quinta-feira, 16 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P523: Blopoesia: O meu país megalítico (Luís Graça)

o meu país megalítico / luís graça

um estranha maneira de dizer adeus.
um estranho povo este
que vem ajoelhar-se
no cais da partida.
não em oração
para aplacar a ira dos deuses
mas vergado.
vergado à toda poderosa razão
de estado.

a tentacular força centrífuga
que de há séculos
te leva os filhos teus
para fora.
paridos e expulsos da mátria
para longe.
bem para longe.
muito para lá do mar.

uma despedida breve
com lágrimas salgadas no rosto
e lenços brancos em fundo preto.

todas as despedidas são breves e tristes.
o momento
em que o niassa apita três vezes
e levanta a âncora
nunca se poderia eternizar:
diz o capitão de mar e guerra,
lencinho ao pescoço,
cheirando a vate 69,
fotocine, cinéfilo,
garboso, charmoso,
pronto para a acção.

há um briefing às cinco da tarde
já em velocidade de cruzeiro,
depois do bugio,
no mar alto português,
anuncia o capitão
pouco ou nada miliciano,
que serve de mordomo,
pequeno-burguês.
vai na segunda comissão,
o oficial provinciano,
que nunca ouviu falar
da batalha da ilha do como.

e o filme da noite é
uma comédia,
acrescenta o nosso primeiro,
a servir de porteiro
do cais do sodré.
um gajo bacano
num país de bacanos,
de soldados rasos, primeiros cabos,
furriéis e segundos sargentos.

uma tragicomédia,
escreverei eu
no meu diário
a que mais tarde chamarei
o diário de um tuga.
cadé os oficiais ?
cadé a elite da nação ?
os filhos-família
os primeiros
a fina flor
os morgados
os primogénitos
os fidalgos
a casta
a raça
o sangue azul
o pedigree
os melhores de todos nós ?
morreram todos
em alcácer quibir.

lisboa revista
em filme de oito milímetros.
a preto e branco.
ou a preto e negro,
uma só não,
valente e imortal,
ironiza alguém.
o niassa colonial
na azáfama do seu vai-e-vem
antes de ir
parar à sucata.
inglória a sucata da história
que eu perdi
aos dezoitos anos
quando dei o nome para as sortes.
estranha palavra esta, das sortes,
que rima com desnortes
e com mortes.

a despedida breve e triste
do niassa
e ainda mais triste é o filme.
sem som.
sem palavras desnecessárias.
a preto e branco
que alguém terá feito
no cais das sete partidas.
talvez a noiva
que ia vestidade de branco
com xaile preto.

a ponte de salazar.
o velho abutre que alisa as suas penas,
dirás sofia, pitonisa,
quase morto mas não enterrado.
os últimos golfinhos do tejo.
a última fragata de vela erguida.
a última caravela.
o último império.
lisboa e o seu casario.
branco.
o filme a preto e branco.
um gato preto à janela.
lisboa e as suas ruínas
pré-pombalinas.
o poço dos mouros.
o poço dos negros.
o lundum. a umbigada.
a procissão
da nossa senhora da saúde.
a santa inquisição
zelando pela pureza do sangue.
o cemitério dos prazeres
ao alto
com os seus altos ciprestes negros.
os mastros dos navios
da carreira colonial.
o império por um fio.
a vida que se recapitula
de fio a pavio
no último comboio da noite
que veio do campo militar
de santa margarida.

as santas das nossas mães
que ficaram em casa
a acender a vela à santa das santas.
um fado que eu ouvi no bairro alto
e que já não era batido
nem dançado nem cantada
um fado apenas gemido.

ordeiros os soldados
como os cordeiros da matança da páscoa.
no cais da rocha conde de óbidos,
alinhados
como os eléctricos amarelos
que vão para a cruz quebrada.
empilhados. aboletados.
requisitados
às mães para servir
a pátria.
o pai-patrão
que nos cobra o dízimo
em sangue suor e lágrimas.

mudos, agrilhoados, os básicos,
uns refractários,
outros desertores,
cozinheiros, corneteiros,
apontadores de diligrama,
municiadores de metralhadora,
atiradores,
coitadas mães que tais filhos pariram,
diz a letra do ceguinho.
subindo o portaló o cadafsaldo
com um nó na garganta
bem disfarçado.
os lenços brancos
como em fátima no 13 de maio.
algumas bandeiras verdes-rubras,
poucas e loucas,
que os tempos não são
de exaltação
patriótica.
o hino
canta-se com voz rachada,
em disco riscado
pelas tias
do movimento nacional feminino.

a mesma atitude
admirável
de patética resignação
perante o arbítrio dos deuses
que tudo podem.
diz o capelão,
cheio de unto e de virtude,
que é um povo religioso
porque tem o sentido do pathos.
da tragédia inelutável.

senhora minha, protege-me,
das minas e armadilhas,
dos fornilhos e das bailarinas,
das canhoadas e roquetadas,
das morteiradas,
dos estillaços
e dos tiros de costureinha
do IN.
dos esquentamentos e das sezões,
dos ataques de abelhas
e das formigas carnívoras.
mas também do cone de fogo
das nossas bazucas e canhões sem recuo.
das piçadas e dos louvores dos meus comandantes.
e sobretudo de mim mesmo,
soldado malgré moi
soldado à força
arrebanhado, arregimentado, aboletado,
requisitado, condenado, ameaçado,
camuflado.
livra-me, senhora,
da fome, da peste e da guerra,
e do inimigo da minha terra
que me manda para tão longe.

lisboa e as suas sete colinas
perdem-se na linha de água.
pus o combate do possível
na minha agenda
de expedicionário da guiné.
pus o fio com a medalha de ouro
ao peito.
que me deu a namorada,
coitada.
não, não uso a cruz. o crucifixo.
não vou para a guerra santa,
senhor capelão.
alguém há-de rezar por mim
para que eu volte
são e salvo.
do regulamento é apenas
a chapa de zinco
com o número mecanográfico
13151468
e o picotado ao meio.
para mais facilmente ser cortada
em duas partes
que seguirão caminhos distintos
tudo isto face ao risco,
bem real e concreto,
de eu morrer longe.
bem longe
para lá do mar
em terra que não me viu nascer.

descansa, camarada,
alguém fará o teu espólio.
cerrará os teus dentes,
fechará os teus olhos
e engraxará as tuas botas.
se não morreres de morte súbita.

levarei comigo a pedra-chave
que me liga ao além.
uma chapa de zinco,
picotada ao meio.
outrora era de xisto ou de grés,
entre os meus antepassados
da pré-história recente.

camaradas
(que colegas é só nas putas):
se eu morrer, que me enterrem
numa anta do meu megalítico país.

luís graça
lisboa/ niassa, maio de 1969 / lisboa, tejo e tudo, fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P522: Projecto Guileje (9): obus14, precisa-se! (Luís Graça)

Guiné-Bissau > Guileje > 2006 > O brasão da CCAV 8350 (Os Piratas de Guileje), novinho em folha... 
© AD - Acção para o Desenvolvimento (2006)

Como prometido, o Pepito está cá, em Lisboa. E esteve hoje connosco, pelo menos com o Zé Neto (de manhã, na Fundação Marquês de Valle For) e comigo (à tarde, no meu local de trabalho).

Foi muita gentileza, da parte dele, ter-se deslocado só para me conhecer pessoalmente, dar-me notícias da sua terra (que ele ama com um coração muito grande), falar-me, com entusiasmo contagiante, da menina dos seus olhos - que é o Projecto Guiledje (com dj, como ele gosta que se escreva) - e, ainda, presentear-me com o livro de contos do seu pai, Artur Augusto Silva (Ilha Brava, Cabo Verde, 1912- Bissau, 1983), um homem de leis e de cultura, amante da justiça e da liberdade, já aqui por nós justamente evocado (1). Noutra ocasião, farei a recensão bibliográfica de O Cativeiro dos Bichos, um colectânea de 25 contos, seleccionados pelos seus filhos (Henrique, João e Carlos Schwarz), alguns dos quais escritos na prisão de Caxias, em 1966. O livro acaba de ser editado em Bissau (Fevereiro de 2006, edição de autor).

A conversa, de cerca de 1 hora, que tive com o Pepito (ninguém o conhece por Carlos Schwarz, nem quando foi ministro dos transportes num governo de transicção) só pecou por ser curta... Mas deu para, de imediato, eu fazer mais um amigo guineense...

Bem razão tinha o Zé Neto: vou cometer aqui uma inconfidência - e eventualmente sofrer as consequências da ira do autor da confidência - mas é uma homenagem aos dois, ao Zé Neto e ao Pepito. Escrevia-me há um mês atrás o nosso capitão:

" (...) Eu conheço pessoalmente o Engº Carlos Schwarz da Silva, o nosso Pepito. Passei uma tarde a conversar com ele em casa do nosso amigo comum, Engº António Estácio. Eles foram colegas de infância e condiscípulos, pois o Estácio também é guineense.

"Tenho a pretensão de conhecer o carácter dos homens ao fim de dois dedos de conversa. Não tão cientificamente como tu, profissional do ramo, mas, como dizia o outro, raramente me engano.

"E asseguro-te que o Pepito é do melhor que há. Talvez um pouco sonhador, porque abdica duma vida confortável que poderia gozar cá em Portugal, em troca das mil e uma tarefas que desenvolve na sua querida Guiné em prol do seu povo. É fácil entender que o seu espírito superior choca com certo primitivismo que grassa naquela região, mas não desiste e essa é a qualidade que faz dele um amigo que muito admiro e a quem dispenso a minha modestíssima colaboração sem reticências.

