sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20448: Notas de leitura (1245): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (36) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
Impunha-se um confronto de opiniões, entre as expressas por Leopoldo Amado e as de Hélio Felgas, para o mesmo período, não para saber quem tem razão e manipula com mais rigor os dados. Sabe-se que Hélio Felgas tinha claramente objetivos promocionais, mas há momentos em que o seu trabalho atinge o nível do paradoxo: o inimigo recua mas entretanto cresce, está cansado mas recebe melhor equipamento, há etnias desavindas com a guerrilha mas o apoio internacional é cada vez maior, etc.
Arnaldo Schulz, de toda a documentação publicada, como anteriormente Louro de Sousa, responderam ao desafio com a contingência dos meios oferecidos. Há um dado no livro de Hélio Felgas que forçosamente tem que impressionar o leitor de hoje, quando ele fala do Plano Intercalar de Fomento da Guiné que, ao contrário de províncias como Cabo Verde e Timor, não conhecia quaisquer benefícios, escândalo clamoroso num território a viver a ferro e fogo, e a situação alterar-se-á radicalmente com Spínola. Mas disso os estudiosos hoje não falam. Lendo as instruções e diretivas de Schulz, forçoso é constatar a veracidade da sua informação, ela ficará bem patente quando aqui se referir, com maior extensão, o que ele vai escrever e dar a conhecer ao Governo de Lisboa em 1 de Dezembro de 1966.
Fiquemos hoje por aqui.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (36)

Beja Santos

“Muito armamento se capturou
na primeira Companhia.
A 5 de Janeiro no Cacheu
grande desastre surgia.

Rapazes distinguiram
ao fim de uma caminhada.
E dentro da mata cerrada
um acampamento se destruiu.
Muitos objetos lá se viram
quando nossa tropa avançou.
Para Farim se levou
um rádio e munições
e com três pelotões
muito armamento se capturou.

Foi um dia recordado
ao fazerem 16 meses.
Com os Alferes Azevedo e Menezes
este tormento passado
foi Fausto e Abogão evacuado
com Naciolindo no mesmo dia.
O Natálio também se feria,
a 19 deste mês.
E fez bom serviço o Garcês
na primeira Companhia.

Tivemos grande azar
com o Pelotão de Morteiros.
Morrem oito companheiros
por não se poderem salvar.
14 deles a nadar
a sorte lhes apareceu
21 G3 se perdeu
no fundo da água salgada.
Foi esta coisa amargurada
a 5 de Janeiro no Cacheu.

Iam para uma operação
dentro da barca pequena
deu-se então a triste cena
morrendo dois cabos na aflição.
Morreu o Alberto e o João
Batista e António Maria.
Junto ao Gonçalves também morria
o Patornilho Ferreira.
E naquela maldita traineira
grande desastre surgia.”

********************

Já aqui se fez referência à tragédia vivida por estes homens do Pelotão de Morteiros. No compulsar da documentação, sempre que possível, importa tentar a procura do contraditório. O historiador Leopoldo Amado dá-nos uma versão do ano de 1964 que não é coincidente com o que escreve Hélio Felgas, fora comandante do Batalhão de Caçadores 507 e escreveu o livro “Guerra na Guiné”, editado por um serviço de publicações do Ministério do Exército em 1967. A seu tempo se referiu que foi propósito do autor fazer um enquadramento do território, da sua etnografia e etnologia, dando igualmente dados sumários sobre transportes e comunicações, situação económica, história dos movimentos de libertação e elementos afins. Há na sua exposição a propósito das perspetivas económicas da Guiné um dado muito curioso. Fala ele do Plano Intercalar de Fomento da Guiné e observa que não conhece este Plano qualquer benefício, dizendo que o de Timor foi concedido a título de subsídio gratuito, o de Cabo Verde não vence juros mas a Guiné terá de pagar o seu plano como se nada de anormal se estivesse a passar naquele território. Subtilmente conclui que “não é difícil compreender-se que com receitas orçamentais tão reduzidas, a Guiné não tem qualquer possibilidade de acompanhar o progresso das outras províncias”. Estamos na era Arnaldo Schulz, que recebeu armamento, mais unidades militares, mais meios aéreos e navais. Mas teve que fazer um desenvolvimento com a prata da casa, situação que se alterará radicalmente em 1968, António Spínola entrará na Guiné com meios farfalhudos. Mas desta discrepância de recursos os estudiosos não falam. Havia inegáveis intuitos promocionais no trabalho de Hélio Felgas, não se iludia no seu escrito que estava a apresentar serviço, respondendo euforicamente no balaço efetuado e atribuindo à governação Schulz a travagem do alastramento da guerra.
Faz logo um comentário que pode ter uma leitura contrária, vejamos:
“1964 foi um ano decisivo na guerra da Guiné. Em todo o primeiro semestre o PAIGC despendeu esforços enormes para obter qualquer resultado palpável. Graças à actuação dos nossos soldados, nada conseguiu, porém. Enfraquecido, dispersou-se, tentando abrir novas frentes e provocar a diluição das forças portuguesas. Esta diluição foi-lhe fatal pois com a ocupação militar da província estabeleceu-se uma rede que coartou por completo a sua liberdade de acção”.

