Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sexta-feira, 26 de abril de 2019
Guiné 61/74 - P19719: Notas de leitura (1172): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (3) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Fevereiro de 2019:
Queridos amigos,
Procura-se a sincronia com Santos Andrade, desta feita a recruta, seguir-se-á a especialidade, ele em Estremoz, como irá contar e cantar. Recruta é adaptação, a superação de temores, o primeiro degrau da camaradagem, as marchas, a carreira de tiro, a tática, a ideologia da contraguerrilha num conta-gotas, dada com a mais elementar superficialidade e indiferença. E a descoberta.
Falando por mim, já me confidenciei:
"O Tangomau maravilha-se. Acima de tudo com a ginástica, por andar, saltar, marchar, pular, até rastejar. Tem bom físico mas com aquelas aulas, aquelas marchas e caminhadas, o seu corpo está a ganhar vida, a ter mais músculo, até dorme melhor. Quando regressa do crosse da Ericeira, entra pela ala sul risonho ou bem-disposto, ganhou o dia, sente-se outro".
Em abono da verdade, sem aquela recruta, e sem a duríssima especialidade que se seguiu, não teria tido a preparação que me permitiu, meses a fio, aqueles passeios diários de 25 km entre Missirá e Mato de Cão, para cuidar da navegabilidade do Geba. Tudo ganhos da recruta, afianço-vos.
Um abraço do
Mário
Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (3)
Beja Santos
“Missão Cumprida”, de Santos Andrade, é a história em verso do BCAV 490. Foi composto e impresso na Tipografia das Missões, Guiné Portuguesa, em julho de 1965. Idealizei a sua publicação em pequenas porções, a que se irão adicionando leituras colaterais e incidentais, sem esquecer o apelo permanente de propostas dentro da confraria, há imenso pasto para conversa de como se foi a caminho da recruta, como ela decorreu, a especialidade e a hora da mobilização, capítulo primeiro desse grande romance que foi a comissão de cada um de nós. A festa está centrada no BCAV 490, o Santos Andrade é o Homero desta Odisseia, mal o projeto foi esboçado bateu-se à porta do Armor Pires Mota, a pedir ajuda, divulgação junto dos seus pares, esta “Missão Cumprida” deve continuar, com eles a protagonizá-la, querendo.
E vamos continuar, Santos Andrade chegou a Mafra:
“Neste grande Convento
o sofrimento aumentava.
A minha sorte era o dinheiro
que minha mãe me mandava.
Havia quem me dissesse
que a tropa não era má,
mas só quem vem para cá
é que sabe o que acontece.
Muitas vezes se adoece
por causa do sofrimento.
Aqui neste aquartelamento
há sempre pouco comer.
Tenho muito que sofrer
neste grande Convento.
Dia a dia vou sofrendo.
A minha sina já está lida.
Dos martírios da minha vida
alguns eu vou escrevendo:
vão-me sempre acontecendo
coisas que eu não esperava.
Na especialidade eu pensava
que deixava de rastejar,
mas sendo grande o meu azar,
o sofrimento aumentava.
Gastava uma conta avantajada
porque a fome era tirana.
Chegava ao princípio da semana
começava a coboiada.
Comia muita linguiça assada
eu mais o meu companheiro,
porque a mãe do Torraneiro
mandava muita encomenda.
E p’ra comprar vinho na venda
a minha sorte era o dinheiro.
A sopa era ruim,
o segundo sabia-me mal.
Foram dois meses e tal
com esta vidinha assim.
Tudo isto para mim
eram coisas que eu não gramava.
Muitas vezes eu chegava
a comer só um bocado de pão
que comprava com o patacão
que a minha mãe me mandava.”
O Santos Andrade centra-se na comida, na verdade horrível. Permito-me falar do que experimentei, assim escrevi em “A Viagem do Tangomau”:
“O Tangomau não esquece que o refeitório onde jantou pela primeira vez no convento é um espaço amplo, um género de arrecadação exterior, muito próximo de garagens de viaturas, dar-lhe-ão uma sopa de manga de capote olorosa e altamente comestível, a seguir apareceram umas sardas a nadar em banhos de fritura como se trouxessem restos de carvão, e batatas cozidas, estas apetecíveis, por sinal. Por razões do pudor, preferiu nada trazer da caserna para comer à mesa. A sopa soube-lhe bem, o casqueiro era saboroso, recusou a sarda, esmagou as batatas, saboreou-as lentamente logo à primeira garfada. Cumpre dizer que em todas as refeições militares há sempre um vigilante, pois teme-se pela indisciplina ou pelo motim, que nestas coisas da tropa dá pelo nome de levantamento de rancho, uma suprema blasfémia. E nisto, comia o Tangomau placidamente as batatas esmagadas, sonhando já com um pedacinho de proteína lá no armário, de fumeiro ou em lata de conserva, quando se aproximou o oficial vigilante: ‘O nosso cadete não tirou sarda, tem de comer, isto não é casa para gente caprichosa, aqui a gente da tropa come de tudo e não refila. Ó nosso soldado, traga cá a bandeja, ponha dois pedaços de sarda no prato do nosso cadete, regue as batatas com óleo!’. O nosso cadete ainda olhou súplice para o nosso soldado em funções de criado de mesa, este dispunha do seu poder soberano que era ver o nosso cadete massacrado, de antemão agoniado, espetou-lhe com duas metades de sarda no prato, ambas com a cabeça calcinada, e ter-lhe-á dito ao ouvido: ‘o nosso cadete coma tudo, só deixe as espinhas, o nosso tenente se ficar zangado participa de si, adeus ao fim de semana!’. E comeu tudo, com o estômago revoltado, até foi ao bar dos cadetes emborcar um bagaço (aguardente chamada 1920)”.