"Quando ele vier, para o mês que vem, vais confirmar o quer te digo" (...).

Só posso subscrever - inteiramente - a opinião do Zé Neto, que é um grande conhecedor da natureza humana. Foi, de facto, um privilégio conhecer, ao vivo, uma pessoa com a qualidade humana do Pepito. Espero que outros tertulianos também possam vir a conhecê-lo, de preferência na nossa querida Guiné, e na companhia do maior número possível de amigos e camaradas...

Guiné-Bissau > Guileje > 2006 > "Laranjada Convento / Mafra / Marca registada"... © AD - Acção para o Desenvolvimento (2006)

Guiné-Bissau > Guileje > 2006 > "Composição: Sumo - Popa e óleo de laranja - Açúcar granulado - Água esterelizada / Corado artificialmente / Fabricado por Francisco Alves & Filho Lda / Venda do Pinheiro" © AD - Acção para o Desenvolvimento (2006)

E agora vamos a um pedido - quiçá um pouco insólito ! - que o Pepito me acabou de fazer, jà quase à despedida: ele precisa de um obus 14, para pôr no seu quartel de Guileje, agora em reconstrução... Algum de vocês sabe de um velho obus 14, para aí abandonado num qualquer ferro-velho da tropa ? Se souberem, digam-nos... Levá-lo até Guileje será outra carga de trabalhos, mas até lá folgam as costas...

O pedido justifica-se: ao que parece, Guileje foi o único quartel das NT bombardeado pelas... NT. Segundo o Pepito, o Spínola terá mandado arrasar tudo, posteriormente à retirada da CCAV 8350.
Nas limpezas e escavações que têm sido feitas, vão-se encontrando objectos do quotidiano dos tugas, alguns curiosos como garrafas de cerveja com o rótulo de papel intacto (!) ou garrafas de sumo de laranja - de um conhecido fabricante de refrigerantes de então, com sede em Venda do Pinheiro, Mafra... Publicam-se duas curiosas imagens de uma garrafa com inscrições pirogravadas... Em suma, isto já é quase arqueologia militar...

Divertidas, para o Pepito, têm sido as manifestações de humor (e de carinho) dos fulas para com os seus antigos aliados, os tugas: ele refere-se às gravações audio que estão a fazer e em que os antigas combatentes fulas, que estiveram do lado das NT, imitam descaradamente os tugas, quando estes estavam debaixo de pressão (na época ainda não se usava o termo stresse...):
- Seus c...! Seus f... da p...!

O Pepito prometeu-me depois mandar alguns excertos dessas gravações audio, reveladoras do superior sentido de humor fula... Ora quem diria! ... Eu, pessoalmente, sempre os achei inteligentes e com grande capacidade para negociar e estabelecer alianças estratégicas. O Pepito também corrobora este ponto de vista: os fulas são orientados para o poder, aliaram-se ao Spínola contra o Amílcar Cabral; e depois ao Luís Cabral, a seguir à independência, contra os balantas... Como diria o Príncipe de Salinas, protagonista do filme O Leopardo (Visconti, 1963), eles eram os leopardos, os leões, enquanto os novos vencedores - que se aliaram ao PAIGC - não passavam de chacais e de hienas... Mesmo assim, eles têm a consciência de que, presas e predadoras, têm de coexistir (mais ou menos pacificamente) naquela terra, que é a sua terra...

O Pepito mostrou-se, por outro lado, deveras impressionado com o que está a acontecer com o nosso blogue e o ritmo de produção das nossas memórias... Eu avancei com uma explicação de vulgata sociológica:

(i) a nossa geração, os machos, têm mais de ou quinze anos de esperança média de vida;

(ii) para muitos de nós, a experiência da guerra colonial terá sido porventura o acontecimento maior, talvez o amis emociante, das nossas vidas cinzentas;

(iii) tivémos a sorte de sobreviver e, ao fim de cinco anos, retomar a marcha do comboio, não contando com os que ficaram precocemente pelo caminho: os mortos, os traumatizados, os inadaptados, os desadaptados, os cacimbados;

(iv) muitos de nós já deixaram a vida activa e sentem o vazio do presente: os filhos que partiram, os netos que só se vêem nos dias festivos, as companheiras que sempre se recusaram a partilhar essa experiência, a guerra, que é uma actividade de machos;

(v) enfim, a memória selectiva do passado, a disponibilidade de tempo, a redescoberta da camaradagem, o apelo dos verdes anos...

O Pepito não dispensa a visualização diária do nosso blogue. Acha que este fenómeno (a vontade de abrir o livro, o baú da memória...) também está a acontecer na Guiné: os antigos combatentes sentem necessidade de falar do passado e passar a escrito (ou ao gravador) as suas memórias... A necessidade de falar da luta, na cidade ou nas matas, com alguém...

Grande parte da memória (escrita) de guerra de libertação, na posse do PAIGC, dos seus militantes e ex-militantes, desapareceu, foi destruída, extraviou-se ou foi parar à... Fundação Mário Soares. Há um sério risco da geração pós-independência ver amputada uma grande parte da memória do seu povo, a luta pela independência, a difícil construção da Guiné-Bissau, a revolução que devorou os seus filhos, a fabricação dos novos mitos, os ajustes de contas, o cinismo pós-revolucionário...

Daí que o Pepito e os seus colaboradores da AD - Acção para o Desenvolvimento estejam afanosamente a gravar depoimentos dos antigos combatentes e habitantes de Guileje... Começaram pelas bases, mais acessíveis e espontâneas... Numa segunda fase, esperam poder entrevistar os dirigentes, os comandantes operacionais, os comissários políticos, quando as defesas psicológicas e as pressões dos pares se começarem a quebrar...

Nós também cá temos esse problema: como diz o Jorge Cabral, há ainda muito boa gente (militar) com culpa e vergonha de ter feito (e perdido) a guerra da Guiné, a começar pelos nossos oficiais superiores... A hierarquia militar não me parece ainda disposta a dar a senha e a contra-senha de acesso aos arquivos militares da guerra colonial...

O que o Pepito e a sua ONG estão a fazer é um trabalho meritório e sobretudo patriótico, com dividendos para o futuro... Não há futuro para um povo que tenha perdido a memória e a identidade. E o tempo urge, porquanto a geração que fez a guerra colonial (ou a guerra de libertação, conforme os lados do campo ou da barricada), está a desaparecer... Mais rapidamente na Guiné, devido à menor esperança média de vida à nascença dos homens guineenses da geração da guerra(2)...

Também falámos da actual situação económica, social e política da Guiné-Bissau. Dos medos e das esperanças que os guineenses sentem em relação ao futuro. Do retorno à pertença e à identidade étnicas, na ausência de um Estado de direito que garanta a protecção e o respeito do indivíduo e da sua família... Dos terríveis acontecimentos de 1998, que levaram o Pepito e a família a refugiar-se em Cabo Verde, terra de seu pai... E do doloroso regresso a Bissau, um ano e tal depois, o retorno à casa completamente pilhada, violada, destruída... Os livros, as fotografias, as memórias de uma vida... O que é espantoso é ouvir este homem, que é um profissional do optimismo, contar isto sem ódio, sem ressentimento, sem rancor, qause sem mágoa... Tem vindo a recuperar algumas coisas, com emoção: uns negativos, umas cartas, uns livros... E isso é suficiente para lhe dar alento...

Para além das suas obrigações como deputado (independente, creio eu), o que mais lhe dá gozo é viajar de jipe - apesar dos problemas de coluna de que já sofre, em consequência dos milhares de quilómetros feitos através das picadas da Guiné... E estar no sul, em Guileje, com os seus amigos e vizinhos... A Mata do Cantanhez, o futuro Parque Transfronteiriço do Cantanhez, é um espanto, com riquíssima fora e fauna - onde se incluem elefantes ! - e, felizmente, ainda ao abrigo, devido ao seu isolamento, dos apetites vorazes da clique político-militar no poder em Bissau e em Conacri...
Last but not the least, o Pepito também gostaria de ter contactos com todas as companhias que passaram por Guileje e, se possível, ter acesso a uma resumo da sua actividade operacional na região. Não creio que isso seja difícil de conseguir... Mais difícil será desencantar o raio do obus 14!...
__________

Notas de L.G.

(1) pots de 16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXVIII: Um conto de Natal (Artur Augusto Silva, 1962)

"(...) Envio-te um conto de Natal, escrito por meu pai, Artur Augusto Silva que nasceu na Ilha da Brava, em Cabo Verde, e que foi advogado na Guiné-Bissau desde 1948, tendo defendido os presos políticos do PAIGC, em 61 julgamentos, um dos quais com 23 réus tendo tido apenas duas condenações.

"Em 1966, a mando do governador Arnaldo Schultz, foi preso pela Pide, no aeroporto de Lisboa, quando vinha de férias tendo ficado cinco meses na prisão de Caxias. Quando foi libertado, proibiram-no de regressar à Guiné e fixaram-lhe residência em Lisboa.

"Em 1976, quando me veio visitar a Bissau, o então Presidente Luís Cabral convidou-o a trabalhar como juiz do Supremo Tribunal de Justiça, tendo também leccionado Direito Consuetudinário na Escola de Direito de Bissau desde que ela foi criada e até a 1983, quando faleceu" (...).

