Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quarta-feira, 11 de dezembro de 2019
Guiné 61/74 - P20440: Historiografia da presença portuguesa em África (191): A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (6): "O Império Marítimo Português”, por Charles Ralph Boxer; Edições 70, 2017 (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Janeiro de 2019:
Queridos amigos,
Os documentos falam por si, as nossas práticas coloniais pautaram-se pela discriminação e preconceito de caráter racial, não se podem abafar as provas. A questão não teria nada de grave se acaso não se tivesse fabricado o argumento propagandístico, para uso nacionalista, que a presença portuguesa na esfera colonial era multirracial, civilizadora e sustentada por valores humanistas e uma profunda tolerância religiosa. Não só não foi assim como na envolvente do tráfico negreiro se usaram práticas comuns às outras potências coloniais.
Como iremos proximamente apreciar.
Um abraço do
Mário
A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (6)
Beja Santos
Fez-se referência a uma obra de leitura obrigatória para entrar numa discussão fundamentada se houve ou não, e com que extensão, racismo no colonialismo português: “O Império Marítimo Português”, por Charles Ralph Boxer, introdução de Diogo Ramada Curto, Edições 70, 2017. O eminente historiador britânico lança-se na discussão com muitíssima documentação, e mostra à saciedade como as ordens religiosas praticavam no Oriente uma ostensiva discriminação, europeus de um lado, os muitos outros do outro. A situação brasileira era igualmente delicada, e a legislação que visava aplainar diferenças entre brancos, aborígenes cristianizados, mulatos e pretos, era muitas vezes letra morta. Os candidatos à ordenação deviam ser, entre outras coisas, isentos de qualquer mácula racial de “judeu, mouro, mourisco, mulato, herético ou de outra alguma infecta nação reprovada”. Nada de sangue impuro. Tal como tinha acontecido na Índia portuguesa, desenvolveu-se no Brasil uma rivalidade considerável entre os frades crioulos e os seus colegas de origem europeia.
Referiu-se anteriormente que não há abordagem linear nesta questão, há matizes de complexidade, e Boxer não foge a exemplificações que a fazem avultar. Os monges Beneditinos do Rio de Janeiro educavam alguns mulatos descendentes de mães escravas mas não admitiam mulatos nas fileiras da sua própria Ordem. A discriminação racial, omnipresente na Igreja que pregava ostensivamente a fraternidade, estendia-se a outras profissões: Forças Armadas, administração municipal e corporações nos artífices. Para ser admitido na Ordem de Santiago era preciso provar ser de sangue nobre e de nascimento legítimo, “sem qualquer mistura racial, ainda que remota, de mouro, judeu ou cristão-novo”, havendo posteriormente de provar que os pais e avós de ambos os lados "não haviam nunca sido pagãos, rendeiros, cambistas, mercadores, usurários nem empregados do mesmo género”.
Mas uma coisa eram os princípios, outra a prática, como Boxer exemplifica. A João Baptista Lavanha, Matemático-Chefe e Cosmógrafo Real de Portugal em 1591, foi concedido o grau de Cavaleiro da Ordem de Cristo, se bem que fosse descendente de judeus de ambos os lados. Um ameríndio puro, Dom Filipe Camarão, e um negro puro, Henrique Dias, obtiveram ambos o Grau de Cavaleiro da mesma Ordem pelos notáveis serviços prestados na luta contra os holandeses no Brasil.
E escreve Boxer:
“As desqualificações raciais limitavam-se inicialmente a indivíduos descendentes de judeus, mouros e hereges, tratando-se tanto de um preconceito religioso, como racial; mas, desde o início do século XVII, fazia-se uma discriminação legalizada e específica contra negros e mulatos, por causa da ligação estreita entre a escravatura humana e o sangue negro. Este facto foi confirmado e renovado por uma lei promulgada em Agosto de 1671, que relembrava que ninguém com sangue judeu, mourisco ou mulato, ou casado com uma mulher nessas condições, estava autorizado a ocupar qualquer posto oficial ou qualquer cargo público”.
