor dado pelo comandante do BART 2917, um dos "semhores da guerra" que eu e os meus camaradas da CCAÇ 12 servimos... Esse loyvor realça sobretudo as minhas qualidades humanas na relação com colegas, com subordinados e com superiores hierárquicos e sobretudo (, e é isso de que me orgulho mais...) com as populações locais...

Nunca fiz isso uso disso, está averbado na minha caderneta, até a escondi, por pudor... Só há tempos me lembrei de reproduzir no blogue... De qualquer modo, não será muito diferente de tantos louvores atribluídos a militares portugueses (incluindo cabo-verdianos e guineenses...).

O que é que eu quero demonstrar ? No tempo do Spínola (1968-1973), valorizavam-se tanto as competências técnicas e operacionais como as compêtências sociais e humanas... A correção das NT no trato com as populações (e com a administração civil) era uma "regra de ouro"... Alguns de nós foram mais longe do que a simples correção: estou-me a lembrar dos médicos, dos enfermeiros, dos professores ("nas horas vagas"), dos capelães, das equipas dos reordenamentos, etc.

Não sei se foi a correção,como princípio básico do relacionamemnto com as populações locais, foi respeitada em todo o sítio e a toda hora... Certamemte que não, houve abusos, mas também punições... Eu, da mimha parte, procurei ser sempre correto com todos/todas... Não sei como é que as coisas se passaram no tempo do gen Schulz... Não estava lá, não posso testemunhar... Os camaradas dessa época também já aqui deixaram bastas versões sobre o tema... E as fotos que tirámos, com a população, de 1961 a 1974, não podem trair a verdade: não éramos um "exército de ocupação"... Recorde-se, por exemplo, que o Spínola deu ordem para não bombardear aIlhado Como... Sntomático... Nessa altura, já não se tratava de ganhar palmos de terra, mas as populações...

Nada disso não impediu que a guerra, que eu fiz, que nós fizemos, tenha atingido, de parte a parte, um grau elevado de violência... E as desgraçadas das populações, de um lado e do outro, sofreram tanto ou mais do que os combatentes, dos fulas aos balantas, dos biafadas aos manjacos... Isso não podemos ingorar, escamotera, esquecer... LG

PS - Sempre houve, desde o início, "esposas" de militares no TO da Guiné, nos três setores (Norte, Leste e sul), nos sítios onde havia um mínímo de conforto e segurança... Por exemplo, São Domingos, Teixeira Pinto, Mansoa, Bambadinca, Bafatá, Nova Lamego, Bolama, Bissau... Não vejo porque é que a tropa passou a ser mais grosseira com as mulheres, solteiras ou casadas, da população local...

Anónimo disse...

Caro amigo Luis Graça,

Acho exagerada a importância que deu ao meu comentário sobre o pretenso "Dicionário" apresentado no Post, baseado numa experiência diminuta e bem localizada que não permite uma generalização e avaliação colectiva a nivel de todo o território e em relação a todo o contigente expedicionário no CTIG e, muito menos se trata de julgar o comportamento de um ou outro militar em particular.

O mais velho Rosinha tem toda a razão, foram tempos diferentes e com motivações distintas.

As minhas afirmações nasceram de convicções bem antigas, formadas da observação in loco e da formação/informação que fui colhendo ainda na fase de criança.

Aos 9/10 anos já tinha dentro da minha cabeça de criança 3 verdades sobre a tropa metropolitana:

1. São muito saudáveis, muito mais saudáveis que os nossos, isto porque nunca adoeciam (pensava eu) e não estava muito longe da verdade.

2. São muito atrevidos e mal educados, pois não se coibiam de agarrar em público uma Badjuda, apalpando-a os seios e as nadégas, coisa impensável, na altura, entre os nativos. Quando questionávamos os mais velhos, a resposta que obtinhamos era que "na sua terra, os brancos não sabem o que é a vergonha".

3. A vida que levavam no quartel, comparada com a dos nossos rapazes e dos homens em geral, era muito boa e com muitas facilidades, pois comiam bem e não faziam puto, exceptuando aqueles passeios alternados no mato e donde regressavam cansados, é verdade, mas sempre de mãos vazias.

Estas minhas " verdades" começam a cair por terra, quando chegam as mulheres brancas, e constatamos que ou os mais velhos nos mentiram ou então não sabiam muita coisa da vida social dos brancos, porque o comportamento e as atitudes eram totalmente diferentes. Mesmo sendo crianças, as mudanças de atitude eram bem visiveis.

Em face desta experiencia, a única conclusão lógica era que estavámos perante um comportamento anormal e negativo, reservado as mulheres nativas e que não era extensivo a todas as mulheres.

Na altura não sabia, mas hoje sei que a tais atitudes chamamos de "Racismo", simples como isso. Quem fez e quem não fez, na altura, interessa pouco para o caso em concreto. Não podemos e nem devemos tentar tapar o sol com as mãos.

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé




Valdemar Silva disse...

Realmente, o Cherno Baldé tem razão.
Por cá, quando da Recruta ou da Especialidade em Vendas Novas, Caldas da Raínha, Entroncamento , Águeda, Figueira da Foz e tantas outras localidades, nunca por nunca apalpávamos as mamas das raparigas ou tirávamos fotografias agarrados a nossa lavadeira, em público.