(2) No âmbito do Projecto Guiledje, são consideradas acções prioritárias, entre outras, a recolha de documentos históricos, e nomeadamente:
(i) fazer entrevistas e tirar fotografias a testemunhas do tempo de guerra, recorrendo às rádios locais e à televisão comunitária, e pedindo o apoio a pessoas que possam identificar com facilidade testemunhas que viveram a batalha de Guileje;
(ii) criar um banco de fotografias com os marcos e as referências de guerra que ainda existam no antigo aquartelamento de Guileje;
(iii) recolher registo em suporte de papel, digital ou audivisual, com interesse documental sobre a época;
(iv) recolher canções de luta, em especial as referentes a Guileje, e editá-las para conservação em CD-ROM...

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P521: Estórias do Zé Teixeira (4): A festa da vida (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

Guiné-Bissau > Quebo > 2005 > Cartaz, em crioulo, integrado numa campanha de defesa da natureza, no âmbito do "projecto de reabilitação" da GTZ (organização alemã para a cooperação técnica) © José Teixeira (2006)


Texto do José Teixeira (ex-1º cabo enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70).


A FESTA DA VIDA

Como prémio de ter assistido ao parto, fui convidado a participar na Festa da Vida (Baptismo) do recém nascido.

Manhã cedo, juntaram-se em roda, os convidados com as vestimentas mais garridas. Os tantans (três), vestidos a rigor com instrumentos nas pernas e nos braços, assobio na boca e tambores a jeito.

O homem do cabrito acabou de afiar a faca e encosta esta ao pescoço da vítima. A fogueira está pronta para ser acesa pela cozinheira.

Dois pilões, cheios de arroz, com três bajudas em cada um, prontas para iniciar a faina.

A criança ao colo da mãe e ao lado o Barbeiro com uma lasca de vidro laminada, proveniente de uma garrafa de cerveja.

Por último o Mouro (1) prepara-se, voltado para Meca, para iniciar a oração a Alá.

Tudo pronto ? Vamos lá começar.

O Mouro inicia um canto e em simultâneo começa a festa. Os tambores e o pilão dão o ritmo. Tudo djenti canta e dança.

O Barbeiro inicia a rapadela da farta cabeleira do bebé, enquanto o cabrito dá o último suspiro, pois a fogueira já foi acesa.

E a festa dura, dura até que a noite cai e... o Hamadu, sargenti di milícia, aparece e recomenda o silêncio.

Bem perto há uma aldeia nas mãos do IN.


VIDA

Ventura da minha vida
Ver uma criança parida
No momento da chegada.
De mãe preta bem pintada.
Negro pai, para meu espanto.
O raio do puto era branco.

Vi-te nascer.
Não sei teu nome, não importa.
Foste e és esperança, um novo ser
Nesta sociedade morta.
Lançaste um grito. Alegria.
Tua vontade de viver.
A esperança a renascer.
No meio da dor, como sempre.
Em ti, peguei com jeito,
Como um pai, que estava ausente.
Na guerra, da tua terra.
Encostei-te bem ao peito,
Teu olhar, que encanto,
Ternura, paz, bem estar.
A tua pele macia. . .
Tua brancura de espantar,
Nesta terra, vermelha, queimada,
De uma África em sofrimento,
Que anseia em cada momento,
Como tu.
Ser amada.

Mampatá, 25/09/1968

© José Teixeira (2006)
________

(1) Coordenador da oração na Mesquita (equivalente ao nosso Padre) (JT).

Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (Lisboa: Círculo de Leitores. 2003), na Guiné-Bissau o termo mouro hoje significa "espécie de vidente e curandeiro que prepara mezinhas, supostamente benéficas ou malignas, utilizando versículos do Alcorão" (Tomo V, pag. 2554) (LG)

Último poste da série de

Guiné 63/74 - P520: Fazer o espólio de guerra de uma geração (Virgínio Briote)

Guiné > Bissau > 1967 > O alferes comando Briote (ao meio) com os alferes comandos Sampaio faria e Ovídio (do lado esquerdo) na recepção da 5º Companhia de Comandos, do cap Albuquerque Gonçalves (à direita).
© Virgínio Briote (2006)


Texto do VB [Virgínio Briote], nosso camarada, activo tertuliano e agora patrão do blogue Tantas Vidas:


Olá Luís,

Antes de mais quero agradecer as tuas referências ao meu jovem blogue no nosso foranada.

Como diz o nosso camarada Tunes, comandas as tropas expedicionárias com saber e garbo. Desta vez não estás a defender a Cruz e o Império. Estás a fazer o espólio como nunca ninguém o fez até agora. Conseguiste reunir um grupo de combate e motivá-lo a entregar aos nossos filhos, nossos e dos antigos Inimigos, as armas, os dilagramas, morteiros, rpgs, rockets, relatórios, imagens de todo aquele inferno que todos nós vivemos e fomos aguentando até dizer basta!

As novas entradas do nosso blogue estão preocupadas em pôr a verdade no local que a nossa geração exige. Que sejam bem-vindos, se sentem e abram a alma. Faz-lhes bem a eles e aos veteranos do blogue.

Um abraço
vb

PS - 1. Peço autorização para citar o foranada, bem como imagens (c/ citação, claro).

[Despacho do L.G.: Concedida!... Depois de uma chapelada daquelas ao nosso blogue e aos nossos tertulianos!...]

2. No seguimento das memórias de Guileje, do cap José Neto, envio-te uma foto da chegada a Bissau da 5ª companhia de comandos do cap Albuquerque Gonçalves (1).

[Comentário do L.G.: Obrigado, em meu nome e do Zé Neto]
_________

Nota de L.G.

(1) Vd. post de 14 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXIV: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (8): Gazela com chouriço à moda do Celestino

"(...) Entretanto chegaram as duas companhias, pertencentes ao BCAÇ 2835 e tivemos notícias de que a 5ª Companhia de Comandos (comandada pelo Capitão de Artilharia Comando Gonçalves) tinha sido afecta ao nosso Batalhão e estava pronta a actuar na área de Aldeia Formosa, o que adensava as expectativas do que ia suceder nos próximos tempos".

Guiné 63/74 - P519: Carta aberta a... Ao Luís (Jorge Cabral)

Mensagem do Jorge Cabral (ex-Alf Mil Art, comandante do Pel Caç Nat 63, Bambadinca, Fá e Missirá, 1969/71). Esta carta (aberta), dirigida à minha pessoa, honra-me e sensibiliza-me. Prendem-me, ao Jorge, laços de amizade e de cumplicidade.
Orgulha-me tê-lo cá, nesta tertúlia, entre amigos e camaradas. Obrigado, Jorge, pela tua (corrosiva) lucidez e sobretudo pela tua (generosa) abertura de espírito à aventura humana e à descoberta do outro bem como pelo teu arreigado anti-etnocentrismo. Poupa-me as palavras. Por mim, disseste tudo... LG

Caro Luís,

Nunca será demais enaltecer o teu blogue, o qual nos tem permitido, principalmente recordar.

Como tu dizes, fui um tropa desalinhado, marginal e quase sempre provocador, características que mantive ao longo da vida. Sempre procurei realçar os aspectos ridículos das pessoas e situações, gozando e criticando, às vezes com um humor um demasiado ácido…

Sobre a Guerra Colonial na Guiné, sei que lá estive, e procurei ver.

Não sinto nem orgulho, nem vergonha.

Não fui herói, nem cobarde, limitei-me a garantir a minha sobrevivência, bem como a dos que comigo se encontravam.

Tratava-se obviamente de uma guerra absurda e previsível, logo evitável, para a qual nos mandavam mal preparados, num estado de absoluta ignorância sobre o país, sua gente e cultura (contei-te daquele soldado-periquito, que apresentado em Missirá, me pediu para ir ver o jogo do Sporting que dava na televisão naquela note, na Tasca da Muda, ali mesmo à esquina…).

Se alguma qualidade intelectual possuo é a curiosidade, que me leva a tentar compreender tudo e todos, ciente que as diferentes formas de estar e ser são legítimas e sempre explicáveis.
Assim, na Guiné, quer em Fá, quer em Missirá, procurei entender, e através de longas conversas com Homens e Mulheres Grandes aprendi alguma coisa. Dessa forma me inteirei da excisão (a qual depois presenciei) e do infanticídio ritual, dois temas que há mais de vinte anos, falo nas minhas aulas.

Percebi que uma Guiné idílica e pacífica, de negros portuguesismos, nunca existira… Todo o território ao longo dos séculos foi palco de imensas guerras, sangrentas repressões e alguns desastres das nossas tropas. Perante o meu espanto, indicaram-me em Fá, o local onde no tempo, dos avós, dos avós deles, havia sido aprisionado o Governador, que teve de pagar resgate aos beafadas (1). E em Missirá levaram-me a conhecer o campo onde as forças portuguesas e seus ajudantes estiveram longo tempo entrincheirados, preparando a conquista de Madina/Belel, na luta contra o grande guerreiro Unfali Soncó, no princípio do século XX (2).

Foram também os velhos que me falaram de Abdul Injai, régulo do Cuor e do Oio, companheiro de Teixeira Pinto, herói tão amado quanto odiado, caído em desgraça no fim da vida, e degredado para Cabo Verde.

Chegado a Lisboa, e desde então tenho tentado estudar, convicto que é impossível compreender a guerra colonial e o que se seguiu, sem reflectir na história do país e nas múltiplas acções de resistência armada contra os Portugueses.

