sábado, 30 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20399: Historiografia da Presença Portuguesa em África (189): I Exposição Colonial, Porto, junho/setembro de 1934: fotogaleria do encerramento...









"Vários aspetos dessa memorável jornada de fé e vibração patrióticas: em cima, Irmãs Missionárias e Combatentes das campanhas das colónias; a seguir, D. João de Castro, conduzido sob o pálio e o carro da cidade do Porto; a frente do cortejo com figuração histórica; no disco, tocadores de marimbas; campinos do Ribatejo junto do sr. capitão Henrique Galvão, que concebeu, organizou e dirigiu o cortejo; o carro dedicado à província de Angola. Fotos ALVÃO.

Fonte: Ultramar - Órgão Oficial da I Exposição Colonial, (Porto),  nº 17, 1 de outubro de 1934, p. 8 (Diretor: Henrique Galvão). 

[Cortesia de Hemeroteca Digital, Câmara Municipal de Lisboa]



1. Temos já meia dúzia de referências no nosso blogue à Exposição Colonial do Porto (junho-setembro de 1934). Recorde-se aqui um excerto de um poste de um camarada nosso, portuense, o [ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 / BCAC 3880  (Zemba e Ponte de Rádi, 1972/74),  membro nº 780 da Tabanca Grande: 


(...) A grandiosa Exposição Colonial do Porto, ocorrida no Palácio de Cristal em 1934, deverá ter sido um ensaio geral para a (ainda mais grandiosa) Exposição do Mundo Português de 1940, em Lisboa. Ainda Salazar não tinha vergonha de chamar colónias às colónias.


Feita à imagem e semelhança de outras exposições coloniais realizadas em França, Inglaterra, Alemanha, etc., a Exposição Colonial do Porto de 1934 foi organizada por Henrique Galvão, esse mesmo, o do assalto ao paquete Santa Maria, que antes de ser um feroz opositor de Salazar tinha sido um seu fervoroso admirador.

A Exposição Colonial do Porto teve como finalidade, como facilmente se compreende, exaltar o orgulho imperial dos portugueses, supostamente portadores de um mandato divino de civilizar os povos primitivos sob seu domínio, e ao mesmo tempo consolidar o regime do Estado Novo, comandado pelo pulso de ferro de António de Oliveira Salazar. A exposição teve características idênticas às das exposições coloniais estrangeiras, a começar pela redução dos povos colonizados à condição de indígenas atrasados, cujo exotismo se procurava sublinhar. Para tanto, mostraram-se seres humanos trazidos das colónias ao público visitante, como se de animais do jardim zoológico se tratasse.

No caso da Exposição Colonial do Porto de 1934, a Guiné teve um papel de particular relevo, não necessariamente pelas melhores razões. Foi instalada uma "tabanca" de bijagós numa ilha de um pequeno lago existente nas imediações do Palácio de Cristal, onde pessoas seminuas eram exibidas ao público como se estivessem no seu ambiente natural. Ora o clima do Porto é consideravelmente mais frio do que o da Guiné. Nem quero pensar no frio que essas pessoas terão passado. (...) (*)


Portugal (continental, insular e ultramarino) tinha uma superfície superior a 2,168 milhões de km2, ultrapando o conjunto europeu formado pela Espanha (continental), a França, A Alemanha, a Inglaterra e a Itália (que não chegava aos 2,097 milhões de km2). Mapa organizado por Henrique Galvão (1895-1970) que, passadas duas décadas, começa a desiludir-se com o Estado Novo e entra em rota de colisão com Salazar. Ficaria mundialmente famoso pelo inédito assalto, em 21 de janeiro de 1961, ao paquete "Santa Maria". Terá sido o primeiro ou um dos primeiros atos de pirataria naval com motivação política, no séc. XX. Henrique Galvão e o seu comando renderam-se às autoridades brasileiras, no porto de Recife, em 2/2/1961, na véspera do início da guerra colonial em Angola.


Sobre a I Exposição Colonial Portuguesa, ver mais informação disponível na Hemeroteca Municipal de Lisboa (, dossiê digital organizado em 2014 para comemorar os 80 anos deste evento; destaque na introdução para o seguinte excerto:  

(...) "Discursando no Palácio da Bolsa (então Palácio das Colónias), [Henrique] Galvão terá afirmado: 'os homens da minha geração vieram ao Mundo dentro de um país pequeno. Felizmente vê-se que pretendem morrer dentro dum império'. 