Se aceitarmos os princípios da teoria da guerrilha, esta diluição funciona a favor dos guerrilheiros, a dispersão faz crescer exponencialmente os problemas logísticos, a gestão dos recursos humanos, avoluma as dificuldades operacionais, guerrilha é sinónimo de bate e foge, de casa de mato ou de santuário que pode ter algumas dimensões de inexpugnabilidade, exige meios de destruição fortíssimos, depois regressa-se ao destacamento, e o guerrilheiro regressa ao seu ponto de partida. Ora o primeiro semestre, e agora vamos fazer fé no que escreve Hélio Felgas, denotou uma atividade guerrilheira intensa, foi-se alastrando, e há logo um ponto no que ele diz ao norte do Geba que tem a ver com a vida do BCAV 490.
Escreve ele:
“No final de Janeiro, Farim, centro populacional já importante, encontrava-se quase isolada, pois os bandoleiros, destruindo pontes, montando emboscadas, colocando abatises e minas, procuravam cortar as estradas que ligavam a vila às povoações de Bigene, a oeste, Bissorã, a sudoeste, Mansabá, a sul, e Cuntima, a nordeste. A situação agravou-se durante os meses de Fevereiro e Março, tendo Farim e Binta sido flageladas pelos terroristas que destruíram novas pontes e pontões e começaram a fustigar as populações nativas da área de Jumbembem-Canjambari-Cuntima. Esta actuação levou Fulas e Mandingas a fugirem para o Senegal e originou a paralisação quase completa das serrações locais e da actividade madeireira de que Farim é um dos principais centros da Guiné”.
E também escreve que o PAIGC alastrara a sua atuação na direção de Binar e Bula, e a tornar-se intransitável a estrada Mansabá-Bafatá, a sua posição dentro do Oio tornara-se uma realidade. Em abril a atividade em torno de Farim incrementou-se, como ele escreve:
“Conjugada com a obstrução das estradas que, na margem sul do Cacheu, dão acesso à região, aquela actividade abrangeu o ataque às serrações madeireiras que restavam e a destruição das tabancas Fulas da zona fronteiriça de Cuntima”.
E, escreve mais adiante:
“Também entre os rios Cacheu e Mansoa aumentara a actividade guerrilheira. A leste de Binar, ocorreu a primeira emboscada na estrada de Nhamate. Os chefes das tabancas de Ponta Fortuna e Ponta Penhasse, ambas a norte de Bula e habitadas por Balantas e Mancanhas, foram assassinados por acolherem bem as tropas portuguesas. As populações da importante península de Naga, a nordeste de Bula e a oeste de Bissorã, começaram a fugir das nossas patrulhas de reconhecimento. O aquartelamento do Olossato foi atacado no dia 21 de Abril, aqui se empregou pela primeira vez uma metralhadora pesada de calibre 12,7 milímetros. Mansabá foi flagelada novamente e as estradas que lhe dão acesso tinham cada vez mais abatises”.

