segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20432: Notas de leitura (1244): “Missão na Guiné, Cabedu, 1963-1965”, por António José Ritto e Norberto Gomes da Costa, com a colaboração de José Colaço; DG Edições, 2018 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Novembro de 2019:

Queridos amigos,
Não é propriamente a história da CCAÇ. 555, são depoimentos soltos e o do então Capitão António José Ritto é de uma extraordinária beleza, lê-se com comoção, é o respigar daquilo que se vincou na sua memória. E o que escreve desvela a Guiné de 1963: a impreparação com armamento adequado, a existência de uma população sujeita ao duplo controlo, a mata do Cantanhez tornara-se num eixo vital para o abastecimento das diferentes bases de guerrilha: lê-se o que foi uma empolgante adaptação ao terreno, cuidando da segurança e de dar mais conforto e assistência sanitária às populações locais.
Tudo escrito sem uma nesga de farronca, prosápia ou a jeito de grandiloquência para basbaque agradecer.
Documentos de grande simplicidade. E quando se lê que foi preciso esperar por Spínola para fazer ação psicossocial a sério, temos que reconhecer que só é novo aquilo que foi esquecido, para alimentar os mitos.

Um abraço do
Mário


Cabedu


A CCAÇ 555 em testemunhos pujantes de fraternidade

Beja Santos

A obra intitula-se “Missão na Guiné, Cabedu, 1963-1965”, escrevem António José Ritto e Norberto Gomes da Costa, a colaboração é de José Colaço, DG Edições, 2018. Lê-se com profunda admiração tudo quanto registou António José Ritto, um oficial octogenário que serviu na Índia, na Guiné e em Moçambique. A CCAÇ 555 era independente, fez a sua preparação só dispondo das Mauser. Logo na mobilização vem uma pincelada de humor: “Aproveitámos estar em Lisboa para arranjar quatro conjuntos de cartas militares de toda a Guiné, e como o nosso médico informou que se ajeitava a arrancar dentes, ainda conseguimos material próprio, que foi muito utilizado nas dores de dentes do pessoal da companhia, no da zona vizinha que era Bedanda, e que ali se deslocou de avioneta, e pela população de Cabedu”.
Chegaram a Bissau e houve que lidar com a G3, após oito dias de treino partiram para Cabedu em barcaça. Cabedu, ao tempo, resumia-se a quatro pequenas casas, sendo uma da Casa Comercial Gouveia e outra da Ultramarina e as duas restantes de dois libaneses que tinham abandonado a região e que a companhia aproveitou.

Mal chegados, encetam os patrulhamentos e as emboscadas, António José Ritto não é parco nos elogios, logo destaca a equipa das Transmissões. Havia igualmente muito a fazer no interior do quartel, lançaram mãos à obra, empreenderam a desmatação, fez-se um cano de aviação, aproveitando-se as palmeiras para criar abrigos. Segue-se uma pincelada de ternura: “Com tanta atividade operacional e tanto trabalho realizado, as energias estavam gastas ao fim de cada dia. Em dois anos nunca houve atritos ou discussões. Só amizade e camaradagem”. Pintou-se a tinta branca no telhado em letras garrafais “Visite Cabedu”. Agora que se fala tanto em descarbonização, veja-se como a tropa era bem ecológica: “Fizeram-se cadeiras com as aduelas das barricas e uma mesa com o tampo suportado por um tronco de palmeira, porque não havia cadeiras, nem mesas”. O diálogo com a população era ativíssimo, vivia-se então uma época em que era usual o duplo controlo. A três quilómetros havia uma tabanca com gente de etnia Nalu e Sossa. Os jovens tinham partido para a mata do Cantanhez, mas o relacionamento com os mais novos foi excelente, davam-se aulas de carpintaria, de mecânica-auto e um intenso apoio médico às populações. O resultado era bem o espelho do estado de espírito daquele povo: confiavam na cooperação da tropa mas davam arroz à guerrilha, a par disso também davam informações à tropa dos locais de passagem dos guerrilheiros. O autor justifica que era a única maneira de se poder manter a população naquela tabanca, sem proteção militar, sem arames farpados, tratando da subsistência. E deixa-nos um detalhe sobre o seu primor de caráter: “Entrámos uma vez numa palhota de onde saía um fumo que não permitia ver nada, mas com lanternas vi que tinha acabado de nascer uma criança e era assistida por uma velha feiticeira, que usava o fumo para anestesiar a parturiente e servia-se das cinzas para cauterizar o umbigo e ia utilizar uma agulha que era só ferrugem para cozer o umbigo. O médico agiu trazendo para o ar puro aqueles seres que já estavam desmaiados, tratou do bebé e da mãe. Comovi-me ao pensar nos meus filhos que tinham um e três anos e que já não via há um ano”.

