sábado, 14 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20450: (De)Caras (145): Maria Barba (1900-1975), a primeira embaixadora da morna, muito antes de Bana e de Cesária (Manuel Amante da Rosa / Onda Kryolu / Otília Leitão)


Nha Maria Barba, com um dos netos ao colo, em Bissau, c. anos 50, na sua casa em Bissau, na Rua Eng Sá Carneiro (hoje, Rua Eduardo Mondlane)... Nos anos 60/70, em frente da casa ficava a messe de sargentos da FAP.

Foto (e legenda): © Nelson Herbert (2019). Todos os direitos reservados. [Edição elegendagem complementar. Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Manuel Amante da Rosa,  embaixador da República de Cabo Verde, que terminou há um ano a sua missão em Itália (e Malta),  mandou-nos a seguinte mensagem em resposta a um email dirigido a Carlos Felipe Gonçalves (*), com conhecimento a vários amigos e camaradas, nomeadamente de Cabo Verde que pertencem também, doravante , à Tabanca da Diáspora Lusófona, cujo régulo, designado, assumido e empossado, é o nosso querido amigo e camarada luso-americano João Crisóstomo.


Date: quinta, 12/12/2019 à(s) 14:32
Subject: A morna imortal "Maria Barba"

Luís:

Muito feliz por vos ver juntos. O meu Amigo Kalú, meu antigo Camarada na Chefia dos Serviços de Intendência no QG [, em Bissau,], é uma figura ímpar na Rádio de Cabo Verde. 

[Em resposta ao teu pedido,] retirei este trecho sobre a Maria Barba num posto do Facebook [Onda kryolu,  12/12/2019]


2. Muito antes do Bana e da Cesária, Maria  Barba foi a primeira embaixadora da morna  

por Onda Kryolu

Foi ela que, pela primeira vez, terá cantado a morna fora das ilhas, em 1934, no Palácio de Cristal da cidade do Porto, representando Cabo Verde com um grupo de músicos e cantadeiras na Primeira Exposição Colonial Portuguesa. (**)

Seis anos mais tarde, em 1940, terá cantado e encantado na Exposição do Mundo Português em Lisboa, tendo o sucesso sido tal que foi parabenizada  pelo próprio Presidente de Portugal, Marechal Carmona.


Seu nome? Maria da Purificação Pinheiro. Ou simplesmente Maria Barba [ foto de 1934 em Portugal, (à direita)].

Maria Barba fica na história como co-autora da letra de uma das mais simples e das mais belas mornas jamais ouvidas, uma morna que leva o seu nome e até hoje cantada por muitas  das mais nobres vozes do arquipélago.

Mas quem é essa mulher que não se conhecia o rosto mas cujo nome merece figurar no Livro de Ouro da história da morna?

Neste dia em que comemoramos a elevação da morna à categoria de Património Imaterial do Mundo vale a pena recordar sua vida, prestando homenagem a essa "pioneira" da internacionalização da morna e que foi, também, uma das maiores "cantadeiras de frente de todos os tempos" e uma das maiores intérpretes do seu tempo daquela que tornaria a "musica rainha de nos terra " e hoje uma das relíquias da humanidade.

Maria Barba nasceu, provavelmente, em 1900, na Povoação Velha, Boavista, ali mesmo no berço da morna... Criancinha começou a cantar, rezando a  a história que ela tinha que ser colocada de pé sobre uma cadeira. Cresceu, e sua fama de grande cantadeira também cresceu por toda a ilha e não só, sendo   sua presença requisitada em tudo quanto era festa e  cerimónia  oficial das entidades coloniais da ilha da Boavista dos anos 30.

Foi justamente numa festa oficial de despedida, na Povoação Velha, que o Tenente Serra, na hora da partida,  a terá pedido para cantar mais uma morna a que  Maria Barba simplesmente improvisou : "Senhor Tenente um ca podê canta más ".

Vida sofrida

Maria Barba casou cedo, com um rapaz de Santa Catarina, ilha de Santiago, que nunca foi aceite pela sua família. O casamento não deu certo e o marido voltou para a ilha de Santiago, ficando ela  com duas  filhas para criar (Clarise e Aldonsa ).

É talvez para estar junto das filhas e da mãe que era "fraca"  (o pai  era morto e não "malondre",  como Bana foi o primeiro a cantar)  talvez seja para estar junto da família que Maria Barba recusou  o convite de empresários musicais para ficar em Portugal, preferindo voltar, em 1940, para a sua Boavista natal onde  aliás só encontrou fome e desolação (era  mais uma das terríveis estiagens).  

No mesmo ano (1940)  pegou nas suas filhas e  embarcou  para  Bissau a bordo do navio Manito Bento (o mesmo que levava contratados para S.Tomé ).  Em Bissau Maria Barba "luta ku vida " durante 34 anos, sempre a cantar a morna e outras melodias da sua ilha,   sempre  divulgando a música da sua terra natal em serenatas e cerimónias oficiais, quase sempre acompanhado por Zezinho Caxote, um outro cabo-verdiano radicado em Bissau. Foi em Bissau que morreu aos 70 anos no dia 02 de Julho de 1975 ( nas vésperas da independência de Cabo Verde).