"Esta ideia, de resto, serviu de mote ao famoso mapa 'Portugal não é um país pequeno', (ver aqui) concebido por Galvão no âmbito da Exposição e amplamente divulgado pelo Secretariado de Propaganda Nacional nos anos seguintes." (...)
____________



Notas do editor:

(*) Último poste da série > 27 de novembro de  2019 > Guiné 61/74 - P20389: Historiografia da presença portuguesa em África (188): A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (4): "Portugueses e Espanhóis na Oceânia", por René Pélissier (Mário Beja Santos)

18 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Infelizmente, Henrique Galvão morreu no exílio; e milhares de homens, da nossa geração, essa sim, morreram, na defesa das sobras do império... A geração de Henrique Galvão e Salazar, monarquicos ou republicanos, africanistas ou não, viveram nesta obsessão de que, perdido o "império", Portugal tornar-se-ia um minúsculo país atlântico, condenado a desaparecer dentro de escassas décadas... Perdida a "joia da coroa" que era o Brasil, Portugal teve que começar a olhar para a África onde começar a "aventura marítima de quinhentos"... A Conferência de Berlim (1884/85) e depois o Ultimato britânico (1890) contribuiram para acelerar o nosso "africanismo"... LG

Antº Rosinha disse...

Luis, a propósito daquela conferência de Berlim de 1884/85, em notícia de hoje mesmo na televisão, os alemães acabaram de reconhecer que foi genocídio, aquilo que fizeram na pacificação dos indígenas do Sudoeste alemão (Namibia), que simplesmente empurraram aquela gente para o deserto (Kalahari)e quase não foi preciso gastar balas.

Pelo tom, pareceu-me que dará direito alem das desculpas que já foram dadas há algum tempo, dará direito a mais alguma "compensação".

Também noticia de hoje, um antigo mas jovem ex-ministro colonial, Adriano Moreira dá uma entrevista no DN, em que lhe palpita, que os ingleses estão a aliciar Angola para se virar para a comonwelth, que já o fizeram com Moçambique, com plenos direitos, pois que ao abandonarem a velha União Europeia, precisam reforçar o seu velho império colonial.

Ou seja, não se contentaram com mapa-cor-de-rosa, o miolo, querem também açambarcar as extremidades.

Os ingleses são assim, mesmo sem a rainha Victória...a vida continua!

Cada um é como é!

Valdemar Silva disse...

Há imagens de muita gente junta a ver um pretinho de dois anos tudo nu a mijar para o chão e na capa da Revista da Exposição aparecia a balanta 'Rosinha' de mamas à mostra.

….por cá nunca se tinha visto uma criança a mijar em público…..

Valdemar Queiroz

Anónimo disse...

O uso dos mapas é sempre interessante.
Felizmente que tanto a Rússia como a China não apresentam ainda os seus mapas colocados sobre a área da Europa.
Mas (sorte nossa!),muito especialmente no caso russo,as populações não ocupam as imensidões coloridas.

Precisamente como quanto aos mapas acima representados.......muita “cor” mas...poucos brancos.

(OBS! Como agora será moderno chamar a tudo de racismo saliento que ao escrever “cor” me estou unicamente a referir à cor vermelha dos mapas referidos.)

Mas quanto às quantidades de colonos brancos que na realidade (!) ocupavam estas vastas áreas o nosso Camarada António Rosinha melhor nos poderá esclarecer.

Ainda a propósito destes mapas de propagandas várias quantos de nós recordarão que a área geográfica do nosso Brasil é bastante superior à área total dos Estados Unidos da América?

Ao olhar-se para os mapas não se fica com essa ideia.
Mas ao serem-se contados os quilómetros quadrados é um facto.

Não sabendo bem porquê,ou talvez sejam as “mensagens” deste tipo de mapas, aparece a “imagem” do nosso Minho e sua numerosa população sobreposta à imagem dos Alentejos tão extensos.
As propagandas e as conclusões.

Abraço. J.Belo

Anónimo disse...

Caros amigos,

O raciocinio ou a obsessão "...da geração de Henrique Galvão e Salazar...." a meu ver tinha todo o sentido, porque apesar da aparente riqueza material...Portugal deixou de existir como país independente e passou a estar atrelado aos interesses dos países mais ricos da europa e, do mundo de negócios obscuros e anónimos. Tudo é uma questão de escolhas e suas consequências.

