sexta-feira, 29 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P21019: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (4): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Abril de 2020:

Queridos amigos,
Há um ponto de verosimilhança no delineamento desta aventura ficcional que caiu no charco, ao tempo eu não dispunha de condições para mergulhar nos documentos que conservava da minha comissão militar, não era viável reler as centenas de aerogramas trocados nos dois sentidos com a mulher, os familiares e amigos, a ideia de um diário nem se punha.
Ocorreu, de facto, o tal episódio de uma conversa com uma intérprete de nacionalidade belga, a quem pedi auxílio, congeminava a possibilidade de me lançar num romance apostando nas lembranças que continuavam em vibração, tinha igualmente ao meu dispor a memória de vários colaboradores, furriéis e soldados africanos, podiam ser de grande préstimo para a urdidura do tal romance que metia uma grande paixão luso-belga.
O que aqui se dá ao leitor é uma organização um pouco mais sistematizada do que se chegou a pôr em cadernos, trabalho a que me apliquei durante qualquer coisa como dois anos, com entusiasmo moderado pela implacável agenda das minhas responsabilidades profissionais. O que agora se adiciona, com caráter inovador, decorre do conhecimento que passei a ter da Bélgica e sobretudo de Bruxelas, que me permite "tonificar" a secura do que passei aos cadernos de apontamentos, deitados para o lixo num certo dia em que considerei pôr termo a tal fantasia.
Felizmente que em 2006 voltei à fala com o Luís Graça e foi então que enveredei por outro caminho, de que nunca me arrependi, e com isso assentei praça, com armas e bagagens, e sem termo à vista, neste formidável blogue.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (4): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Annette, não pode imaginar a alegria que tenho nas nossas conversas telefónicas. Percebo perfeitamente que está mordida pela curiosidade em sentir-se envolvida por um processo ficcional que tem por base acontecimentos reais, um mundo novo para si. O que lhe contei naquele almoço, peço-lhe que acredite, é a clara certidão da verdade. Gostaria imenso de escrever um romance onde, a pretexto de uma relação amorosa de dois cinquentões de nacionalidades diferentes, ele fosse contando factos do seu passado, o mesmo se verificando com ela, e um dos temas dominantes seria aquela experiência de guerra na Guiné, que tanto a faz tremer, e percebo perfeitamente porquê, contou-me que teve familiares que viveram a tragédia congolesa em Stanleyville (hoje Kisangani), disse-me que foi um verdadeiro horror, viram gente massacrada ou torturada e regressaram despojados dos seus bens. A nossa presença na Guiné foi um tanto diferente, mais antiga mas sempre superficial, estávamos norteados pelo comércio de troca, depois o tráfico de escravos, que teve alguma expressão, e no século XIX, finda a escravatura, fez-se uma aposta bastante errática na exploração agrícola, é coincidente com um período tortuoso das nossas finanças, chegou-se mesmo a pensar em entregar a Guiné a uma companhia majestática, como aquelas que funcionaram no século XVIII. O que resta de todo esse tempo da nossa presença é uma fortaleza numa vila chamada Cacheu e uma outra fortaleza, feita muito mais tarde, que se chamava da Amura, quando a povoação onde se instalou, pequeníssima, era conhecida por S. José de Bissau.

Fortaleza de Cacheu, 
Com a devida vénia, do blogue Alma do Viajante

Ângulo da Fortaleza de Amura
Com a devida vénia, do blogue Marinha de Guerra Portuguesa

A nossa fixação deu-se sobretudo na orla marítima, sobretudo em pontos salientes dos rios ou rias, dava pelo nome de praças, presídios ou feitorias. A hostilidade da população autóctone era dominante, as autoridades eram forçadas a dar presentes, vivia-se, na maioria dos casos, sempre na expetativa de assaltos e pilhagens. Em pleno século XIX, dá-se um desastre no Norte da colónia, num local chamado Bolor, procurava-se intimidar rebeldes Felupes, acabou tudo num massacre de tropas, sobretudo cabo-verdianos. Foi nessa altura que este território cuja superfície estava mal definida, ninguém sabia ao certo onde começava e acabava, tratando-o por diferentes nomes, um deles eu gosto muito, a Pequena Senegâmbia, e que era administrado por Cabo-Verde, foi desafetado e passou de distrito autónomo à colónia da Guiné, com capital numa ilha do arquipélago dos Bijagós, de nome Bolama, passou a ter governador. As receitas eram escassas, os investimentos mínimos, o pessoal administrativo de péssima qualidade, foi-se introduzindo o arroz, comerciando a mancarra (amendoim), o coconote, curtumes, cera, havia um tributo chamado imposto de palhota de funcionamento muito irregular. As sublevações eram constantes e toda a metade do século XIX veio a conhecer profundas alterações demográficas, os povos Fulas dominaram os Mandingas, no Leste da colónia e envolveram-se em lutas brutais com os Beafadas, numa região do Sul chamada Forreá. Se eu lhe estou a contar estes pormenores é para que a Annette se possa aperceber da frágil ligação entre as autoridades portuguesas e a diversidade étnica da colónia, que se refletia até no quadro religioso, uma maioria dessas etnias eram animistas, tendo deuses ligados à Natureza e um número bastante importante de islamizados. O cristianismo teve sempre poucos aderentes, todo aquele clima palustre, com febres e malária, a quase impossibilidade de se fazer missionação sem o apoio de uma praça ou de um presídio, o que acentuava a desconfiança dos autóctones, foram fatores determinantes para a pouca expressão do cristianismo, que acabou por se circunscrever à capital e a algumas vilas. O ensino era péssimo, daí a falta de elites. É este o pano de fundo sabiamente explorado para a subversão nacionalista que ganhou consistência no final dos anos 1950.