Este Tangomau não esqueceu a caserna, daqui se parte e aqui se chega neste mundo das novas lides que metem a parada, a Tapada ou o Corredor Lacouture:
“Nesta antecâmara, aproveita-se o tempo disponível para dormir ou cabecear, ou chalacear, quem não conhecia a habitação coletiva já se resignou a tanta gente nua, ou semivestida, às sonoridades outrora íntimas, ali é espaço para desabafos, brincadeiras, anedotas pícaras, até tertúlias”.
Vamos agora regressar a “O Pé na Paisagem”, por Filipe Leandro Martins, uma referência à carreira de tiro:
“Na carreira de tiro, quando abriram os cunhetes carregados de balas brilhantes, fez-se silêncio. Agachados no chão enchemos carregadores, os cartuchos a resvalarem nos dedos suados e no metal oleado. A barulheira começou, os tiros a partirem assobiando, os espertos a acertarem, os nabos a errarem, os monitores a ensinarem aos encontrões à malta, as cápsulas saltando a ferver da câmara.
Ficámos surdos e felizes. Já tínhamos coisas importantes para contar. Durante algumas semanas muitos de nós esqueceram que teriam preferido nunca pôr as botas no quartel”.
E ainda um outro dado sobre a recruta, da mesma obra de Filipe Leandro Martins:
“Nos primeiros quinze dias da recruta, também em filas mansas nos mandaram sentar numa sala estreita, um corredor, meio nus e pacíficos, em compridos bancos de pau; esperávamos que nos fossem espetando agulhas nas omoplatas; quando o enfermeiro chegava ao fim do banco ainda o ajudante começava a exprimir a seringa, a dose de cavalo, no primeiro ombro. Depois o enfermeiro passava novamente, arrancando fora as agulhas e alguns rapazes iam rolando para o chão e outros punham-se verdes, tentando aguentar-se nas canetas. Era assim.”
Também o Tangomau tem um desabafo a fazer sobre a carreira de tiro, não é uma visão das armas, era do que ali se oferecia a comer, conta as suas impressões passadas umas semanas da recruta, escreveu assim:
“O Tangomau anda enfiado, é essa a verdade, começaram a desmontar as armas, a dar nome às peças, ao fim de pouco tempo estava baralhado com o cão e o percutor, a corrediça, o rolete de travamento, a haste do gatilho, o alojamento do amortecedor. O mundo das armas arrepia o Tangomau, é evidente que se percebe a função do tapa-chamas, mas depois é aquele horror das cavilhas, a culatra, suportes, eixos, até a chapa do coice. Limpar a arma é uma questão de higiene e segurança, requer paciência, depois há sempre um camarada prestável que dá as indicações necessárias. O Tangomau familiarizou-se com o meio, é muito próprio dele, gosta do som dos carrilhões, passeia-se pelos corredores, está a chegar o verão e empolga-se com as folhas verdes de todo o arvoredo da ala sul. Até pediu licença para entrar onde trabalham os encadernadores e olhou demoradamente a construção das lombadas em carneira, depois debruadas a ouro.
O horrível, a tal ponto que inesquecível, são aqueles caldeiros que esperam os cadetes na carreira de tiro ou nos dias de marchas. O Tangomau nunca será acreditado por quem não esteve em Mafra que houve arroz, naquele segundo curso de 1967, que vinha com patas e cabeças de galinha com bicos e olhos, foi caso extremo mas aconteceu e repetiu-se”.
(continua)
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Notas do editor
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2 comentários:
OH...OH...meu capitão tenho uma lagarta na sopa,diz o cadete armado em "chico esperto"...
AH ..sim, então coma que isso é tudo proteína.
Formatura no fim de semana....numa das companhias só ficou um cadete retido por castigo e como era lógico ele era a companhia..
Todo aprumado e emproado grita para oficial de dia.."commmpaannhiaaa pronta"
O oficial de dia olha de soslaio e de forma displicente diz..."mande dispersar essa merda"
O cadete hirto e firme bate o tacão, faz meia volta volver para a parada vazia...e grita com toda a "cagança e pujança"...ATENNNNÇÃO MEEERRRDA DISPEEE...ARRR.
O oficial dia engoliu em seco.
AB
C.Martins
Mais uns postes de publicidade aos livros dos camaradas...
Até quando?
Já não bastam as fotos da Europa, os rios, as crónicas que nunca acabam...
Será isto um site de vendas?
Virgilio Teixeira
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