Críticas a estes procedimentos foram muitas, e Boxer recorda-as, e depois volta a escrever o seguinte:
“Se os negros, mulatos e todos os indivíduos com mistura de sangue africano foram considerados durante séculos ‘pessoas de sangue infecto’ no Império Português, o mesmo aconteceu com os descendentes dos judeus que haviam sido convertidos à força ao catolicismo em 1497. A partir de então, a sociedade portuguesa ficou dividida em duas categorias, cristãos-velhos e cristãos-novos, e assim continuou durante quase três séculos (…). Infelizmente para os cristãos-novos, depois de 1530 nunca mais puderam contar com a protecção da Coroa, que, a partir de então, se colocou ao lado dos seus perseguidores. D. João III havia acabado de se convencer da realidade da ameaça dos cristãos-novos, e, por insistência sua, foi introduzido em Portugal o Santo Ofício da Inquisição”.
A vida dos cristãos-novos transformou-se num verdadeiro calvário, o alívio chegou com a revolução liberal de 1820.
Concluído o exame da pureza de sangue e das raças infectas, Boxer faz uma apreciação dos conselheiros municipais e dos irmãos de caridade. Diz que os portugueses conseguiram transplantar e adaptar com êxito estas instituições metropolitanas para meios exóticos, mas com menos severidade, havia discriminação racial.
E escreve:
“A tendência foi para manter o elemento branco dominante durante o maior prazo de tempo possível. Isso aconteceu sem dúvida em locais como a Baía e o Rio de Janeiro, onde havia todos os anos uma penetração de sangue branco vindo de Portugal, e onde se havia fixado e estabelecido uma aristocracia local de senhores de engenho (…). Os preconceitos contra os cristãos-novos duraram também muito na administração principal. D. Manuel, apesar de os ter obrigado a converterem-se à força, fez posteriormente tudo o que pôde para integrar estes convertidos na sociedade portuguesa. Até 1572, a guilda dos ourives de Lisboa elegia ainda os seus representantes numa base de igualdade entre cristãos-velhos e cristãos-novos”.
Passando para a análise dos irmãos de caridade, os estatutos da Misericórdia eram bem claros: pureza de sangue logo em primeiro lugar.
E para que não haja lugar a dúvidas escreve:
“As Misericórdias, tal como as irmandades religiosas exclusivamente para brancos, eram, de um modo geral, se bem que não invariavelmente, defensoras acérrimas da superioridade étnica da raça branca e das distinções classistas”.
Estas discriminações e preconceitos estendiam-se também ao funcionamento da administração, incluindo as câmaras municipais.
E voltando a falar de preconceitos, oiçamos o que escreve Boxer:
“Os preconceitos não oficiais eram muito mais profundos e duraram muito mais tempo do que as atitudes oficiais variáveis no que diz respeito a relações raciais. A correspondência de sucessivos vice-reis, desde o século XVI ao XIX, é fértil em queixas acerca da inferioridade moral e física, real ou pretensa, dos mestiços e canarins em relação aos Portugueses nascidos e educados na Europa. Sempre que possível, os vice-reis e governadores colocavam brancos nos cargos militares e administrativos mais importantes, tal como o faziam os arcebispos e os bispos quando escolhiam os ocupantes para altos cargos eclesiásticos. Os conselheiros municipais de Goa, a maioria dos quais eram casados com mulher euroasiáticas, queixavam-se à Coroa em 1607 de que quando havia comandos militares ou cargos governamentais que ficavam vagos, estes eram atribuídos a adolescentes recém-chegados de Portugal que nunca haviam assistido a qualquer combate”.
E vamos ver seguidamente as conexões entre escravatura e racismo, escolhe-se o exemplo do que era ser escravo em S. Tomé e, por outra via, far-se-á alusão às rotas da escravatura entre meados do século XV e finais do século XIX.
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 4 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20414: Historiografia da presença portuguesa em África (190): A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (5): "O Império Marítimo Português”, por Charles Ralph Boxer; Edições 70, 2017 (Mário Beja Santos)
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10 comentários:
Completamente acríticos, reaccionários,tergiversados, racistas, anti-portugueses, estes comentários do Mário Beja Santos a um livro importante do Charles Boxer.
