segunda-feira, 22 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19706: Notas de leitura (1171): Um luso-cabo-verdiano que amou desmedidamente a Guiné (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Novembro de 2016:

Queridos amigos,

Prossegue a análise da tese de doutoramento de Benjamim Pinto Bull sobre a obra de Fausto Duarte.

Como se recordam, Benjamim Pinto Bull foi o único dirigente nacionalista recebido por Salazar, Pinto Bull era o líder da FLING, organização que aceitou fazer parte de um governo de transição, em 1963. Como escreveu o embaixador Luís Gonzaga Ferreira, cônsul em Dakar, montou-se a Operação Camaleão, Silva Cunha e Pinto Bull, entre outros, estavam em Bissau, a aguardar uma declaração pública de Salazar sobre política ultramarina. Para surpresa de todos, Salazar definiu uma linha de intransigência onde não sabia uma governação com a FLING.
São coisas da história.

Pinto Bull veio a morrer em Lisboa de acidente rodoviário.

Um abraço do
Mário


Um luso-cabo-verdiano que amou desmedidamente a Guiné (2)

Beja Santos

Fausto Duarte pertence à vasta lista de escritores, divulgadores e investigadores injustamente esquecidos. Homem de uma cultura medularmente europeia, orgulhava-se das suas origens cabo-verdianas e vai revelar-se como o nome mais sonante da literatura colonial guineense e o investigador e divulgador de mérito das coisas guineenses. Continuamos a abordar a tese de doutoramento de Benjamim Pinto Bull sobre a obra de Fausto Duarte.

Torna-se conhecido em Portugal quando o seu romance "Auá" ganha o primeiro prémio da literatura colonial, em 1934. Como se disse em texto anterior, o tema do romance é um conflito permanente entre duas civilizações, conflito que é protagonizado por Malan, um jovem Fula que trabalha em Bissau como criado, e Abdulai que permanece enraizado nas suas tradições e convicções. Malan é um admirador de tudo quanto fazem os brancos e orgulha-se de oferecer a Auá novas lembranças compradas nas lojas frequentadas pelos brancos, em Bissau, como sejam lenços e pulseiras, e não se esquece de juntar folhas de tabaco e cola para conquistar a simpatia da família da Auá. A vestimenta de Malan é também esclarecedora: “Tinha na sua bagagem um belo par de sapatos que o administrador lhe oferecera. Sobre a sua camisa, pendia um amuleto em prata, contendo um versículo do Alcorão”. Em Fausto Duarte pareciam convergir estas suas forças, a Europa e África, trata-se de uma tensão que perpassa toda a sua obra literária.

Voltando a Auá, todos os Fulas da tabanca criticam Ançatu que, desprezando a lei muçulmana, aceitou não somente viver com um funcionário de alfândega, um português branco, e de ter dele um filho. Auá também vive dividida, sente o choque das duas civilizações. Dividida entre Abdulai, jovem Fula que ficou na aldeia e que lhe oferece presentes genuinamente africanos; e Malan, seu noivo, que lhe envia lembranças fabricadas pelos brancos. E Fausto Duarte escreve: “Sentia uma invencível inclinação por Abdulai, um moço Fula que habitava ali próximo, em Saré-Boilela, e que lhe trazia mel de abelhas bravas e leite coalhado em boas cabaças… Era, senão com desdém, pelo menos com indiferença que, de vez em quando, recebia de Bissau alguns presentes enviados por Malan, que se mesclara no convívio permanente dos brancos do governo”. Malan irá novamente trabalhar em Bissau, quando regressa à sua aldeia para se casar é já em desenraizado, um abismo separa os seus valores dos da aldeia, então decide emigrar para Dakar. Aqui sente o aguilhão da nostalgia.

