sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22816: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (83): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
Enquanto Paulo arruma os trastes em Lisboa, deixando temporariamente a casa a dois filhos em trabalho precário, Annette escreve-lhe para lhe contar que acha que chegou ao fim do romance da Rua do Eclipse, coligiu as lembranças do período até 1999, ano em que se conheceram e começaram dois romances. Annette dirá mais tarde que foi uma trabalheira, papéis soltos, cartas vindas da Guiné, fotografias tiradas em Lisboa, antigos camaradas que tinham fugido ao pelotão de fuzilamento deixavam fixar a imagem onde pairava um semblante com uma infinita tristeza. Annette não entendia como tinha falhado redondamente aquela missão que ele vivera com tanto entusiasmo em 1991, parecia que tinha havido uma concordância desde o Palácio Presidencial aos diferentes ministérios, tinham passado vários programas televisivos sobre os desafios postos àquele milhão de consumidores e quais as respostas possíveis, juntando esforços entre as diferentes agências das Nações Unidas, e organizações não-governamentais que de bom grado acederam a cooperar.
Paulo confessava a Annette que fora uma das maiores amarguras da sua vida, ainda por cima ele se sentia ludibriado, tinha acreditado que no advento do multipartidarismo havia grandes oportunidades para as iniciativas de cidadania. O que Annette não sabe ainda é que meses depois de Paulo estar em Bruxelas irá fazer uma viagem, essa sim, o fecho de cúpula daquele romance. Porque o outro romance, em que eles já estão quase sessentões, esse não encerrou e possui ingredientes suficientes para continuar a ser lido à luz da vela ou ao sol fervente.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (83): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Paulo mon adoré, mon chevalier, ma joie de vivre, antes de regressares à tua casa na Rua do Eclipse quero fazer-te uma grande surpresa, já fiz uma sinopse da tua estadia na Guiné, vinte anos depois. Está concluído o resumo daquele período de adaptação logo a seguir à tua chegada a Lisboa, usei os teus apontamentos quanto ao tempo que passaste em Mafra, entre outubro de 1970 e finais de abril de 1971, vinhas nitidamente em forma e nem todos os recrutas receberam bem o entusiasmo, a forma impetuosa, com que os preparaste para as lides futuras. Estudaste, tinhas a vida simplificada num organismo chamado Agência Militar, manuseaste milhões de contos (ainda não fiz a conversão ao euro) e pagaste às famílias esses tantos milhões. Ficaste bacharel, logo concorreste ao ensino, quiseram-te como professor de História de Arte, a vida deu as suas voltas, foste parar ao Ministério da Economia, será aí, mais propriamente com o 25 de Abril, que irás descobrir a tua profissão. E cerca de vinte anos depois voltas à Guiné, imagine-se, para fazer cooperação, ali passarás alguns meses, dormes nas instalações de uma fábrica de cervejas, de nome CICER, e almoças e jantas na Pensão Central, na Avenida Amílcar Cabral, quem ali manda é dona Berta de Oliveira Bento, a quem irás chamar Avó Berta, nessa Pensão Central farás conhecimento do Dr. Francisco Médicis, será ele que te levará a Missirá num género de furgonete de caixa aberta. Felizmente que guardaste os apontamentos dessa viagem e dessa experiência sobre a qual escreveste quando entraste em Missirá e comovido até às lágrimas voltaste para Bissau, na caixa da furgonete, empertigado, vitorioso, vinha Cherno Suane, mais tarde virá para Portugal, aqui viveu e faleceu.

Não posso esquecer aqueles dias vibrantes que se seguiram ao teu regresso, as visitas de alegria e as de dor, neste caso à mãe do teu mais querido amigo, e aos teus sinistrados. Mas, primeiro os estudos, e depois a compulsão do trabalho, o casamente e os filhos, as recordações da Guiné pairavam num limbo, acompanhei cheia de curiosidade aqueles dias de adaptação a Lisboa em que voltaste aos alfarrabistas, ao departamento de mecanografia em que trabalhaste até 1967 e registei como Mafra foi determinante para as decisões que tomaras quanto ao rumo da tua vida. Escreveste em várias folhas o teu permanente espanto como aqueles oficiais passavam as tardes a jogar e a bebericar, juraste a ti mesmo que em circunstância alguma era fadário que te coubesse. Envolveste-te a sério nas duas recrutas que deste, deram-te como merecimento o encurtamento de um ano para seis meses. Mantiveste correspondência com a Guiné, encaraste sem amargura a diluição dessas responsabilidades. Chegava gente que trazia notícias e inopinadamente recebes uma carta do Benjamim Lopes da Costa se era possível ajudar o irmão, estava a estudar em Lisboa com uma bolsa, precisava de um suporte na disciplina de Filosofia, que foi dado pela tua mulher. Formavam-se companhias de Comandos e antigos soldados teus para lá foram.