Amigo Rosinha, os Alemães ainda podem-se dar "ao luxo" dos reconhecimentos, dos pedidos de desculpas e das compensações, pois isso não é para quem quer, mas para quem pode, não é só uma questão de honrabilidadebe ética, mas tb de capacidade e podério económico. É por estas e outras razões que os colonizados se lamentam, tipo: Porque foram os portugueses e não ingleses ou alemães ?!?!..

Com um abraço,

Cherno Baldé

Anónimo disse...

Meu Caro Amigo .

Estaremos todos de acordo que tudo na vida “é uma questão de escolhas e suas consequências “.

Aplicável à Guiné,a Portugal,e a tantos outros.

Quanto aos pedidos de desculpas,reconhecimentos,e principalmente ,”compensações” alemãs,é óbvio que o fazem porque o podem.
Mas em verdade quanto irão recuperar(!) em negócios e investimentos?
Creio que todos podemos estar mais do que certos que esta fantástica dose de solidariedades alemã trará....bons juros bancários futuros.
Aos que possam injustamente duvidar destas solidariedades alemãs recomenda -se uma olhadela aos juros bancários dos empréstimos (solidários!) a países europeus.

Mas meu Caro Amigo,não será uma compensação para todos os africanos colonizados por Portugal o facto deste país,nas suas tão limitadas capacidades económicas,comerciais,industriais, e não menos militares,não o tornem capacitado de Neo-colonizar aos níveis franceses,ingleses ou alemães ?
Infelizmente não se poderá incluir neste “ramalhete” a moderna China.
Como saberá,a China ainda está na fase de....colonizar...que,quer se queira ou não,ainda terá algumas diferenças de ...neo-colonizar.

Um abraço do J.Belo

Anónimo disse...

Caro J.Belo,

Vamos relativizar as coisa. Mesmo a "questão da escolha e suas consequências" não se aplica a todos os países, aqui também há aqueles que podem e aqueles que, como a Guiné-Bissau, fruto de uma "independência" caótica e mal conduzida ficaram a mercê e ao sabor de ondas aleatórias num mundo selvagem em cuja cadeia os mais fracos servem para alimentar os mais fortes.

Ao falar da situação de Portugal, de modo algum quero comparar e/ou colocar no mesmo patamar com a situação da Guiné, não são situações que se possam comparar, mas não deixa de ser preocupante para todos que sentem portugal (onde eu me incluo), quando os juros da divida a pagar ultrapassam o total dos investimentos na saúde e ensino.

Eu não sou adepto e não milito pelas compensações e se dependesse de mim, há muito que tinham acabado com as ficticias ajudas ao desenvolvimento ao terceiro mundo que, a meu ver, fazem mais mal que bem as economias nascentes.

Abraços,

Cherno Baldé

Anónimo disse...

Meu Caro Cherno Baldé

Concordando consigo (em quase tudo) tenho no entanto um problema quanto à questäo da
"Escolha e consequências".

Na sua análise quase me empurra para a teoria Calvinista da...Predestinacäo.

(Tendo em conta as idades altas de alguns de nós quase recomendava a leitura atenta desta teoria...enquanto é tempo!)

Um abraco do J.Belo

Fernando Ribeiro disse...

Há já alguns anos que a Alemanha reconheceu que aquilo que fez na Namíbia (ex-Sudoeste Africano) foi um genocídio. O que agora é notícia é a aparente disposição da Alemanha em pagar uma compensação pelo facto. Não é de espantar. Continuam a viver muitos alemães na Namíbia e há, como não podia deixar de ser, interesses económicos em jogo, pois a Namíbia é um país riquíssimo em diamantes, ouro, urânio, prata, etc.; não tem só areia. Com este gesto, a Alemanha dá com uma mão mas procura tirar com as duas.

Na Wikipedia existe a seguinte página sobre este genocídio: https://pt.wikipedia.org/wiki/Genoc%C3%ADdio_dos_herer%C3%B3s_e_namaquas. Antes da chegada dos alemães, os hereros eram o grupo étnico mais numeroso na Namíbia. Agora não chegam a 10% da população total do país. O grupo étnico mais numeroso é agora o dos ovambos (chamados ambós em Angola), ao qual pertencem os cuanhamas e que constituiu o grosso dos combatentes da SWAPO.