Claro que o PAIGC, ao iniciar a Luta Armada pretendeu aglutinar todas essas resistências sectoriais, num projecto global de Libertação, que simultaneamente edificasse o Estado Nação. Pelo menos a Libertação foi conseguida…

Tendo estado sempre com tropa africana e milícias, não fiquei indiferente ao que aconteceu aos meus soldados, uns obrigados a fugir e outros fuzilados.

Alguns ainda hoje lutam por uma pensão, e há poucos anos, tive de confirmar por escrito, que um servira no exército português.

Discutir agora quem foi o responsável pelos fuzilamentos, se foi o Nino ou o Luís Cabral, parece-me supérfulo. A responsabilidade cabe por inteiro aos Portugueses, que não souberam garantir a segurança dos militares africanos. Procederam como os seus antepassados, pois o destino dos aliados dos portugueses, foi sempre o mesmo. Abandonados à sua sorte, vitimas das represálias dos vencedores… Ás autoridades negociadoras competia proteger todos os que lutaram integrados no Exercito Português e mesmo assegurar aos que quisessem, a nacionalidade portuguesa. Isso sim, teria sido uma atitude revolucionária. Foram conservadores. Contradições características de uma descolonização tardia e apressada…

Desculpa a seriedade deste arrazoado, mas considero importante contribuir para a destruição de certos mitos e equívocos, naturalmente persistentes numa ex-potência colonial.

Um grande abraço
Jorge
_________

(1) – ocorreu em 1861 no âmbito de uma “campanha” contra os Beafadas de Badora, os quais prenderam o Major Correia Pinto, encarregado da Administração da Província na ausência do Governador. Também nessa altura foram hasteadas bandeiras britânicas, em Bambadinca, Fá e Ganjara.

(2) – tratou-se de uma das mais importantes "operações" ocorridas antes da Guerra Colonial. Os efectivos das N.T. eram para a época impressionantes. Estando 50 marinheiros destacados em Bambadinca, a coluna comandada pelo Governador Muzanty, compreendia:
- 7 oficais do estado maior,
- uma companhia da marinha (4 oficiais e 132 marinheiros),
- uma companhia de infantaria metropolitana (5 oficiais e 251 sargentos e soldados),
- uma companhia mista de infantaria (3 oficiais e 101 atiradores),
- uma bateria de artilharia (3 oficiais e 69 sargentos e soldados),
- mais sete oficias (médicos veterinários e de intendência),
- a que é preciso acrescentar o “exército” de Abdul Injai (2 oficiais, 2 chefes e 100 cavaleiros) e
- ainda a nona companhia indígena de Moçambique.

Pois toda esta tropa, atravessou o rio frente a Bambadinca, tendo conquistado todas as tabancas, até junto de Missirá, onde em Carenquecunda, acampou, cavando trincheiras, e preparando a conquista de Madina, que veio a ser tomada em 9 de Abril de 1908, tendo tido papel determinante Abdul Injai e os seus 100 cavaleiros.

Também eu entrei em Madina em 1971, sem cavaleiros, mas à custa de um decisivo apoio aéreo.

P.S. – o desastre do Cheche, tem um antecedente histórico ocorrido em 30 de Dezembro de 1878 na Ponta de Bolor, entre os Felupes. Porém deste, em que morreram mais de 50 militares, conhecem-se os que pela sua incompetência, foram responsáveis: o Governador António José Cabral Vieira e o Tenente Calisto dos Santos.

Guiné 63/74 - P518: Pidjiguiti, 3 de Agosto de 1959: eu estive lá (Mário Dias)


Guiné > Zona leste > 1970 > Vista aérea da Ponte sobre o Rio Geba, na estrada Bissau-Mansoa-Bafatá. Os barcos do serviço de cabotagem, vindos de Bissau, do Pidjiguiti, chegavam até aqui. Geba foi, na história da presença portuguesa, um importante entreposto comercial. Na época estava em decadência, tendo sido de há muito suplantada por Bafatá, a segunda cidade da província.

Arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)
© Humberto Reis (2006)


1. Texto do Mário Dias (ex-sargento comando, Brá, 1963/66)

Caro Luis

Tinha guardado o propósito de falar sobre os acontecimentos de Agosto de 1959 no Pidjiguiti proximamente. Atendendo, porém, que eles têm sido referidos recentemente no blogue, antecipei a decisão. Espero que se consiga lançar um pouco de luz sobre esta tragédia de forma a que se evitem especulações futuras.

Um abraço
Mário Dias


2. Comentário de L.G.:

O "massacre do Pidjiguiti"(sic) é um dos mitos fundadores do PAIGC. Aliás, marca o início da "luta de libertação nacional". Este depoimento do Mário Dias é uma peça importante para se fazer a história recente da Guiné-Bissau: reivindicações laborais dos marinheiros do serviço da cabotagem das casas comerciais de Bissau (e, em particular, da Casa Gouveia, ligada ao grupo CUF - Companhia União Fabril) estiveram na origem de graves tumultos que foram prontamente reprimidos pelas autoridades portuguesas.

O depoimento do Mário Dias terá que ser tido em conta pelos nossos historiadores (tanto de um lado como do outro). E sobretudo por nós, portugueses e guineenses, que temos direito à verdade. Eu só conhecia (e mal) a versão do PAIGC, que fala em massacre, em 50 mortos e mais de um centena de feridos. Na época - é bom lembrá-lo - a imprensa portuguesa não era livre, pelo que nunca nos poderia dar a, nós, metropolitanos, uma versão isenta dos acontecimentos. Havia a censura, a polícia política, o partido único, o Salazar... É bom não esquecê-lo.

Infelizmente, não conheço investigação de arquivo sobre este assunto. Talvez o nosso amigo e membro da nossa tertúlia, Leopoldo Amado, possa fazer luz sobre este e outros acontecimentos que antecederam o início da guerrilha do PAIGC, na sua tese de doutoramento sobre a guerra colonial 'versus' guerra de libertação que eu estou ansioso por ver apresentada e discutida, em provas públicas, na Universidade de Lisboa.


Guiné-Bissau > Bissau > Planta da cidade a seguir à independência. Veja-se a localização do porto do Pidjiguiti (para os barcos de pesca e de cabotagem), à esquerda do porto de Bissau (para os navios da marinha mercante) (LG)
 
© A. Marques Lopes (2005)

Como é timbre da nossa tertúlia, este blogue tem procurado pautar-se pela procura da verdade dos factos, tendo já publicado alguns notáveis (e inéditos) documentos sobre a experiência da guerra na Guiné (1963/74). Nenhum de nós é detentor da verdade. E a verdade não se resume aos factos: mais complexa é a sua análise e interpretação.

O depoimento do Mário Dias honra esta tertúlia. O Mário é um homem que, sem negar os seus valores, a sua identidade e o seu passado, tem revelado uma grande sensibilidade, sabedoria e honestidade intelectual... Estou-lhe grato pelo envio desta peça que também fiz questão de divulgar prontamente no nosso blogue, colocando-a à frente de outros textos que estão na calha.


Guiné > Bissau > Postal de Maio de 1966 > Cais do Pigiguiti (sic)

© Virgínio Briote (2005)

Ele foi uma testemunha (privilegiada) dos acontecimentos: ele estava lá em Bissau, no Pidjiguiti, nesse dia 3 de Agosto de 1959 (que é hoje dia de feriado nacional na República da Guiné-Bissau). Essa circunstância valoriza muito a sua versão (pessoal) do que ocorreu naquele dia e que, à distância de 47 anos, não podemos deixar de condenar e lamentar...
Não vou entrar em polémica (e muito menos com o nosso querido Mário) sobre a contabilidade dos mortos e o conceito (técnico-jurídico) de massacre. Nem sobre sobre outros alegados massacres que terão occorrido na nossa longa guerra ultramarina, tanto na Guiné como em Angola e Moçambique, a começar pelo terrível massacre de população civil cometido pela UPA no norte de Angola, em 1961.
Eu sei que este assunto ainda hoje é doloroso para todos nós. E fracturante. Mas também não é tabu: a janela fica aberta para o debate (se possível, sereno) sobre estes e outros fantasmas da guerra colonial (ou do ultramar, como queiram) que ainda não ainda conseguimos exorcizar... L.G.


Os acontecimentos do Pidjiguiti em Agosto de 1959 (depoimento de Mário Dias)

Muito se tem escrito e comentado sobre os acontecimentos que tiveram lugar no cais do Pidjiguiti em 3 de Agosto de 1959. Eu estive lá. À época dos factos, cumpria o serviço militar obrigatório, ainda como recruta (o Juramento de Bandeira teve lugar uma semana depois, precisamente a 10 de Agosto).

Para melhor entendermos a greve e consequente revolta dos marinheiros, há que recuar um pouco no tempo e no contexto em que se movimentava a actividade dos marinheiros.

As principais casas comerciais da Guiné (vou designá-las pelo nome abreviado como eram conhecidas, Casa Gouveia (CUF), NOSOCO, Eduardo Guedes, Ultramarina e Barbosas & Comandita, tinham ao seu serviço frotas de lanchas - umas à vela e outras a motor - que utilizavam no serviço de cabotagem transportando mercadorias para os seus estabelecimentos comerciais e, no regresso, traziam para Bissau os produtos da terra, principalmente mancarra e arroz. A maioria deste tráfego era pelo rio Geba, até Bafatá e, para o Sul até Catió e Cacine.


Guiné > Bissau > 1969 > Cais do porto de Bissau. Foto tirada do lado do Pidjiguiti.