Os anos passam, chegam notícias funestas, fuzilamentos, prisões arbitrárias, gente em fuga, gente que tu amas muito. Sofres mas a Guiné parecia uma gaveta a abrir e rapidamente a fechar, nem titubeaste quando se deu o golpe de Estado de 14 de novembro de 1980, há muito que descortinaras que o azeite não é miscível com a água.

Lá para os finais de 1989, os teus superiores informam-te que o Ministro do Ambiente, numa reunião com ministros do PALOP, recebera o mais inusitado pedido que seria suposto vir da Guiné, um protocolo de cooperação na área da defesa do consumidor. O ministro empenhava-se para afinar uma estratégia comum para a Cimeira da Terra, que se realizaria no Rio de Janeiro em 1992, disse logo que sim e o teu nome veio à cabeça, seria primeiro uma semana para avaliar a situação e aquilatar da viabilidade de tal missão. É assim que no segundo domingo de janeiro de 1990 tu regressas a Missirá, deixaste escrito um texto lindíssimo sobre essa viagem, o tumulto, o frenesim, os abraços, a gritaria a acolher o Branco de Missirá a quem os homens grandes as narrativas falam aos mais novos do N’Baké, um guerreiro de pele branca que faz parte daquele chão. Há mesmo um parágrafo em que tu descreves a viagem, muito gostava que este parágrafo viesse reproduzido no romance da Rua do Eclipse, vão pela estrada alcatroada e passam perto do Enxalé, vais completamente alvorotado:
“Via embevecido as culturas do arroz pam-pam, ao fundo nas lalas os majestosos tabás, os cipós, surpreendia-me com as culturas do cajueiro; do Enxalé para a frente, sentia a respiração entrecortada, os olhos suspensos no horizonte, à procura dos meandros do Geba, sentia-me desnorteado, o novo traçado da estrada afastara-se ligeiramente do rio, chegou-se a Saliquinhé, perguntou-se aos passantes onde estava o rio, que estava mais longe, agora não era fácil, com o crescimento do tarrafo, chegar próximo daquele lugar mágico que visitara todos os dias, não faz mal, atirara-se ao caminho mais pelos homens e menos pelos lugares, mas não resiste aos cheiros, ao oceano florestal, o importante é que regresse ao Cuor, sua pertença. É um dia de janeiro sem uma aragem e escorre pelos corpos um calor fervente, eleva-se a zanguizarra dos grilos, aqui e acolá, naquela estrada que fora o seu tormento e de que sempre fugira, na prevenção de minas e emboscadas, entra em transe, avista-se a curva de Canturé, mais adiante, no tormento daquela estrada alcantilada que atira os viajantes uns contra os outros dentro da cabine, passa-se ao lado de Mato Madeira, Missirá está pertíssimo, agora a estrada alarga-se, alguém aparece e explica que há gente a viver em Maná, Cancumba renasceu, a carrinha inflete numa picada, outro alguém, a caminho das hortas, confirma que é preciso tornear a nova tabanca para chegar a Missirá, e então reconheço os altos poilões e o mar de cajueiros, ouve-se perfeitamente o gralhar das crianças, começam a sair os adultos das moranças e naquele espaço que fora a parada do quartel a viatura sossega, cercam-nos com sorrisos, abraços, especado, quando se abre aquele círculo infrene, está Bacari Soncó, é emoção superior às minhas forças, este homem é meu irmão, viveu algumas das grandes agruras que o mundo nos oferece lado a lado, não posso mais esconder a emoção, encosto a cabeça no seu ombro, soluço sem parar, é verdadeiramente irrepetível este dia da ressurreição dos vivos”.