A História da Expansão Portuguesa e expansão europeia pelo mundo tem de ser vista de acordo com as mentalidades da época. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (em que todos os homens são teoricamente iguais em dignidade e em direitos) é dos anos 40 do século XX, com raízes nas utopias maçónicas da Revolução Francesa, de 1789, de que destaco os ideais infelizmente jamais concretizados de liberdade, igualdade e fraternidade. Lançar hoje o opróbio e a vergonha sobre práticas comuns em séculos passados, quando prevaleciam diferentes contextos de práticas sociais e de entendimentos do mundo, é de uma desonestidade galopante. Há quem goste.
Abraço,
António Graça de Abreu
Graça Abreu
Devemos queimar todos os livros e filmes sobre colonialismo, racismo e escravatura?
Devemos aplicar penas de prisão a quem os escreveu, publicou e publicitou?
Devemos aplicar as leis da inquisição e as práticas dos nazis para estes casos?
Mas só em relação aos portugueses ou em geral?
No ano passado foi descoberto, ter havido uns tubarões que acompanhavam os barcos negreiros, nos séc. XVI-XVII-XVIII, nas travessias das costas de África até ao Brasil e Antilhas, que se viciaram em carne de escravos que morriam e eram atirados ao mar. Essa espécie de tubarões extinguiu-se por não se adaptar a outra 'comidinha'
Estes cientista autores da descoberta devem ter sido uns palermas opróbios sem vergonha na cara e sem consideração pela História da Expansão Portuguesa da expansão europeia pelo mundo.
Abraço
Valdemar Queiroz
“Os preconceitos não oficiais eram muito mais profundos e duraram muito mais tempo do que as atitudes oficiais variáveis no que diz respeito a relações raciais.
Duraram e continua a durar, hoje, quer oficiais, quer não, excepto no futebol, bem entendido.
Isto, aqui, no rectângulo, claro que no resto da Europa têm tendência a agravar-se todos os preconceitos, com estes problemas da travessia do mediterrâneo a nado.
Caso da Inglaterra, nem é preciso mais explicações do que o principal candidato à saída do shenghen já deu.
Caro Valdemar,
Não devemos queimar livros nenhuns,não devemos aplicar nenhumas penas a ninguém,não devemos aplicar nenhumas leis da inquisição ou nazis(?). A ignorância do nosso passado não é boa conselheira.
Eu não tenho nenhum medo das verdades históricas, o racismo, a escravatura,o colonialismo existiram, ainda existem, a escravatura ainda existe em África, por exemplo.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de Dezembro de 1948, estipula no seu artigo nº.4 "Ninguém será mantido em escravidão ou servidão, a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas."
Isto em 1948.
Há todo um passado de que não nos devemos orgulhar, mas repara que Aristóteles, na velha Grécia democrática (democracia só para alguns, entenda-se!) defendia a escravatura que prevalecia na sociedade grega.
Aqui a questão é conhecer o passado da nossa Expansão pelo mundo, expansão portuguesa e europeia, entendê-la, inseri-la nos conceitos e valores,ou ausência de valores, da época, e não passarmos o tempo a dar tiros nos pés, acusando-nos de mil crimes possíveis, impossíveis e imaginários.
Abraço,
António Graça de Abreu
Um mail que recebi agora mesmo, de um tal João Mendes, que nem sei quem é, mas português como eu, eventualmente com sangue negro nas veias, como quase todos nós.
Respeitem este imenso, exaltante e tão difuso sortilégio de termos nascido portugueses.