© Humberto Reis (2005)


Anualmente, essas empresas se reuniam para acordarem os salários a pagar aos diversos elementos da tripulação das embarcações. Esse acordo tinha a finalidade de ajustar o salário nas várias frotas, de forma a evitar concorrência no engajamento do pessoal. É claro que, embora efectivamente todos os anos fossem aumentados, os marinheiros não eram tidos nem achados nestas reuniões. Era comer e calar à boa maneira da época. O mesmo se passava, aliás, em relação ao preço a praticar anualmente na compra do amendoim (mancarra) e que era fixado por tabela governamental, ouvidos os comerciantes. Os agricultores não era ouvidos nem tinham voto na matéria.

Acordo estabelecido, as várias firmas comerciais começaram a pagar aos marinheiros o novo salário. Porém, a Casa Gouveia não procedeu ao aumento e continuou a pagar pela tabela do ano anterior. Passaram-se meses e os marinheiros questionavam o gerente - na altura o ex-funcionário do quadro administrativo Intendente Carreira - sem resultados e até com uma certa sobranceria, tique que lhe deve ter ficado dos tempos de funcionário administrativo. Com o descontentamento a aumentar e ânimos cada vez mais exaltados se chegou à tristemente célebre tarde de 3 de Agosto de 1959.

E agora o relato dos acontecimentos por mim presenciados e conforme informações na altura colhidas.

Nesse dia passou por Bissau, a caminho de Angola, uma alta entidade da Força Aérea. Ocupava no governo, salvo erro, o cargo de Secretário de Estado de Aeronáutica. Fosse qual fosse a sua função, a verdade é que tinha direito a honras militares à sua chegada ao aeroporto. Não havendo outra tropa com capacidades para tal missão, embora ainda recrutas e como tal impedidos regulamentarmente de prestar guardas de honra, acabámos por ser nós a fazê-lo. Bem limpos e engraxados, mauser com baioneta calada, luvas brancas, partiu a Companhia de Recrutas para Bissalanca (1).

A cerimónia decorreu de forma brilhante (nós éramos um espanto!) e iniciámos o regresso ao nosso quartel em Santa Luzia. Ao aproximarmo-nos da praça do Império, comecei a reparar que muita gente se dirigia apressadamente, alguns até corriam, em direcção ao rio. E, um pouco antes de atingida essa praça, fomos interceptados pelo comandante da companhia, capitão Teixeira, que se dirigiu ao oficial que comandava a coluna, tenente Vaz Serra, com quem esteve a conversar por alguns momentos.


Guiné > 1970 > Vista aérea do Geba Estreito entre o Xime e Bafatá > Na época, a Casa Gouveia ainda tinha um serviço de cabotagem entre Bissau e Bafatá, embora precisasse de segurança militar próxima, no troço Xime-Bambadinca-Bafatá (LG)
Arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)
© Humberto Reis (2006)

Retomada a marcha, ficámos todos surpresos por virarmos à direita em direcção ao rio em vez de à esquerda para Santa Luzia. Conforme descíamos a avenida da República víamos que algo devia estar a acontecer pois cada vez havia mais pessoa aglomeradas e maior era a agitação que demonstravam. A certeza tive-a quando, já perto da Casa Gouveia, vi, em cima de um camião que seguia para o hospital, vários homens em grande exaltação. Um deles ficou-me na memória: de pé, escorrendo sangue de um ombro, barafustava e agitava os braços, dava punhadas no peito como um possesso. Impressionante! Ainda hoje, passados todos estes anos, quando se fala destes acontecimentos do Pidjiguiti, é esta a imagem que me ocorre.

Chegados ao local, vi uma considerável multidão nas imediações, os portões do Pidjiguiti encerrados e uma força da PSP, constituída por pouco mais de uma dezena de seguranças, como chamávamos aos polícias africanos, armados com espingardas Lee Enfield 7,7 mm, enquadrados por 2 ou 3 graduados europeus.

Na altura já tinham terminado os tiros e encontravam-se apenas a conter a multidão e a evitar que os marinheiros e trabalhadores do cais de lá saíssem em direcção à Casa Gouveia. Fomos mandados apear das viaturas e só então nos deram as indicações da nossa missão que foi, simplesmente, cercar os terrenos anexos ao Pidjiguiti (no local onde mais tarde nasceram as Oficinas Navais e instalações da Marinha e Fuzileiros) que na altura eram terrenos baldios. Não devíamos deixar ninguém sair por esse lado que não tinha vedação. Ainda vimos alguns tentando fugir por aí, atravessando o lodo, mas desistiam ao ver o cordão por nós ali formado. Nós, militares intervenientes, não demos nenhum tiro. Aliás, nem podíamos pois nem tínhamos munições. Como já referi estávamos a regressar de uma guarda de honra quando fomos desviados para o local. Deve ter sido bem caricata a nossa postura, de luvas brancas, num cenário daqueles.

Ali nos mantivemos, aproximadamente 30 minutos, até os ânimos acalmarem (era o que se pretendia) e regressámos ao quartel.

Nos dias seguintes não se falava de outra coisa. Como não tinha assistido ao início dos acontecimentos, fui perguntando aos que mais de perto o tinham seguido e a versão generalizada era a seguinte:

Nessa tarde, mais uma vez, aproveitando a presença do gerente da Casa Gouveia no local, os marinheiros e descarregadores pertencentes a essa firma comercial reclamaram pelo aumento de salário que todas as outras empresas já estavam a praticar.
- Casa Gouveia, nada. Então como é, senhor Intendente? - As coisas começaram a azedar e teve que retirar apressadamente a bem da sua integridade física. Chamou-se a polícia. Um subchefe que para lá se dirigiu, não sei se por falta de tacto em situações como aquela ou porque a exaltação dos marinheiros e trabalhadores era já considerável, foi agredido com um remo na cabeça e teve de imediato que ser socorrido e levado para o hospital. Vieram reforços, já armados, e como se organizava no cais um movimento em direcção à Casa Gouveia, armados de remos, ferros e do que havia à mão com a intenção de tudo escavacar, fecharam os portões para impedir a sua saída. Mesmo assim não desistiram e começaram a galgar o portão e a vedação.

Entretanto, o comandante militar, tenente-coronel Filipe Rodrigues, chegado ao local inteirou-se da situação e, ao ver aquele grupo armado de remos, paus, etc. a marchar agressivamente em direcção à Casa Gouveia, deu ordens aos polícias para dispararem por ser a única forma de os deter.

E foi assim que aconteceu. O resultado foram 16 mortos e não 50, ou até mais, como já tenho visto escrito. Por mim, um que fosse já era demais. Mas, atendendo às circunstâncias do momento, hoje questiono-me: que teria acontecido se não tivesse sido travada aquela multidão da única forma que foi possível? Certamente teríamos muita destruição e bastantes mais mortes a lamentar. E ter-se-ia gerado uma espiral de violência de consequências muito mais graves.

Da narração destes tristes acontecimentos podemos realçar os seguintes factos:

- O PAIGC não esteve por detrás da ocorrência. Ela foi inteiramente da responsabilidade dos marinheiros e trabalhadores do cais pertencentes à Casa Gouveia, por motivos meramente laborais. Os marinheiros das outras empresas não estiveram envolvidos, pelo menos no início dos acontecimentos. É possível que, por solidariedade, alguns se lhes tenham juntado. O PAIGC aproveitou-se inteligentemente deste movimento, como sempre fez - o que só nos merece admiração - para conquistar mais uns tantos seguidores.

- Não se pode considerar o ocorrido como uma simples greve, conforme é vulgarmente referido. Foi mais do que isso. Tendo começado por greve, rapidamente se transformou numa revolta violenta cujas consequências são difíceis de prever se não tivesse sido travada. Se a referida revolta era ou não justificada, é-me difícil concluir. Sim, atendendo à injustiça de que estavam a ser vítimas. Não, pelas proporções que lhe deram.

Antes de concluir, parece-me que o termo massacre, aplicado aos acontecimentos do Pidjiguiti, é um pouco exagerado, não por o número ser muito inferior aos 50 habitualmente referidos, mas porque o conceito que a palavra implica, se refere à chacina indiscriminada, a uma carnificina injustificada do género descrito nos livros de história como passar tudo a fio de espada.

Com respeito aos massacres de populações balantas e beafadas na região de Bambadinca nos primeiros anos de 60, referidos no blogue-fora-nada (2), embora não os possa negar ou confirmar, tendo eu saído da Guiné em Fevereiro de 1966, nunca deles ouvi falar o que é estranho pois, como se diz na Guiné, noba ka ta paga cambança - aforismo com um sentido semelhante ao as notícias espalham-se depressa. Numa terra como a Guiné onde tudo se sabia e comentava, é estranho que nunca tivesse ouvido falar em tal acontecimento. Deve ter sido muito bem ocultado.

Guiné-Bissau > 2005 > Também eles, os filhos do Pidjiguiti, os filhos das vítimas da repressão da manifestação dos marinheiros do Porto do Pidjiguiti, em 1959, têm direito à verdade... (LG)

© Jorge Neto (2005) (Fonte: blogue Africanidades. Com a devida vénia)


E já que estamos a tratar de massacres, assunto tão melindroso e de que frequentemente acusam as nossas tropas, só tenho a dizer que durante toda a guerra colonial a que assisti e em que participei (depois da Guiné tive uma comissão em Moçambique e duas em Angola) massacres, massacres mesmo, na verdadeira acepção da palavra, só conheci um: foi o perpetrado pela UPA (mais tarde FNLA) no Norte de Angola em Março de 1961 sobre os fazendeiros brancos e suas famílias bem como sobre os negros bailundos fiéis aos seus patrões. Mas esses já estão esquecidos ou, convenientemente, nunca são referidos.
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Notas de L.G.