Aquilino Ribeiro, no seu prefácio, exalta o romance Auá, é fulminante: “Está dito, o primeiro que viu a Guiné foi Nuno Tristão, o segundo o autor de Auá”. Na introdução, muito didaticamente, Fausto Duarte contextualiza a cultura dos Fulas à luz dos conhecimentos da época e trata o seu livro como um documentário etnográfico, um novo capítulo de psicologia indígena. Mas o contraste vem na escrita, Fausto Duarte é um homem de cultura europeia com uma testa da sua prosa inequívoca:

“Era meio-dia quando a camioneta chegou a Nhacra. As águas tranquilas do Impernal acariciando o debrum da paisagem dormente, anquilosada pelo sol adusto, áscua viva que se reflectia na opacidade plúmbea dos céus, espreguiçavam em torcicolos ocultando-se entre o tufo emaranhado dos mangais. A vazante tinha posto a descoberto a orla mádida e lamacenta do rio, e uma variedade abjecta de moluscos deslocava-se sobre a terra lodosa, aquecendo-se ao calor estuante de Novembro”.

Prosa mais naturalista não pode haver. A crítica literária do tempo embandeirou em arco com o romance Auá: “O primeiro grande romance português inspirado em motivos coloniais”; “A arquitectura da obra é um sólido equilíbrio e a cena do conselho dos anciãos coroa-se como cúpula magnífica”; “O escritor que entre nós melhor sabe traduzir o profundo mistério da alma negra”.

O romance conheceu três edições e hoje praticamente ninguém fala dele.

Passemos agora para a conferência proferida por Fausto Duarte no Porto, no âmbito da primeira exposição colonial, em 1934. Começa por referir a atitude dos escritores da sua época face a África e prossegue com comentários sobre a música dos negros, centrando-se na morna, dança tipicamente cabo-verdiana e aqui procura retratar o cabo-verdiano:

“Como poeta e músico, o cabo-verdiano é um eterno apaixonado. O amor, ponto de convergência desses dois estados de alma é tema que não cansa e antes rejuvenesce em cada morna, vai de aldeia em aldeia, surpreende epidermes virgens, sobe à cumeeira dos montes, transpõe o mar e abraça as ilhas no desejo insatisfeito de unir corações enamorados. E para fugir a uma vida de resignação e renúncia, o cabo-verdiano, poeta e místico, artista de provocação, baila e canta”.

A novela “Um crime” foge ao contexto africano. Versa o regresso de um prisioneiro da I Guerra Mundial, Hans Weiss, regressado do exílio da Sibéria. Perdeu toda a sua família. É num grande estado de revolta que comete um crime.

“O negro sem alma”, datado de 1935, publicado na Livraria Clássica Editora, é o regresso ao conflito entre duas civilizações. Bubacar Djaló recusa as pretensões de Songá à mão da sua filha Aminienta, porque Songá não é Mandinga. No final, vamos ser confrontados com a vitória dos princípios africanos sob os princípios ocidentais.

“O negro sem alma” também aborda o exílio e a separação. Momo deixa a sua aldeia no Tombali, atravessa a fronteira e entra na Guiné Francesa para vender dois sacos de arroz. Vive-se em plena I Guerra Mundial e todos os indígenas são apanhados para marchar em direção às trincheiras ocidentais. Momo, na confusão, é mobilizado à força, temos aqui um novo exílio forçado. Vemo-lo num campo de concentração com o uniforme soldado francês, irá combater nas trincheiras, será condecorado. No regresso, assistimos a novo choque de valores. Momo regressou com modos afetados, maneirosos, afrancesados. Atrai a curiosidade dos seus compatriotas, mas é nítido que há desenraizamento.

Antes de regressar à Guiné, Fausto Duarte escreve em 1936 novo romance, "Rumo ao degredo", publicado pela Guimarães Editora. Põe a seguinte dedicatória: “À minha mulher e ao meu filho”. Manuel da Gaita, inocente, é condenado ao exílio. Regressa 15 anos depois à sua aldeia, no Ribatejo. João Gaspar Simões, então sumidade da crítica literária, não foi meigo com Fausto Duarte, diz que "Rumo ao degredo" é um romance que ficou a meio o que devia ser. “Onde seria necessário pôr à prova o talento do romancista, Fausto Duarte sucumbiu”.

Veremos no próximo texto referências as seus últimos trabalhos literários e à sua atividade no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa.

(Continua)


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Notas do editor:

Poste anterior de 15 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19682: Notas de leitura (1169): Um luso-cabo-verdiano que amou desmedidamente a Guiné (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série  de 19 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19697: Notas de leitura (1170): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (2) (Mário Beja Santos)

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