3. A filha de Maria Barba,  Clarisse Pinheiro, a viver em Portugal (, fazemos votos para que ainda seja viva!), é citada por Otília Leitão num "Postal de Lisboa", publicado no jornal "A Semana", de 20 de março de 2008, cujo URL já não está disponível na Net. Aqui vão alguns excertos que publicamos em 2014 (***)

A Semana > Opinião > Otília Leitão > Postal de Lisboa, 20 Março 2008:

(...) Clarisse [Pinheiro, a viver em Portugal] fala com emoção de sua “mãe Bárbara” ou da “Maria Barba”, a autora da morna com o seu nome, que a voz do grande Bana imortalizou. É uma das mais belas e mágicas músicas que eu, como muitas outras pessoas que conheço, interiorizei como uma grande paixão do oficial de cavalaria e engenheiro civil, Serra, obrigado a partir para Lisboa. Afinal, era uma desgarrada de despedida e saudade porque o amor era pela Victória, sua amiga, de quem o Tenente que habitava numa rocha, teve duas filhas que vivem actualmente na América. (...)

Os protagonistas que deram alma a esta morna cantada também por outras vozes da modernidade, já morreram. Ele em Lisboa. Ela, no dizer de Clarisse, uma “moça bonita” da Boa Vista que tinha a particularidade de ser “tão expressiva na alegria como na tristeza”, morreu, na Guiné-Bissau, ao fim de 34 anos, em 1974, no raiar da Independência. (...)

(...) Desde criança, Maria Bárbara cantava tão bem que era habitual vê-la em cima de uma cadeira, de vestido domingueiro, animando festas e convívios, conta Clarisse. “Eu era ainda bébé, nem tinha dentes, quando a minha mãe veio cantar ao Palácio de Cristal no Porto [, em 1934], e foi recebida e cumprimentada por Craveiro Lopes”,  diz a filha,  reportando-se a 1940 quando Maria Barba, em representação da colónia de Cabo Verde, participou na grande Exposição do Mundo Português. 

Pese embora a insistência de alguns empresários para que a sua mãe ficasse em Portugal, ela escolheu regressar à Boa Vista. Pouco depois parte para a Guiné.

Por causa da letra de “Maria Barba” - a morna mais antiga que faz uma referência a Lisboa e a primeira que foi gravada na sua versão integral e a duas vozes (Luís de Matos e Maria Alice) no CD “Lisboa nos Cantares Cabo-verdianos” - não resisti a uma provocação: “Oh Clarisse! Quantas paixões silenciosas, por diversos motivos, não existiram?!”. Mas Clarisse foi convicta: “Não! Ele [, o tenente Serra,]  era casado com a Victória! Essa era a sua paixão!” e sorriu. 

É seguramente uma Morna de despedida e saudade de alguém muito estimado, mas que tem uma postura típica do período colonial em que Lisboa, a cidade que Hans Christian Andersen já em 1866 considerava “luminosa e bela”. Era o "Eldorado", de onde se esperava que viesse a salvação de todos os males do arquipélago.

Clarisse Pinheiro desmistifica a minha ilusão doce e diz-me que Maria Barba quer satisfazer o pedido do Tenente Serra em cantar mais nessa festa de despedida. Contudo tem uma tarefa a cumprir: ”Tinha que ir fazer uma matança de gafanhotos”, uma praga que afectava as culturas e que obrigava a que cada família cedesse uma pessoa para o fazer. Como o pai já tinha falecido e a mãe era “fraca”,  ela era a representante da família.

Testemunhos de vários artistas boavistenses, como António “Sancha” Neves e Noel Fortes, referem a existência de várias versões desta Morna do final do século passado, da qual a Maria Barba aproveitou a melodia para improvisar. A versão do grupo Djalunca da Boa Vista parece ser a mais fiel à letra original (...).

Clarisse Pinheiro que ouviu muitas vezes sua mãe cantar, disse que Bana se encontrou com Maria Barba na Guiné, onde ouviu pela primeira vez na rádio a sua morna. “Não há registo, não há direitos de autor, nunca foi reposta essa verdade”, observa a filha mais nova de Maria Barba que apenas conheceu Bana em Portugal, num espectáculo na FIL, movida por esse "animus" que lhe fora transmitido pela mãe. No entanto, explicou, "foi um cumprimento fugaz e banal, esfumando-se a expectativa de qualquer eventual reconhecimento", disse.