Voltaste no ano seguinte, li de fio a pavio o documento que elaboraste sobre essa missão, dedicaste a fundo em preparar uma estrutura para servir os mais necessitados, houve muitas promessas, até um despacho presencial, tudo acabou na água, nunca se saberá porquê. Deliberaste pôr ponto final no assunto, mas os silêncios africanos são de pouca dura, aí por 1996 chegou Abudu Soncó, o filho mais novo do régulo Malam, era professor primário, viera para uma ação de formação em Setúbal, farto de privações com vários filhos para sustentar, tomara a decisão de aqui ficar, atirou-se às mais humildes tarefas da construção civil, retomava-se o contato com o Cuor, tinham reaparecido povoações que tu conheceras reduzidas a estacas calcinadas, Finete mudara de lugar, havia vida em Sansão, em Aldeia do Cuor, em Chicri, aparecera perto de Gambiel um local chamado Madina de Gambiel. Por Abudu, foi-te dado perceber que não houvera reconciliação, pairavam rancores, medos, muitas feridas por sarar.

Meu adorado Paulo, esta é a síntese desses papéis avulsos, de tudo quanto aconteceu até nos conhecermos, há ainda umas folhas avulsas da chegada de antigos soldados teus que escaparam a fuzilamentos e prisões. Caso tu entendas é aqui que se fecha o ciclo das tuas viagens, aqui Penélope pode pôr o termo ao extenso bordado, Ulisses não chegou a Ítaca, o seu domínio espalha-se por duas cidades, numa delas está a Rua do Eclipse para onde ele vem em breve, mais uma vez para se envolver no interesse público, de que tem longo lastro.

Outra surpresa reservada é a readaptação dos espaços, vais ter o teu próprio escritório no quarto que foi da Noémie, pressinto que vais encontrar esta casa na Rua do Eclipse mais formosa à tua espera. Quantas vezes, na quietude da sala, me questiono dos muitos anos que aqui vivemos e dos outros muitos anos que a velhice nos poderá reservar na nossa bela casinha de Lisboa. Vem depressa, gosto muito daquela expressão portuguesa “paixão ardente”, o que importa é que já não sei viver sem a tua vibração, a tua voz, o teu corpo. À tantôt, ta chérie, Annette.

(continua)

Carvalho Araújo, nele viajei em outubro de 1967 para Ponta Delgada, de novo em abril de 1968 para Lisboa, e no regresso de Bissau, em agosto de 1970
Este é o rio da minha vida, é bem provável que por aqui naveguem barcos como estes, que nós protegíamos em Mato de Cão, vinham em comboio, tinham um cheiro caraterístico a mancarra e a coconote, rebocando-se uns aos outros nas curvas apertadas do Geba estreito
Agora, que procuro pôr um ponto final no acervo de recordações que me levaram a conservar algumas dezenas de imagens, aqui venho publicamente renovar a minha preferência por aquela que mais me impressiona. Contaram-me que o arquiteto Luís Saldanha fora a Varela acompanhar as obras do aldeamento turístico. No regresso, um jovem Felupe fez questão de posar, o arquiteto acedeu, tudo isto se terá passado perto do final da década de 1950, em 1961, depois do ataque a S. Domingos, o grupo dos Manjacos de François Mendy tudo vandalizaram
Perguntei em Bambadinca se ainda havia cemitério para soldados portugueses. Ainda restavam alguns túmulos, a informação que me davam era de que a Liga dos Combatentes gradualmente fazia a trasladação. Fiquei chocado com o que vi, espero que a esta hora este camarada da Guiné repouse em paz junto dos seus, ou perto dos vivos que guardam lembrança
A imagem é de um conhecido fotógrafo, Francisco Nogueira, foi ele o responsável pelas belas imagens de um livro dedicado ao património arquitetónico dos Bijagós, uma edição da Tinta da China. É um dos mais impressivos monumentos de Arte Deco em toda a África Ocidental, uma oferta de Mussolini para lembrar as vítimas de um desastre aéreo que ocorreu em Bolama, ainda na década de 1930
____________

Nota do editor

Último poste da série de 10 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22795: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (82): A funda que arremessa para o fundo da memória

1 comentário:

Fernando Ribeiro disse...

A fotografia do jovem felupe foi feita na Guiné, evidentemente. No entanto, ela quase poderia ter sido feita alguns milhares de quilómetros mais a sul, no sudoeste de Angola. Compare-se a figura do jovem felupe com a deste homem herero, muito provavelmente de etnia mucubal: http://1.bp.blogspot.com/_1vg20kkG3JI/Sznwbz-KznI/AAAAAAAAA_g/s3yUZKfHyEU/S269/30homem_Herero.jpg