Também no chamado Centro-Leste, a situação estava longe de ser boa (a região pode incluir o Cuor, o Enxalé e todo o regulado do Xime). Flagelações em Enxalé e Xime, atos terroristas junto das populações de Missirá e Finete. E na margem direita do Corubal passou a haver flagelação às embarcações. Iniciava-se um problema sério, como garantir a navegabilidade do Geba, numa importância nada comparável com a do Corubal. E pouco há a dizer que não se saiba sobre o crescimento da influência do PAIGC na região Sul: Cabedu, Fulacunda, Cacine, Bedanda, Cumbijã, Cachil, Enxudé, Empada, Catió, flageladas com regularidade. Fez-se a reabertura da estrada Guilege-Campeane. Procedendo ao balanço deste primeiro semestre, Hélio Felgas não mostra nenhum otimismo. E quanto ao campo externo, Amílcar Cabral averbara sucessos político-diplomáticos, na organização da unidade africana, na NATO, colhia simpatias até junto de certas democracias ocidentais. E Hélio Felgas passa a analisar o segundo semestre, logo dizendo que as forças portuguesas começaram a assenhorear-se da situação na Guiné. O autor considerava que os grupos do PAIGC tinham perdido a iniciativa mostrada em 1963 e na primeira metade de 1964. Diminuíra a sua atividade nas áreas habituais. No entanto, e de um modo paradoxal, refere o crescimento organizativo do PAIGC, a sua iniciativa a partir de setembro, tanto ao norte do Geba como nas regiões de Farim e do Oio. Aumentara o apoio internacional em armamento e equipamento. Nas regiões fronteiriças das Repúblicas da Guiné e do Senegal, os centros do PAIGC ganhavam importância. Se por um lado havia uma aparente frenagem da atividade do PAIGC, próximo do fim do ano relata o autor um crescendo de ações, sobretudo no Sul, mas também no Norte e no Leste. Fala de sucessos à sombra da bandeira portuguesa: a colaboração prestada pelas populações nativas, o início da africanização da guerra, a ação psicossocial, a melhoria dos serviços de saúde, o desenvolvimento do ensino primário por todos os lugares.

Em novo capítulo, diz que a situação militar melhorara a olhos vistos em 1965, isto ao mesmo tempo em que vai falando das atividades operacionais do PAIGC em número alargado.
E já não se sabe muito bem o que melhorou quando ele escreve coisas como esta:
“Quanto ao Sul da Província, o aumento da actividade terrorista, verificado já em Dezembro de 1964, manteve-se nos primeiros meses de 1965, tendo sido especialmente visados os aquartelamentos das forças portuguesas. Em Janeiro, alvejaram os quartéis fronteiriços de Cameconde, Cacoca, Sangonhá e Ganturé, além de Buba, Bedanda, Fulacunda, Cachil e Cufar. Também o quartel de Tite sofreu diversas flagelações, tal como as tabancas vizinhas”.
E introduz uma novidade, a presença da guerrilha no nordeste da Província, em especial no triângulo Piche-Buruntuma-Canquelifá.

Em jeito de conclusão, faz previsões de grandes dissidências dentro do PAIGC, cansaço dos seus guerrilheiros, fala nas grandes qualidades do militar português e termina de forma sibilina: “Seja qual for a sua evolução, podemos estar certos de que o Exército, a Marinha e a Aviação saberão manter na Guiné as melhores tradições militares portuguesas".

(continua)

Depois da explosão de uma mina anticarro
Imagem retirada do livro de Hélio Felgas

Jangada a atravessar as margens do Corubal em Cheche
Fotografia de Hélio Felgas, datada de 1969
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Notas do editor

Poste anterior de 6 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20420: Notas de leitura (1243): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (35) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 9 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20432: Notas de leitura (1244): “Missão na Guiné, Cabedu, 1963-1965”, por António José Ritto e Norberto Gomes da Costa, com a colaboração de José Colaço; DG Edições, 2018 (Mário Beja Santos)

1 comentário:

José Marcelino Martins disse...

A foto da jangada só pode ter sido tirada em 6 de Fevereiro de 1969, a confirmar-se o ano de 1969. Foi o dia da tragédia do Che-che.