Os hereros são um grupo etno-linguístico bantu que engloba algumas tribos que também habitam no extremo sul de Angola, nomeadamente os mucubais (na província do Namibe, antigo distrito de Moçâmedes), os muhimbas (no Cunene), os muhakaonas (também no Cunene), etc.

Os namaquas, hotentotes ou khoikhoi não são bantus, mas sim de uma etnia muito próxima dos bosquímanos, também chamados san. Os khoikhoi e os san, em conjunto, são frequentemente chamados khoisan. Também vivem algumas dezenas de milhares de san em Angola, onde são chamados mucancalas e mucassequeles, conforme a região.

Por fim, aproveito para chamar a atenção para o trailer de um filme sobre os hereros de Angola realizado há poucos anos pelo brasileiro Sérgio Guerra. O trailer está em https://www.youtube.com/watch?v=2-IKZe2NC24. No vídeo podem ver-se algumas tradições dos hereros e outros povos da região, nomeadamente o arranque dos dentes incisivos inferiores. Também limam em diagonal os incisivos superiores, de maneira a tomarem a forma de um V invertido. Por isso algumas pessoas parecem desdentadas, mas fazem-no de propósito. Acham que ficam mais bonitas assim. A prática da circuncisão nos rapazes é comum a quase todos os povos bantus, mas a mutilação genital feminina não existe.

Cherno AB disse...

Caro Fernando Ribeiro,

Obrigado pela descrição que faz daquela parte d'Africa que dá para perceber os sentimentos e afectos que perduram no tempo.

Em tempos li um pouco acerca dos Hereros que em Angola dão o nome de Mucubais, povos pastores no deserto da Namibe. Desta leitura descobri algumas semelhanças curiosas com práticas, usos e costumes com o grupo étnico do qual faço parte mas em tempos mais recuados com o essencial das actividades de subsistência e de reprodução social centradas a volta da criação do gado bovino. Não me admirava muito que esses povos fossem de origem Nilótica como o são os povos Fulani (fulas), os Massai do Quénia e Tutsis na Rwanda, Burundi e RDCongo.

Abraços,

Cherno Baldé

Anónimo disse...

Meu Caro Cherno Baldé

Como nåo nos conhecemos pessoalmente, aproveito esta oportunidade em que fala dos Fulas da Guiné para lhe comunicar que quanto ao Humanismo,educacäo familiar (e social),coragem pessoal,e näo menos AMIZADE,foram as qualidades por mim encontradas na isolada Tabanca Fula de Mampatá onde tive a honra de viver,e combater,uns largos tempos.
Tempos perigosos mas bem compensados pelo calor humano das suas gentes que, literalmente, nos receberam em casa,pois compartilhavamos com eles as suas humildes (em bens) morancas,mas muito ricas quanto aos costumes sociais do dia a dia.
Näo é todos os dias que o entäo jovem ,criado e educado nas "facilidades"do Monte Estoril,é obrigado a reconhecer que algo da educacäo que lhe faltava por lá aprendeu com as gentes de Mampatá.

Um abraco do J.Belo

Anónimo disse...

...Ah Pois!...quem diria, o José Belo em Mampata Forrea, suponho que na mesma altura e companhia do António Carvalho (CART 5025 -Unidos de Mampata).

Vocês tiveram a oportunidade de conhecer um dos grupos fulas mais aguerridos e orgulhos de entre os fulas. Forrea quer dizer terra de gente livre, a primeira parcela onde tinham conseguido furtar-se da pesada dominação mandinga de Gabu. Foi conquistada aos Biafadas no séc. XIX. E Mampata sempre foi conhecida pelas suas belas, esbeltas e não menos orgulhosas mulheres.

O meu avô materno é originário de Forrea, da tabanca de Contabane (Cuntabani em fula), era caçador profissional e serviu como auxiliar na última guerra de Canhabaque. Tenho falado amiude dele nas minhas memórias de infância, éramos amigos e confidentes numa fase da sua vida quando não lhe restavam muitos confidentes.Acho que ele me ajudou mto a encontrar ferramentas, astúcias e outras qualidades humanas para enfrentar o mundo. Coragem, astúcia, bondade e paciência eram as qualidades que o caracterizaram ao longo da sua vida.
Morreu em Fajonquito pouco antes da independência como era sua vontade. Não era contra os brancos os quais via como crianças grandes que ansiavam para se divertir com as nossas badjudas, mas abominava os homens de mato que enfernizavam as nossas vidas.

Um grande abraço,

Cherno AB.