Clarisse nasceu em Santa Catarina, Santiago, em 1932, de um parto solitário,  executado pela sua própria “mãe Barba” e testemunhado pela sua irmã Aldônça, então com dois anos. Divergências entre o casal, ligadas ao facto da sua mãe, ainda menor, ter sido raptada pelo marido, e de um casamento mal visto pela família, fizeram Maria Bárbara regressar à Boa Vista, dias depois, de barco. Ainda em 1940, e porque a crise da segunda guerra mundial se fazia sentir no aumento do custo de vida, as três, aconselhadas por um tio escrivão, rumaram à Guiné num barco de Manito Bento que, antes de chegar ao destino, se perdeu pela Gâmbia. (..)
Tinha 16 anos quando sua irmã, que vivia em Bafatá, casou com um bisneto do governador Honório Barreto, e viveu na Guiné-Bissau até 1980. Geria uma farmácia do seu companheiro que conheceu na pele as perseguições da PIDE (polícia política do regime colonial). Actualmente, Fernando Lima, com 80 anos, é apenas seu amigo. Ali conheceu Amilcar Cabral, entre outras destacadas personalidades que recorriam aos seus serviços. 

“O pai de Aristides Pereira (primeiro presidente de Cabo Verde independente) era padre e baptizou os meus filhos”, recorda. Clarisse não conhece Cabo Verde. Apenas aqui voltou em 1957, aos 25 anos para descobrir no Tarrafal, seu pai, que entretanto já tinha onze filhos... Nunca mais voltou e as suas referências reportam-se essencialmente à Guiné-Bissau. 

Não resistindo à continuada degradação da sua vida, num período pós-revolucionário, fixou-se em Portugal onde estão também dois filhos e quatro netos, sem que alguma vez se tenha desligado desta triologia feminina: a mãe e as duas irmãs. (..,)

[Excertos reproduzidos com a devida vénia]
_________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 9 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20328: Meu pai, meu velho, meu camarada (59): "Maria Bárbara, canta mais uma morna... / S’nhôr Tenente, ‘m câ pôdê cantá más... Uma morna imortal, numa homenagem à Morna, em vias de ser oficialmente consagrada como "património cultural imaterial da humanidade"

Vd. também 5 de dezembro de 019 > Guiné 61/74 - P20416: O que é feito de ti, camarada (8): Carlos Filipe Gonçalves, ex-fur mil amanuense, QG/CTIG, Bissau, 1973/74, membro da Tabanca Grande, com o nº 790; jornalista aposentado, vive na Praia, ilha de Santiago, Cabo Verde... Está a escrever dois livros, um sobre a história da morna; outro sobre as suas memórias dos anos de 1973/75... E precisa de duas fotos: uma do QG em Santa Luzia, e outra da messe de sargentos no QG...

(**) Vd. último poste da série "De)Caras"  > 14 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20343: (De)Caras )115): "Nha Maria Barba" ou Maria da Purificação Pinheiro (Boavista, 1900 - Bissau, 1975): expoente máximo da morna e da morabeza da Boavista, esteve no Porto, no Palácio de Cristal, em 1934, na 1ª Exposição Colonial Portuguesa: notas de leitura de um trabalho de pesquisa biográfica, feita por Antonio Germano Lima, da Universidade de Cabo Verde

Vd. também:

12 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20443: E as nossas palmas vão para... (20): A morna, património imaterial da humanidade

11 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20332: Historiografia da Presença Portuguesa em África (184): O modelo (Maria Barba) e o fotógrafo (José Bacelar Bebiano)... A propósito de uma morna "imortal"...Resta saber quem era o "senhor tenente Serra"...evocado na letra "Mária Bárbara, canta mais uma morna... / S’nhôr Tenente, ‘m câ pôdê cantá más...

(***) Vd. poste de 9 de outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13713: Caderno de Poesias "Poilão" (Grupo Desportivo e Cultural dos Empregados do Banco Nacional Ultramarino, Bissau, Dezembro de 1973) (Albano de Matos) (6): Homenagem a Mário Lima e Aguinaldo de Almeida, já falecidos, meus colegas do BNU, em Bissau (António Medina, ex-fur mil inf, CART 527, Teixeira Pinto, Bachile, Calequisse, Cacheu, Pelundo, Jolmete e Caió, 1963/65; natural de Santo Antão, Cabo Verde, vive hoje nos EUA)

2 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Manuel e Carlos: Já em 1943, o meu pai cantarolava essa morna, "Maria Barba"... Ele, expedicionário em São Vicente, Mindelo, entre junho de 1941 e setembro de 1943, trouxe, na sua memória, entre mornas e coladeras, essa fabulosa, tocante, imortal, "Maria Barba, cant mais uma morna"... Já velhote (ele morreu em 2012, para o ano faria 100 anos!), cantarolava-me essa morna. "Maria Barba", e coladera "Trocolança", sinal de que eram muito populares, entre os miitares portugueses, destacaddos em São Vicente, a partir de 1941... O meu pai esteve no Mindelo no tempo do futuro escritor Manuel Ferreira, e do estudante de liceu, Amílcar Cabral. E toda a vida ficou marcado pelas boas (e más) memórias de Cabo Verde, e do Mindelo em particular. Não me perdoo nunca o ter conseguido lever ao Mindelo, em vida, em "turismo de saudade"...

Otília Leitão disse...



Clarisse, filha de Maria Barba, tem netos em Lisboa. Eu conheço um neta que se chama Bárbara! curioso não é?