(1) Sobre a recruta do Mário Dias , vd. post de 1 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCI: Domingos Ramos, meu camarada e amigo (Mário Dias)

(2) Fui eu que fiz referência, há dias, em e-mail interno que só circulou pela nossa tertúlia, a alegados "massacres de populações balantas e beafadas" que terão ocorrido na região de Bambadinca, no início da guerra,reportando-me apenas a conversas, soltas, que eu fui tendo, durante a minha comissão (Maio de 1969 a Março de 1971) com os meus queridos nharros (leais, valentes, insuspeitos, fulas) da CCAÇ 12 mas também com outras fontes como o malogrado Seco Camará, mandinga do Xime, extraordinário guia das NT (morto em 26 de Novembro de 1970, na Op Abencerragem Candente > post de 25 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970)...

terça-feira, 14 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P517: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (8): Gazela com chouriço à moda do Celestino

Guiné > Guileje > CART 1613 > 1968> Aspectos da construção de uma abrigo-caserna...
© José Neto (2005)

VIII parte das memórias do primeiro-sargento da Companhia de Artilharia nº 1613 (Guileje, 1967/68), o então 2º Sargento José Afonso da Silva Neto (e hoje, capitão reformado) (1).

© José Neto (2005)


O ano de 1968 entrou com uma novidade.

O esforço sobre o corredor de Guilege diminuiu de intensidade e a actividade operacional concentrou-se mais para a zona da fronteira, com a prioridade de manter seguro o itinerário Gadamael Porto – Guilege.

Estavam para chegar as CAÇ 2316 e 2317 que iam acantonar, em condições precárias, no Mejo e em Guilege com vista a qualquer acção em grande que estava no segredo dos Deuses de Bissau.

As colunas de reabastecimento passaram a ser mais frequentes e despejaram toneladas de mantimentos numa zona contígua ao perímetro fortificado que foi desminado e aplanado para o efeito.

Numa destas colunas, o Alferes Michael, que teimava em postar-se bem alto na torre da sua Fox, até já tinha sofrido ferimentos ligeiros, foi atingido com alguma gravidade pelo fogo duma emboscada.

Veio o helicóptero para a evacuação e foi a muito custo que a 2º sargento enfermeira paraquedista convenceu o Alferes a deitar-se na maca para ir para o hospital. Era um bravo este alferes. Uma semana depois, ainda cheio de pensos, voltou para junto dos seus homens.

Ao mesmo tempo apareceram-nos uns civis e uma secção de Engenharia, comandada por um sargento, com material para abrir um furo hertziano na área do quartel para obtenção da preciosa água potável.

Estes tiveram o azar de apanhar um festival corriqueiro logo à chegada e, após uma semana de perfuração ao ralenti, um olho na máquina e outro na mata, diagnosticaram a impossibilidade de apanhar um qualquer lençol subterrâneo de água que passasse por ali, desmontaram a traquineta e puseram-se a andar para o sossego de Bissau.


Guiné > Guileje > CART 1613 > 1968> Construção de um abrigo para a população civil...
© José Neto (2005)

Entretanto chegaram as duas companhias, pertencentes ao BCAÇ 2835 e tivemos notícias de que a 5ª Companhia de Comandos (comandada pelo Capitão de Artilharia Comando Gonçalves) tinha sido afecta ao nosso Batalhão e estava pronta a actuar na área de Aldeia Formosa, o que adensava as expectativas do que ia suceder nos próximos tempos.
A chegada dum pelotão de Artilharia de 8,8 cm com quatro bocas de fogo, instaladas com a direcção nor-nordeste, acabou com as dúvidas de que ia haver “porrada de criar bicho”.

E no dia D, fins de Fevereiro, desencadeou-se a Operação Bola de Fogo.

A finalidade desta mega-operação era implantar um aquartelamento em Gandembel, perto da ponte do rio Balana, a ser reconstruída e guarnecida com um destacamento de segurança, sensivelmente a meio caminho entre Guilege e Chamarra.

Aquele local era praticamente o grande portão de entrada do Corredor de Guilege e assim pretendia-se, se não acabar, pelo menos dificultar a penetração do IN no interior sul do território.

A primeira fase consistia em limpar e tornar transitável a picada, havia anos abandonada, que ia do cruzamento de Guilege a Gandembel, ou seja, a continuação do itinerário Cacine – Gadamael – Gandembel e daí para norte até Aldeia Formosa. Esta primeira fase da operação estava a ser comandada, a partir de Guilege, pelo Celestino (1).

Foi então que ele me ameaçou pela quinta (e última) vez com uma porrada. Para descomprimir vale a pena contar a cena:

O pessoal combatente tinha saído quase todo e, contando com a besta, estávamos vinte e três militares europeus no quartel. A segurança era feita pelo Pel Caç Nat 51 e Milícias.

Durante a noite anterior tinha sido accionada uma das nossas armadilhas e de manhã deparamos com uma gazela morta no local.

Claro que o Álvaro, cabo cozinheiro, se preparou para ser dia de rancho melhorado. Não era todos os dias que nos aparecia a gostosa e suculenta carne fresquinha de gazela.

Como era da praxe, foi anunciar ao Celestino a composição da refeição, neste caso o almoço. Este, fazendo jus à sua fama de bom garfo, disse ao Álvaro para juntar uma lata de chouriço (dois quilos) para refinar a especialidade gastronómica.

Um tanto encavacado o cozinheiro observou que o animal tinha dado vinte e dois quilos de carne limpa o que, para vinte e três comensais, chegava e sobrava.
-Faça o que eu lhe mando! - berrou o Celestino.

De cabeça baixa, o Álvaro retirou-se congeminando o processo de o quarteleiro dos géneros, o soldado Melo, lhe fornecer a lata de chouriço.

O Melo não foi na cantiga. Ele conhecia bem as regras adoptadas para a recuperação dos prejuízos que já descrevi, e chutou a bola para mim.

Tomei a decisão de não se meter chouriço no tacho, mas levar, para os oficiais, um prato com um desses enchidos cortado às rodelas e preparei-me para o temporal que se adivinhava.

Guiné > Guileje > CART 1613 > 1969> O nosso primeiro posando com uma graciosa bajuda da tabanca
© José Neto (2005)

Quando o Celestino enfiou o guardanapo no colarinho e inspeccionou o manjar, ordenou que o cozinheiro viesse à sua real presença.O Álvaro passou pelo sítio onde eu estava a almoçar e disse-me que o comandante, se calhasse, o ia mandar prender.
-Sossegue. Eu vou consigo.

Antes que o trombone começasse a tocar eu adiantei-me e disse que toda a responsabilidade era minha. O cabo tinha cumprido uma ordem legítima, salientei.
-Legítima?!!! Então você contraria uma determinação do seu comandante e acha que a sua ordem é legítima?
-É sim, meu comandante. A administração desta companhia é da responsabilidade do nosso Capitão Corvacho e minha. E, como é do conhecimento de V. Exª., nós estamos a arcar com muitos prejuízos na alimentação e não nos podemos dar ao luxo de desprezar uma migalha que seja.

O homem emborcava garfadas e ia rosnando os impropérios do costume.A certa altura, virou-se para o Dr. Oliveira Martins e disse-lhe:
-Oh doutor, já viu a tropa que eu estou a comandar? Um reles segundo sargento manda mais que um tenente-coronel!!!

O médico, que também não morria de amores pela besta, abriu a sua resposta contemporizadora com a expressão:
-Bem, meu comandante, eu julgo...
-Você julga? Julga o quê? Você é médico, ou juiz? - interrompeu o Celestino.

Bom. Julga ou cura. Cura ou julga, o fulcro da questão desviou-me para os dois verbos e o médico, que não era pêra doce, aproveitou para lhas cantar, como se costuma dizer, forte e feio.

A porrada ficou pendente, mas o pêndulo às vezes tem caprichos do diabo, como se verá mais adiante.
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(1) Vd post de 8 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto)(6): dos Lordes e das bestas:

"Celestino era o nome com que depreciativamente tratávamos o Ten-Cor. Celestino da Cunha Rodrigues, comandante do BART 1896, sediado em Buba, personagem muito sombria da minha memória pois ameaçou-me com cinco punições, nunca concretizadas. Algumas vezes o trato por besta nesta narrativa, com alguma propriedade".

Guiné 63/74 - P516: Portugal, tabanca grande (Humberto Reis e Paulo Raposo)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca)> 1969 ou 70 > Vista aérea da tabanca de Samba Juli > Em Fevereiro de 1969, aquando o desastre do Cheche, a CCAÇ 2405 estava sediada em Galomaro, com um pelotão em Samba Juli, outro em Dulombi e um terceiro em Samba Cumbera. Samba Juli fazia parte de um conjunto de tabancas fulas, em autodefesa no regulado do Corubal, ao longo da estrada Bambadinca-Xitole, onde se incluía Dembataco e , Moricanhe (a oeste da estrada), Samba Culi, Sinchã Mamajã, Sare Adé, Afiá, Candamã, entre outras (a leste)... Tudo nomes que ainda ressoam estranhamente nas nossas cabeças: em muitas delas contávamos as estrelas à noite e esperávamos o alvorecer não sem alguma ansiedade... Nós e os nossos nharros da CCAÇ 12. (LG)

Diapositivo digitalizado. Arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)
© Humberto Reis (2006)

Guiné > Guileje > 1967 > CART 1613 > A tabanca de Guileje... Legenda para quê ? A vida segue dentro de momentos...
© José Neto (2006)


1. Texto do Humberto Reis:

Paulo Raposo

Se calhar também andámos nas mesmas andanças, no mesmo tempo, ali para os lados do sector de Galomaro. A minha CCAÇ 12 andou por lá em Madina Xaquili (depois teve lá um pelotão, por acaso o meu 2º, estacionado uma semana e teve também um, o 1º, estacionado em Dulombi) em Agosto/Setembro de 1969 quando se formou o COP 7, se não estou em erro.