Antº Rosinha disse...

Tanta conversa para chegarmos aos mucubais, em parte por culpa minha, que desviei a conversa do festival colonial de Henrique Galvão no Porto, para os alemães no Sodueste Alemão.

Ora como conheci bastante bem a terra dos mucubais, o deserto de moçâmedes, acampei lá no dia em que houve as eleições do Humberto Delgado no ano em que fui à inspecção, (1958), se me dissessem nessa altura, a mim e aos mucubais, que havia gente em Luanda e em Lisboa a pensar que aquela gente ia ser independente o mais depressa possível...eu e eles não acreditavamos.

Porque era um crime, porque eles já eram independentes, ninguem mandava neles, nem no gado deles, nem chefes de posto, nem missionários, nem tropa, nem policia, nem tinham médicos nem enfermeiros, nem outrs tribos vizinhas entravam no seu território, e se havia algum comerciante (negócio de permuta)esse não mandava, apenas convivia e negociava.

Quem escreveu um livro sobre a caça nessa região, foi um caçador chamado Henrique Galvão.

Anónimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Fernando Ribeiro disse...

Caro Cherno Baldé,

Eu é que agradeço a sua intervenção, a que vou procurar responder. Os «sentimentos e afectos que perduram no tempo», que refere, só acabarão quando eu próprio deixar de existir. Comandei um pelotão misto de portugueses e angolanos, uns e outros originários de regiões várias de Portugal e de Angola, e pertencentes a extratos sociais diversos, mas foram os angolanos que me marcaram de forma particularmente profunda. E continuarão a marcar-me até ao fim. Eles deram-me um vislumbre (apenas um vislumbre) de uma África vista por dentro e estou-lhes eternamente grato por isso. Nunca, nunca, nunca os esquecerei enquanto eu for vivo.

Os Hereros são um grupo etno-linguístico bantu, constituído por várias etnias. Chame-lhes tribos, se quiser. Os Mucubais são uma dessas tribos, os Muhimbas são outra, os Muhacaonas são outra, os Mudimbas são outra, etc. Todas estas tribos partilham um idioma comum (com variantes dialectais) e certamente terão uma origem étnica comum.

O antropólogo e escritor angolano de origem portuguesa Ruy Duarte de Carvalho, já falecido, foi talvez a voz mais autorizada para falar sobre os Mucubais (além dos próprios Mucubais, bem entendido), com quem conviveu durante anos e anos. Ruy Duarte de Carvalho chamava-lhes "Kuvale", que é o radical da palavra com que eles se designam a si próprios na sua própria língua. A designação original é "Mukuvale" no singular e "Ovakuvale" no plural.

Há cerca de vinte anos, se não mais, Ruy Duarte de Carvalho publicou um livro sobre os Mucubais ou Kuvale, intitulado "Vou Lá Visitar Pastores". Embora escrito num tom coloquial, o livro é denso, complexo e aparentemente muito abrangente. Nele, Ruy Duarte de Carvalho aflorou de maneira relativamente ligeira a questão das semelhanças e diferenças entre os Mucubais e outros povos pastoris de África, onde quer que estes estejam. Afirmou ele que é manifesta a existência de um laço de parentesco cultural e civilizacional comum a todos estes povos e etnias, que não se limita a uma simples partilha de um mesmo modo de vida mais ou menos nómada.

Esta passagem do livro (que não consigo localizar neste momento) fez-me lembrar um outro texto que li muitos anos antes, o qual dizia essencialmente o mesmo, mas era muito mais específico. Não me recordo que texto era este, nem o seu autor, pois li-o há muitos anos, mas lembro-me de que ele fazia uma referência EXPLÍCITA aos Fulas e a outros povos vivendo no Sahel e franja meridional do Sahara, desde o Atlântico até à Etiópia e à Somália. Mas não lhes chamava Nilóticos; chamava-lhes Camitas. Parece-me, portanto, que podemos concluir que existe uma relação cultural e até genética entre os Mucubais e restantes Hereros, por um lado, e os Fulas, os Massai, os Tutsis, os Dinkas, os Tuaregues e outros, por outro lado.

Um abraço


Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alferes miliciano da C.CAÇ. 3535 do B.CAÇ. 3880, Angola 1972-74

Fernando Ribeiro disse...