1963 no Sul da Guiné é o mesmo que dizer acontecimentos explosivos, foi aqui, e na região do Morés, que se instalou o laboratório experimental do novo armamento do PAIGC: “Tivemos a sorte em detetarmos e desativarmos as primeiras minas antipessoal que colocaram na Guiné. Tratava-se das minas POMZ de fabrico soviético, constituídas por uma granada explosiva de fragmentação, fixas ao solo por um espeto de madeira e detonadas através de arame de tropeçar. Tinham colocado seis minas com os arames interligados entre elas”. Com o tempo, foram chegando as beneficiações, construiu-se o cais acostável, veio um pelotão de reforço com três bocas de fogo, e um importante gerador elétrico. Houve tentativas de a administração colonial praticar disparates que podiam deitar por terra todo o diálogo estabelecido com as populações. E o autor conta: “Quase no final da comissão, chega, numa avioneta, um indivíduo acompanhado por dois sipaios. Apresentou-se como o novo chefe de Posto para Cabedu; disse-me que tinha sido Cabo numa companhia que tinha regressado ao continente. Quando lhe perguntei qual era a sua missão, informou-me que queria que a CCAÇ 555 lhe desse proteção, porque queria cobrar impostos na povoação vizinha e não tinha qualquer outro objetivo. Rapidamente pensei que ele iria destruir dois anos de trabalho, realizado num apoio àquela população. Nuns segundos, mandei dizer ao piloto que não levantasse, porque o dito chefe de Posto ia ser recambiado no mesmo avião. Assim, com protestos e ameaças de que se iria queixar, lá se foi”.

Quanto ao episódio de um soldado que desvairou, embrenhando-se no mato, lá se foi no seu encalço e um helicóptero recolheu-o numa ilhota, tinha ganho consciência do enorme disparate que cometera, ajoelhou-se: “Perdão, meu capitão, eu não faço mal a ninguém”. E segue-se um comentário: “Compreendi que o soldado andara, andara sempre e com o tempo as águas subiram uns 200 metros e ele ficou isolado e perdido naquele espaço que a água não ocupou. Teria morrido se não fosse encontrado e eu ficaria traumatizado toda a vida se não o trouxesse de regresso à família”. Tocantes recordações, que serão completadas com as de Norberto Gomes da Costa, ao tempo furriel da companhia, que elenca as ações militares, entre operações e flagelações, enaltece o bom senso do Comandante da Companhia que nunca arrastara levianamente os seus militares para situações que poderiam ser desastrosas. Recorda Seco Aidara, provavelmente a pessoa que o Comandante mais ouvia, dá conta dos jogos de futebol e da caça, os momentos empolgantes da chegada do correio, as avionetas e os barcos de abastecimento, os soldados que completaram a instrução primária, os abastecimentos e a comida, e é bem comovente o que escreve sobre a despedida da companhia, em setembro de 1965: “Vi gente a chorar, parecendo já antever o drama que se haveria de abater sobre eles, a partir de 1974. Aquela comunidade identificou-se muito connosco, provavelmente pela política da companhia, sempre lesta para resolver ou ajudar a resolver as dificuldades e a dar um pouquinho de bem-estar a quem precisava".

Junta-se um conjunto de documentos com o cabeçalho “Cabedu visto do lado do PAIGC” e José Colaço procede à narrativa de uma escolta em que havia um guia que intentou uma traição, foi denunciado e entregue a João Bacar Djaló, em Catió. Colaço escreve: “O João reprimia as traições com bastante dureza. Ele mostrou o pau com que agredia os traidores no estômago, mas a resposta do falso guia foi: - Mim murre… mas não diz nada”.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 6 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20420: Notas de leitura (1243): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (35) (Mário Beja Santos)

4 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Ora aqui está o Mário Beja Santos de que eu gosto, com uma recensão enxuta e limpa!
Abraço,

António Graça de Abreu

Anónimo disse...

Caro Graça de Abreu

Estou a ficar preocupado com a tua saúde.

Um abraço do J.Belo

Valdemar Silva disse...

Eu não sou médico, mas ainda, para uma recensão enxuta e limpa do BS, falta uma fotografia com um nosso soldado de G3 e pretinho aos ombros e doutra com um soldado ao lado duma bajuda de belas mamas amostra. Isto sim é romantismo, nada de realismo que não tivemos cá disso. ah!ah!ah!

Evidentemente, que a 'Missão na Guiné, Cabedu, 1963-1965' é, também, um espelho bonito, e que muitos houve, da presença dos portugueses em todos os cantos mundo.

Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...


Saúdo o Norberto Gomes da Costa, é um dos veteranos da guerra da Guiné, e é membro da nossa Tabanca Grande desde 2008:

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/search/label/Norberto%20Gomes%20da%20Costa