Mais tarde, Dulombi teve direito a uma companhia, 26??, comandada pelo meu amigo Cap Carlos Maurício Gomes de quem perdi o rasto a partir do momento em que ele deixou de estar no Batalhão de Transportes (em 1975 ou 1976), ali no Campo Grande, onde hoje é a Universidade Lusófona.

Reparei agora que o teu endereço é o da Herdade da Ameira em Montemor. Será que o nome da Herdade da Lobeira e o da Herdade de Cima não te dizem nada? Ficam entre o Lavre e o Ciborro (a Lobeira mais perto do Lavre e a de Cima mais perto do Ciborro). Na Herdade da Lobeira já se fizeram 2 almoçaradas do pessoal que andou por Bambadinca nos anos de 68 a 70 (como foi o meu caso da CCAÇ 12, que comecei na colónia de férias de Contuboel durante quase dois meses e acabei como companhia de intervenção nos sectores L5 e L1).

As herdades atrás referidas não são minhas, com muita pena como é óbvio, mas da família Vacas de Carvalho que teve um dos seus membros, o maluco do ex-alferes miliciano das Daimlers lá em Bambadinca. Daí a razão das almoçaradas. Este Vacas de Carvalho, um dos 13 irmãos ainda vivos, residiu aqui a 100 metros de minha casa [em Alfragide] e agora mora ali para os lados da Ajuda [Lisboa].

Ainda acabamos por descobrir que isto de Portugal é uma Aldeia Grande.

Um abraço
Humberto Reis


2. Resposta do Paulo Raposo:

Meu caro Humberto

Corpo de Bó?

Pois andámos pelos mesmos sítios, na mesma altura.

O Cop 7 era comandado pelo meu bom amigo Major Pardal dos Páras.

A minha companhia foi abrir Dulombi em fins de 1969. Manga de porrada e de mina.

Conheço quase todos os Vacas de Carvalho, embora dou-me mais de perto com o Paulo.

Na Herdade vim fazer um Hotel, por isso agora passo cá a maior parte do tempo.

Fica à saída de Montemor para Évora.

O cripto continua avariado portanto este rádio vai às claras.

Se passares por estes lados bate à porta, mas é conveniente picar a estrada.

Um abraço muito amigo do ex-combatente, que, se me deixassem ficar mais tempo na Guiné tinha acabado com a guerra, assim ainda deixei alguma coisa para ti.

Guiné 63/74 - P515: A verdade sobre o desastre de Cheche (José Martins)

Caro Rui Felício:

Acabo de ler o testemunho colocado no blogue (1).

O texto que escrevi e enviei na altura em que passava o 37º aniversário do fatídico dia 6 de Fevereiro de 1969 (2), pretendia ser uma singela e sentida homenagem àqueles que, no cumprimento duma missão que lhes foi confiada, acabaram perdendo a vida e ficando, para sempre, nas águas do Corubal. Por isso lembrei o nome de cada um daqueles eternos camaradas.

Espero que o texto não tenha vindo reabrir cicatrizes ou, o que seria pior, abrir novas e mais profundas feridas.

A história tem que ser contada pelos seus protagonistas. Hoje eu aprendi história.

Um forte abraço do camarada
José Martins
(ex-furriel miliciano de transmissões,
CCAÇ 5,
Canjadude, 1968/70)
___________

Notas de L.G.

(1)Post de 12 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXVI: O desastre do Cheche: a verdade a que os mortos e os vivos têm direito (Rui Felício, CCAÇ 2405)

(2) Vd post de 3 de Fevereir de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCV: Madina do Boé: 37º aniversário do desastre de Cheche (José Martins)

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P514: A verdade sobre o desastre de Cheche (Zé Teixeira)


Guiné > Guileje > CART 1613 > 1967 > O pôr do sol na tabanca de Guileje... O pôr do sol em Áfirca... Um momento de paz e de espiritualidade.
© José Neto (2006)


Luís:

Custa muito, passados estes tantos anos sobre o acidente de Cheche, vir-se a descobrir que a verdade era outra.

Morreu nesse desastre um irmão de um camarada da minha Companhia, que logo que me apercebi, escrevi em nome dele uma carta ao Comandante-Chefe e o meu camarada regressou a Lisboa. Estavam ambos na Guiné.

Como deves calcular também vivi este acidente de perto, até porque estava envolvido um irmão do meu camarada. Passados estes anos, as lágrimas de raiva voltaram. Ao menos gritemos a verdade, para que todo o mundo saiba quem tínhamos a mandar nesta guerra.

Um abraço
Zé Teixeira

Guiné 63/74 - P513: A verdade sobre o desastre de Cheche (David Guimarães)

Tem que haver sempre um burro - o 2º CMDT... Continuo a ler este documento - isto marcou muito a Guiné - e a certa altura lá estava eu... Mas digo: está sempre um segundo CMDT... Mania de serem mais espertos que outros... Na Operação do insucesso do Xime (já mais que falada no blogue), aí estava o 2º CMDT a fazer asneira e quem pagou as favas foi o 1º que estava de férias, o tenente-coronel Magalhães Filipe...

Bem, não há dúvidas era de uma coisa: varria-se quem não se queria lá e ficavam quem o general queria... Refiro-me ao Spínola... Aconteceu no BART 2917. Se calhar esse segundo CMDT desse desastre da jangada nem foi punido... A guerra era mesmo mal [conduzida] e injusta com quem lutava do mesmo lado...

Mas continuem, quem sabe se este documento, agora divulgado, não vai poder cointribuir para descobrir os verdadeiros culpados. Nem sei se interessa, o que sei que é que se matou gente por incompetência, isso sei e é o que sinto ...

Sei dos que têm medalhas e não as merecem e sei daqueles que não as tiveram e deveriam ter... Mas também para quê uma medalha a titulo póstumo?

Ai, que hoje nem consigo falar bem: senti-me combatente... Sim, novamente um combatente e hoje em paz... Os mortos não falam, pois que que sejam os vivos a dizer as verdades, estamos agora a a sabê-las e ainda bem....

A história de Madina tem sido muito romanceada e depois entra-se logo na fase dos mortos para, como bons portugueses, ficarmos a lamentar e só... Afinal houve causa maior, pelos visto...

Atento à história e isto, sim, também é a guerra...

David Guimarães

Guiné 63/74 - P512: A verdade sobre o desastre de Cheche (Paulo Raposo)

Olá Luis

Obrigado pela rádio. O cripto anda apanhado do clima, anda mesmo de todo, no entanto aqui vai:

Alf Raposo da CCAÇ 2405, também assisti ao desastre do Corubal, tinha passado com o meu grupo de combate na travessia anterior. Estavamos de regresso da grande operação de Madina do Boé. O meu muito amigo Alf Felício estava na jangada acidentada. O testemunho dele é verdadeiro.

Às quintas não esquecer o quinino.

Um abraço quebra costelas para o pessoal todo.
Paulo Lage Raposo

Guiné 63/74 - P511: A verdade sobre o desastre de Cheche: a culpa não pode morrer solteira (Luís Graça)

Guiné-Bissau > Madina do Boé > 24 de Setembro de 1973 > O PAIG proclama unilateralmente a independência. 
Fonte: PAIGC (?). 
Foto tentilmente cedida por Jorge Santos (reproduzida de: Guerra Colonial: Chaimite o Último Ciclo do Império. Lisboa: Museu República e Resistência. 1999).


O nosso blogue orgulha-se de acabar de publicar o depoimento do Rui Felício (1), que foi alferes miliciano da CCAÇ 2405, e que perdeu 11 dos homens do seu grupo de combate no dia 6 de Fevereiro de 1969.

Ele foi vítima e ao mesmo tempo testemunha dos acontecimentos. Passados 37 anos, ainda há factos, controversos (e graves), por esclarecer: um deles é a ordem do 2º Comandante da Operação Mabecos Bravios (um major de que o Rui não se lembra o nome) e que terá obrigado o oficial que comandava a travessia do rio em jangada (Alf Diniz), a embarcar não dois mas quatro pelotões, infringindo assim as normas de segurança (a lotação da jangada era de 60 pessoas)…

Os tipos da SIC passaram há anos um filme sobre o desastre de Cheche mas, ao que parece, desvalorizaram a versão dos nossos camaradas da CCAÇ 2405…

Será que alguém quis (e continua a querer) branquear a história e alijar a carga da responsabilidade ? Os camaradas da CCAÇ 2405 – e todos nós, os mortos e os vivos! – temos o direito à verdade, por muito que nos doa…

Este blogue não é nenhum tribunal, mas nenhum de nós quer que a culpa morra solteira, como é habitual neste país… Podemos e devemos fazer um juízo moral sobre a (in)competência dos nossos comandantes militares… Temos esse direito, ganhámos esse direito…

Eu, pessoalmente, gostaria de saber:

(i) quem era o dito major;

(ii) a que companhia pertencia o Alf Dinis (CCAÇ 1790 ?);

(iii) se a ordem do major ficou registada por escrito;

(iv) se o Alf Diniz ainda está vivo e mantém essa versão…

A verdade é que alguém deu ordens (!) para meter 120 homens armados até aos dentes numa jangada cuja lotação era só para metade…

Saúdo o Rui Felíico, com respeito, admiração e solidariedade!