Caro Antº Rosinha

Aí por volta do ano 1940 houve uma revolta dos Mucubais contra o que consideravam ser abusos por parte da autoridade colonial. Esta revolta não costuma figurar nos anais da História recente de Angola, porque não redundou em nenhuma guerra. Armados apenas com as suas lanças e flechas, os Mucubais nada conseguiriam contra as armas de fogo do Exército Portugês. A revolta foi suprimida através de deportações e deslocações forçadas de populações Mucubais.

Mas as autoridades coloniais aprenderam a lição. Nunca mais se meteram com os Mucubais! Como muito bem o Antº Rosinha diz, os Mucubais tornaram-se, de facto, «independentes, ninguem mandava neles, nem no gado deles, nem chefes de posto, nem missionários, nem tropa, nem policia, nem tinham médicos nem enfermeiros, nem outrs tribos vizinhas entravam no seu território, e se havia algum comerciante (negócio de permuta)esse não mandava, apenas convivia e negociava.» Um soldado da minha companhia, que era natural de Moçâmedes e era muito conversador, contava isto mesmo, tal e qual. Este soldado nutria a mais completa admiração pela valentia dos Mucubais, por serem homens capazes de enfrentar leões armados apenas de lança!

Um abraço


Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alferes miliciano da C.CAÇ. 3535 do B.CAÇ. 3880, Angola 1972-74

Cherno Baldé disse...

Caro Fernando Ribeiro,

O nome Niloticos que remete ao vale do rio Nilo é sempre preferivel do que o nome Camitas ou Hamitas que a etnografia tradicional europeia nos seus primordios consagrou a estes povos atribuindo-os uma origem imaginaria e que nao teria nada a ver com os povos africanos.

Os Camitas/Hamitas, de acordo com essas teorias satanicas que prepararam o terreno para o advento do esclavagismo, eram vistos como descendentes da personagem biblica Cam, filho de Noé, que tinha sido amaldiciodo pelo pai por ter descoberto a sua nudez. os seus descendentes, supostamente, seriam divididos em dois grupos:

1. Berberes, Fulbé ou Fulanis (fulas), Haussas etc...
2. Egipcios, Etiopes, Oromos, Somalis, Tutsis, etc...

Distinguindo-se dos povos Negroides por certas caracteristicas fisicas (estatura pequena, corpo esbelto e longilineo, nariz saliente, pele Morena ou acobreada etc...

No fundo, eram teorias pseudo-intelectuais que assim preparavam o terreno para o que viria a acontecer com os africanos, diabolizand-os para melhor justificar o comercio de escravos iniciado pelos arabes nas regioes do Sahel e intensificado pelos europeus pela via maritima.

O que mais me chamou a atençao sobre os Mucubais é a tradiçao do enterro dos mortos em que os adultos sao enterrados juntamente com o seu animal (touro) de estimaçao que o vai acompanhar para o além. Entre os Fulanis da costa occidental de Africa, esta tradiçao ja se perdeu na noite dos tempos, mas sabemos que também era assim e o que ficou como tradiçao é mostrar aos filhos, logo apos a nascença, a sua vaca ou seu touro de baptismo. As filhas, por sua vez, receberao a sua parte em forma de dote, no dia do seu casamento.

Abraços,

Cherno Baldé

Fernando Ribeiro disse...

Caro Cherno Baldé,

Quer então dizer que o termo Camitas tem origem numa referência à Bíblia?! Sempre a aprender.

Já que falou em Berberes, lembro-me de uma viagem que fiz a Marrocos e em que alguém se referiu aos marroquinos como sendo brancos.

- Nós não somos brancos - retorquiu um marroquino. - Somos africanos.

- Pois, está bem. São africanos... brancos.

- Não, não - insistiu o marroquino. - Nós somos só africanos. Não somos brancos.

E explicou:

- Os únicos marroquinos que são brancos são os andaluzes, porque são descendentes dos muçulmanos que fugiram da Península Ibérica quando o Reino de Granada foi conquistado pela Espanha. Eles são brancos porque são europeus. Mas eu não sou europeu, nem branco. Culturalmente sou árabe, mas etnicamente sou berbere. Logo, sou africano. O deserto do Sahara, ao contrário do que se possa pensar, não separa; une. Durante milénios e milénios o Sahara foi atravessado por caravanas que estabeleceram um contacto permanente entre todos os povos que viviam à sua volta, tornando-os irmãos uns dos outros, inclusive irmãos de sangue. Quer vivamos a norte ou a sul do deserto, somos todos irmãos e africanos.

Um abraço