Valdemar Queiroz

Luís Graça disse...

É deliciosa a síntese que o Cherno faz sobre as 3 verdades sobre os "tugas" que estavam na cabeça de uma criança de 9/10 anos, pelo menos em Fajonquito... Ele só não nos disse quando é que começaram a chegar a Fajonquito as "senhoras brancas"...

Quanto ao resto, estamos de acordo: "o racismo é racismo" e "não tem desculpa"... E é preciso continuar a combatê-lo...

Aquele abraço, Luís

PS1 - Cherno, valorizo muito o que disseste sobre pseudo-expressões em crioulo, usados pela tropa, como "partir": partir isto, partir aquilo... Infelizmente, os militares portugueses nâp sabiam crioulo nem muito menos fula... Os meus soldados não falavam português... Em suma, tivemos que fazer um esforço conjunto para nos "entendermos", desde a recruta, a especicalidade e a IAO até ao final da comissão... Está aí o Valdemar,. que não me deixa mentir... Estivemos juntos em Contuboel, entre junho e julho de 1969... Com atropelos na gramática ?... Ah!, mas concerteza!... Mas, no essencial, entendemo-nos e demo-nos bem... Falo, por mim... E continua a achar uma delícia o "crioulo" que inventámos, os portugueses, os cabo-verdianos, os guieenses...

PS2 - Cherno, como amigos e irmãozinhos, tratamo-nos por tu... Às vezes esqueces-te do nosso "trato", aqui no blogue...

Cherno Baldé disse...

Caro Luis,

Aquelas 3 verdades enunciadas por mim, sao as que tinha na cabeça quando desembarcamos em Fajonquito em 1967, num GMC da tropa que nos trouxera de Cambaju onde estavamos refugiados desde o inicio da Guerra.


Foi a partir de 1970 que, pela primeira vez, tivemos o privilégio de conviver com mulheres europeias, esposas de oficiais e/ou as mulheres que integravam grupos de artistas para animar a malta no mato. Isto nao quer dizer que nao houvesse antes do inicio da guerra, pois havia comerciantes Lusos que tinham casas comerciais onde viviam com as familias (casa Casimiro Pinheiro, casa Esteves, casa Gouveia, casa Ultramarina, casa Campos etc.), mas que se tinham ido embora havia muito tempo. A tropa acabaria por ocupar a maior parte destes edificios comerciais abandonados.

Um grande abraço,

Cherno Baldé

PS/ A fotografia que ilustra o Post é de Maio de 1997 e nao 1977 como consta na legenda.

Valdemar Silva disse...

Luís Graça
Ainda hoje, ou hoje, a minha intolerância ao racismo, leia-se contra os negros, só por serem pretos, é por termos convivido com todos aqueles jovens soldados fulas, desde Contuboel até Paunca na hora da despedida.
Eles até me ensinaram, julgo que foi o Bonco Baldé, que não era tão jovem como os outros, que o percurso da nossa vida é como os dedos da nossa mão: nascemos gordinhos, vamos crescendo, crescendo fortes, até acabarmos fraquinhos e raquíticos.
Ab.
Valdemar Queiroz

Cherno Baldé disse...

Caro Valdemar,

Quem te dera ter os meios e a força de vontade (e saude também), para revisitar aquelas localidades em que foste obrigado a viver no auge da tua juventude na tropa; os Pauncas, Guiro-Iero-Bocares e outros. O teu percurso na tropa deve ter sido qualquer coisa de muito singular e enriquecedor. Se um dia quiseres fazer esta peregrinaçao, podes contar comigo para o acompanhar e, prometo nao falar nada, respeitando tua vontade de reviver aquilo como for a tua vontade.

Contuboel continua a ser, para nos de Fajonquito, uma cidade de passagem, vestida de poeira vermelha e pouco hospitaleira. A situaçao geral, nestas localidades, nao difere muito do resto do pais, uma imagem desoladora, de abandono e de incuria. Um pais parado no tempo.


Obrigado pela solidariedade, pois os Embalocunda sao irmaos dos Baldecunda, pois segundo a lenda, a familia Embalo tem uma origem recente e teria saido do grande grupo dos Baldé ou Bah, por isso é que aquele apelido soh existe no espaço historico do antigo império do Gabu (actuais territorios da Guiné-Bissau, Gambia e do Senegal).

Valdemar Silva disse...

Meu caro Cherno
Como ou gostaria de voltar à Guiné, e julgo que muitos de nós, para visitar os locais por onde andei e voltar a ver um fim de tarde na poeirada duma tabanca, acompanhado com uma cervejola fresca e a fumar um cigarro.
O Abílio Duarte tirou um slide que retrata precisamente um final de tarde, julgo que em Canquelifá ou Piche, e que me lembra, precisamente, como eu via a Guiné, em dias de calmaria.
Agora, são só recordações. Mal posso deslocar-me por cá.
É uma grande chatice estar neste estado de doença crónica.

Ab.
Valdemar Queiroz Embaló

Luís Graça disse...

1997 e não 1977!... Desculpa lá, Cherno, estava a "roubar-te" 20 (vinte!) aninhos, a ti e à tua querida mãe!... VInte anos é muito na vida de um senhor humano...

Gosto muito da tua foto, diz muito sobre ti e a tua família!... Luís