"Em tempos antigos foram levados negros africanos (escravos) para trabalhar no cultivo do arroz no vale do Sado (Portugal), porque já estavam naturalmente vacinados contra o paludismo (então chamado, em Portugal, de febre de sezão, ou as sezões), o qual dizimava as populações portuguesas tradicionalmente empregadas nessa actividade. Os descendentes da mistura desses antigos escravos negros com as populações locais ainda são conhecidos pelos “carapinhas do Sado”. Dizem que, antigamente, quando as moças iam à vila eram gozadas “olha, vem aí as pretas de calcanhar rachado”. Hoje, aparentemente, são alentejanos, como outros quaisquer, só que com a pele mais curtida, e mais conhecedores e orgulhosos das suas origens. Mário Soares, por ventura, no decorrer de uma campanha eleitoral ou numa visita presidencial qualquer, deu-lhes uma boa força e equiparou-os aos restantes portugueses, fruto de uma caldeirada de raças (muito ADN misturado) e que por isso deveriam sentir-se orgulhosos do seu portuguesismo (saber que são diferentes dos outros, mas iguais.)"
Abraço,
António Graça de Abreu
Graça Abreu
Eu já escrevi no blogue sobre este assunto, incluindo sobre a fisionomia de algumas pessoas da localidade Portas do Transval, perto de Odemira. Por certo, e por haver na zona arrozais, teriam sido da mesma gente que trabalhava nos arrozais do Vale do Sado. Sortilégio de terem nascido portugueses, então haveriam de ser o quê? Só não sabemos, ou é uma questão de pesquisa, quanto tempo toda aquela gente continuou a ser escrava. Também os houve nos fornos das fábricas de pão, na zona do Montijo, que alimentavam as naus e caravelas (o famoso biscoito) e, destes, poucos tiveram o mesmo sortilégio.
E quanto aos nazis, referia-me às 'noites de cristal' com a queima de milhares de livros pelos 'SA'.
(….. mas sobre tudo isto o que é que responderemos às criancinhas?)
Abraço
Valdemar Queiroz
As meninas da rebeira do sado é que éi!!!
Lavram na terra c'as unhas dos péis!!!
As meninas da rebeira do sado são com'ás ovelhas
Têm carrapatos atrás das orelhas
(Adiafa)
Charles Ralph Boxer, que Beja Santos nos traz aqui, depois de consultar no google, verifiquei que teve o seu passado de colonialista, como eu tive, o que não é desonra nenhuma.
Penso que se ele fosse ainda vivo teria votado, hoje, nos que ganharam as eleições inglesas, os conservadores.
Claro que como bom colonialista, não nos condena como colonialistas em si que nós fomos, apenas nos aponta os nossos processos que usámos para praticar as atrocidades e os racismos contra os colonizados, que ele acha estranhos, pois, digo eu, os britânicos, nunca teriam o topete de usarem, porque os processos por eles usados, foram concerteza em qualidade e quantidades um pouco mais em regime industrial.
Se é verdade o que a internet diz dele, ele é tal qual comotodos os estrangeiros, (franceses, ingleses) que escrevem sobre as nossas "epopeias", isto é, dão voltas e mais voltas, para entenderem, e com tantas voltas, não conseguem mais que morder o próprio rabo.
Vejam uma que saquei para ele explicar um dos nossos sucessos:
"Na década de 1640, quando os holandeses podiam convocar mais de 10.000 navios armados, os portugueses podiam encontrar apenas 20. Como então Portugal resistiu com sucesso no Brasil e na África? Boxer mostra que a chave do sucesso português está na forte lealdade familiar e institucional e, acima de tudo, na cultura religiosa católica".
Ora porra, esta faz lembrar o tal processo que Dom Afonso Henriques usou para vencer os cinco reis mouros, as tais lendas do Cristo aparecer ao nosso primeiro...se este inglês fosse à fava! mais a sua explicação!
Eu podia-me estender sobre as minhas certezas que aqui trago, sobre a tendência de voto deste "SIR", e sobre o milagre dos tais 20 barquinhos, contra os 10000, mas não é o lugar.
Fica para um dias, talvez quando BS termine o resto das baboseiras que este SIR nos traz.
E não é que vai ser implantado um Memorial, em Lisboa, lembrando o papel que Portugal teve na escravatura? Caro Graça de Abreu, e não é para te provocar, acredita. Faz parte da História da Humanidade e não pode ser escondido debaixo do tapete.
Abraço
Carlos Vinhal
Leça da Palmeira
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