O Governo português ia recebendo informação de toda esta agitação anticolonial, fez-se uma reforma nas Forças Armadas, começou-se a estudar a estratégia das guerrilhas, caso da Argélia, e em 1961 uma onda de terror foi desencadeada no Norte de Angola. Volto atrás para esclarecer de que de 1958 para 1960 apareceram duas nações independentes à volta da colónia da Guiné, a República da Guiné e o Senegal, a primeira delas manifestamente recetiva a exacerbar a luta nacionalista na nossa colónia, o líder africano Sékou Touré tinha claras ambições de alargar fronteiras e constituir um país correspondente ao seu sonho étnico, a Grande Guiné. Encontrou pela frente uma forte resistência do líder nacionalista Amílcar Cabral, que defendeu as fronteiras tal como elas existiam e sempre considerou que a língua que se iria falar no novo país seria a língua portuguesa. Ele sabia bem porquê.

Este líder foi muito cuidadoso a delinear a estratégia da subversão. No interior da colónia, começou o aliciamento de jovens que eram dirigidos para Conacri, onde a direção política estava sediada e tinha uma escola de formação. Um grupo desses jovens foi preparado numa academia chinesa, serão eles os primeiros comandantes da guerrilha e agentes da subversão que começaram a trabalhar no interior, sobretudo no segundo semestre de 1962. Foram conquistando apoios, intimidando e aterrorizando, em poucos meses toda a economia da região Sul se afundou e as populações tomaram partido, uns fugiram para a República da Guiné, à espera que tudo serenasse, outros deram apoio declarado à guerrilha e passaram a viver em lugares pouco acessíveis e protegidos por milícias armadas; outros pediram proteção aos portugueses e em meses cresceram povoações que davam pelo nome de Gadamael, Catió, Cacine ou Cufar.

As autoridades de Bissau (a capital mudou de Bolama para Bissau em 1941) dispunham de poucos efetivos militares, o sistema de informações era nulo, a realidade mudava todos os dias, com esses poucos efetivos militares tinha-se a ilusão que se andava a apagar fogos que se multiplicavam e que só se extinguiam temporariamente. Os efetivos vão crescer a partir de 1963, com grandes discussões quanto ao modo como fazer recuar a guerrilha, que ia crescendo. Esta guerrilha começou com armamento incipiente, melhorou de ano para ano, o nosso armamento, em contrapartida, era muito antigo, o terreno não permitia, de um modo geral, o uso de viaturas de combate, mas deu-se resposta quer com a criação de destacamentos numa tentativa de fixar populações e de dificultar o itinerário dos abastecimentos da guerrilha, passaram a atuar as forças especiais, mas os resultados eram naturalmente efémeros, atingia-se um objetivo, podia haver prisioneiros e mortos, captura material, mas não se podia fixar aí destacamentos ou habitações de autóctones, as flagelações eram constantes, as minas, anticarro e antipessoal, surgiram logo em 1964, era uma das expressões mais temíveis daquela luta armada. E a guerra foi-se prolongando, com períodos de aparente impasse.

Em 1968, quando cheguei à Guiné, pouco tempo antes aparecera o novo Governador que era também Comandante-Chefe e trazia a aura de bravura, dotado de uma grande mentalidade ofensiva, supunha-se que ele iria mudar o rumo da guerra. Eu era um subalterno insignificante, fora retirado de uma unidade que se formara em Portugal, depois de um grave contencioso com o respetivo responsável, um capitão, e apodado de ser ideologicamente inapto para a guerra de contraguerrilha, cheguei a Bissau em rendição individual, competia ao respetivo Comando Militar da Guiné atribuir-me uma unidade. No fim de julho desse ano fui informado de que iria para a região Leste (na verdade, mandaria o rigor que se dissesse região Centro-Leste), cabia-me a responsabilidade de comandar efetivos africanos, Caçadores Nativos e Milícias, em dois destacamentos. No dia 2 de agosto, fui metido numa embarcação civil com a minha bagagem (mais tarde vou contar à Annette o conteúdo dos meus trastes) e depois de dez horas de viagem cheguei a uma povoação chamada Bambadinca, aí dormi e na manhã seguinte um oficial de operações explicou-me qual a missão que me cabia, proteger um regulado, de nome Cuor, com dois destacamentos chamados Missirá e Finete, os efetivos eram dois pelotões de milícias (inicialmente numerosos) e um pelotão de caçadores nativos, Fulas e Mandingas, com população variada, Mandingas sobretudo em Missirá, Balantas, Mandingas e Fulas em Finete.

Esse mesmo oficial que parecia querer tranquilizar-me quanto à densidade de perigos com que eu estaria confrontado, foi muito enfático e elevou claramente a voz para me dizer que havia uma missão da maior responsabilidade, proteger a navegabilidade do Geba, impedir quaisquer atos terroristas sobre aqueles barcos fundamentais para o abastecimento da região Leste. E a 4 de agosto, ao princípio da tarde, veio um grupo de militares de Missirá buscar-me, atravessei de canoa o Geba, uma viatura chamada Unimog, num passeio de autêntica montanha-russa percorreu um estreito caminho sobrepujo a um extensíssimo arrozal, onde trabalhavam mulheres que me acenaram festivamente à passagem. Começava a minha guerra, todos os pormenores são devidos à Annette, para depois, com a sua preciosa ajuda, prepararmos, como eu tanto desejo, a carpintaria do romance. Veja o trabalho que lhe estou a dar e por isso lhe peço desde já que aceite o meu profundo reconhecimento. Daqui a uns dias telefono-lhe, para lhe anunciar a data da minha chegada a Bruxelas. Oxalá que esteja na Rua do Eclipse, temos muito que conversar e gostava muito que organizasse um passeio ou na cidade ou nos arrabaldes. Sinto-me muito bem no seu país, viveria aí sem qualquer dificuldade até ao resto dos meus dias, Paulo Guilherme.

Monumento aos aviadores italianos falecidos em Bolama
Com a devida vénia ao blogue Cadernos da Libânia

A Guiné na Exposição do Mundo Português, 1940


O autor a caminho de uma operação

Restos da viatura destruída pela mina anticarro, em 16 de outubro de 1969, em Canturé, Cuor

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20998: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (3): A funda que arremessa para o fundo da memória

3 comentários:

Fernando Ribeiro disse...

Ó Beja Santos, tu eras apodado de ser ideologicamente inato (congénito) ou ideologicamente inapto? Com Acordo Ortográfico ou sem ele, a palavra "inapto" escreve-se sempre "inapto". Não muda.

Convém acrescentar que os bustos de bronze feitos para a Exposição do Mundo Português de 1940, que se veem numa das fotografias, se encontram no Jardim Botânico Tropical de Lisboa, em Belém.

Carlos Vinhal disse...

Caro Fernando Ribeiro, em "defesa da honra" do Mário Beja Santos, tenho a depor o seguinte:
1 - Não é ele que escreve os textos enviados, só dita.
2 - Os computadores, alguns, estão programados para alterar o que se escreve para o novo Acordo Ortográfico e por isso fazem correcções verdadeiramente aberrantes.
3 - Eu nem morto vou aderir ao novo AO, mas respeito os textos que me enviam, corrigindo só, e quando detecto, as gralhas e alguns erritos sem importância, que vão aparecendo. A propósito, neste mesmo texto detectei a palavra sedeada e corrigi para sediada, erro este do "dactilógrafo" e não do autor do texto, tenho a certeza.
Que fique lavrado em acta este meu comentário.
Segue um abraço
Carlos Vinhal
Editor

Fernando Ribeiro disse...

Caro Carlos Vinhal, não tenho desculpa. Já há tempos me tinhas chamado a atenção para o facto de seres tu quem publica os textos do Beja Santos no blog, mas esqueci-me. Deve ser da idade. Desculpa lá.

Quanto ao Acordo Ortográfico, aderi a ele quase desde a primeira hora, porque achei - e continuo a achar - que o antigo tinha alguns defeitos que deviam ser corrigidos. O novo Acordo não é perfeito mas, na minha opinião, melhorou em relação ao antigo.

As pessoas que rejeitam o Acordo Ortográfico também estão no seu direito e estão, afinal, em muito boa companhia. O próprio Fernando Pessoa rejeitou o primeiro acordo que se realizou (em 1931 ou coisa que o valha) dizendo que iria sempre escrever "pharmácia" com PH.

Um grande abraço