Luís Graça
(ex-fur mil,
CCAÇ 12,
Bambadinca, 1969/71)
________

(1) Vd. post de 12 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXVI: O desastre do Cheche: a verdade a que os mortos e os vivos têm direito (Rui Felício, CCAÇ 2405)

Guiné 63/74 - P510: O mapa de Padada (Humberto Reis)

O Humberto Reis ainda é piro que os nossos dirigentes dos clubes da bola: promete o céu e a terra... Agora diz que quer cartografar a Guiné toda, de ponta a ponta... Leiam a mensagem (quie foi, de resto, já transmitida a toda tertúlia):

Como diz o Luís, ainda não temos o mapa de Padada. Não pode ser tudo no mesmo dia, dado que os mapas são muito pesados e ele não consegue tratar disto tudo, do blogue e ainda fazer alguma coisa pela vida dele. Além de aturar todos estes tertulianos, ainda tem que dar umas aulas (já agora).

Ele ainda lá tem mapas que eu já lhe levei digitalizados, para inserir mas não houve tempo. Com calma vamos lá chegar. Prometo já aqui que o próximo a ser digitalizado será o de Padada. Devagar, devagarinho e de pantufas para não fazer muito barulho, nem levantar ondas, havemos de conseguir ter TODOS os mapas da Guiné Bissau a 1/50000.

Até para mim, pessoalmente, tem interesse pois foi aí em Madina Xaquili, zona de Padada, que me estreei a saber o que era baixar as orelhas enquanto elas passavam a assobiar por cima. Já a mesma sorte não teve o pessoal de uma companhia de madeirenses [2446] que tinha acabado de chegar à tabanca.

Como não havia abrigos para todos (população civil, 3 pelotões da minha companhia e eles) foi decidido que os madeirenses, nós já lá estávamos instalados, tinham de sair do perímetro da tabanca e emboscar cá fora pois desconfiávamos que íamos ser prendados.

A minha companhia tinha estado emboscada 3 dias no trilho que vinha de Padada à espera deles, que nunca apareceram. Quando viemos embora, eles seguiram-nos e nessa noite embrulhámos. O azar dos madeirenses é que foram apanhados no descampado entre o arame farpado da tabanca e o princípio da mata, não tiveram tempo de se internar no meio do matagal.

Isto vem no historial da CCAÇ 12, só que eu não o tenho aqui e estou a escrever de cor como o galo (1).
________

Nota de L.G.

(1) Vd. post de 29 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXVIII: O baptismo de fogo da CCAÇ 12, em farda nº 3, em Madina Xaquili (Julho de 1969) :

(...)

"Ainda não haviam sido distribuídos os camuflados às praças africanas quando a CCAÇ 12 fez a sua primeira saída para o mato. A 21, três Gr Comb (2º, 3º e 4º) seguiam em farda nº 3 para Madina Xaquili a fim de reforçar temporariamente o sub- sector de Galomaro,[a sul de Bafatá].

"(...) Seria, aliás, em Madina Xaquili que a CCAÇ 12 teria o seu baptismo de fogo. Os três Gr Comb haviam regressado, em 24, à tarde, dum patrulhamento ofensivo na região de Padada, tendo ficado dois dias emboscados no mato (Op Elmo Torneado), quando Madina Xaquili foi atacada ao anoitecer por um grupo IN que muito provavelmente veio no seu encalce.

"0 ataque deu-se no momento em que dois Gr Comb da CCAÇ 2446 que vinha render a CCAÇ 12, saíram da tabanca a fim de se emboscarem. [Esta companhia madeirense teve dois mortos e vários feridos]. 0 IN utilizou mort 60, lança-rockets e armas ligeiras, tendo danificado uma viatura e causado vários feridos às NT. O primeiro ferido da CCAÇ 12 foi o soldado Sori Jau, do 3º GR Comb, evacuado no dia seguinte para o HM [Hospital Militar] 241 [Bissau]" (...).

domingo, 12 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P509: O desastre do Cheche: a verdade a que os mortos e os vivos têm direito (Rui Felício, CCAÇ 2405)

Texto do Rui Felício (ex-alf mil da CCAÇ 2405, Galomaro, 1968/70):


1. Comentário a propósito do post escrito pelo camarada José Martins sobre o desastre na travessia do Rio Corubal em 6 de Fevereiro de 1969 (1)

Preâmbulo

Acabei de ler um texto escrito pelo camarada José Martins onde relata a sua experiência na zona de Madina do Boé.

Embora tenha reconhecido que não assistiu directamente ao que se passou no célebre e lamentável desastre do Cheche, ocorrido no fatídico dia 6 de Fevereiro de 1969, o José Martins conheceu bem o local e a região e desenvolveu a sua descrição socorrendo-se de relatos e documentos alusivos ao sucedido.

E nota-se pelo seu relato que sofreu muito, e que ainda hoje sente as marcas do desastre, passados 37 anos sobre a sua ocorrência.

Ninguém, bem formado e sensível, poderia nunca, de resto, ficar indiferente a semelhante tragédia, ainda que, como o narrador José Martins, não tenha dela sido testemunha ocular.

Imagine-se então a ferida profunda que aquele desastre deixou a quem, como eu e muitos outros, foi não só testemunha ocular mas também, e principalmente, interveniente e vítima do colapso da artesanal jangada que servia de transporte aos militares e equipamentos que participaram na complexa, perigosa e cansativa operação de resgate da Companhia de Caçadores que se evacuou do célebre aquartelamento de Madina do Boé.

Desastre onde pereceram, segundo as estatísticas oficiais, 47 militares, onze dos quais, do pelotão que eu comandava… Permito-me destacar dois deles pelas relações especiais de amizade e de confiança que neles depositava, sem esquecer obviamente a dor causada pela morte de todos os outros:

(i) um, o furriel Gregório Rebelo, açoriano de sotaque cerrado e quase ininteligível que assumia as funções, embora não protocolares, de meu substituto em todas as circunstâncias, no comando do pelotão, e que mantinha a orgânica disciplinar e operacional da pequena unidade militar.

(ii) o outro, o soldado Octávio Barreira, transmontano de gema, homem rude, de uma só palavra, de têmpera sã, de antes quebrar que torcer, mas capaz de morrer para salvar a vida do seu amigo, e a quem eu atribuira as funções, também não protocolares, de meu guarda-costas.

Quem passou pela guerra colonial sabe que a escolha do guarda-costas recaía invariavelmente no soldado em que o alferes depositava maior confiança e amizade.

Aliás, como também é sabido, a designação de guarda-costas não tem a mínima conotação com a ideia que na vida civil se faz de alguém com este titulo ou funções.

O guarda-costas era, acima de tudo, o soldado às ordens, o confidente, o amigo…. E muito menos, ou quase nada, o protector da integridade fisica do alferes, ao contrário do que se possa pensar.

A perda destes treze homens, que recordo com saudade e dor, sempre que a memória da Guiné me vem à lambrança, e que ajudei a formar para a guerra, em Abrantes e Santa Margarida, após oito meses de convivência próxima nas diversas tabancas onde o pelotão esteve destacado, foi um choque tremendo, inolvidável, cuja lembrança ainda hoje me faz arrepiar a alma e assomar as lágrimas.


Sobre o desastre do Corubal

Feito o preâmbulo, entro de imediato no motivo que me levou a servir-me do espaço disponibilizado pelo camarada Luis Graça a quem, sem o conhecer pessoalmente, desde já transmito o meu aplauso pela feliz e dinâmica iniciativa da criação deste blogue.

É que é importante que seja a nossa geração, aquela que interveio, por obrigação ou por convicção ou por ambas as coisas, na guerra da Guiné, que tem que dar testemunho o mais exacto possível daquilo que por lá se passou.

Se assim não fôr, corremos o risco de a história ser deturpada, porque feita com base em documentos ou relatos nem sempre seguros, nem sempre fiéis…

É por isso que, correndo o risco de desencadear alguma polémica, que não pretendo, achei que devia esclarecer alguns pontos do relato feito pelo José Martins a que atrás aludi.

Deduz-se daquele relato, publicado no blogue, que o desastre teria acontecido essencialmente devido a três factores:

(i) Os militares descomprimiram e tentaram encher os cantis com água do rio, o que terá provocado, depreende-se, o desiquilíbrio da estabilidade da jangada;

(ii) Teria sido ouvido um som abafado, semelhante a uma morteirada, que teria provocado agitação entre os militares e, em consequência, desiquilibrado a jangada;

(iii) Que, após o acidente, a água do Rio Corubal terá tomado um tom avermelhado, querendo com isso dizer-se que os crocodilos que habitavam as águas do rio, teriam consumado a morte dos militares que cairam à água.

A versão dos acontecimentos, veiculada pelo José Martins, assenta, como já se disse, em relatos e documentos sobre os factos, dado que este camarada, como ele próprio confirma, não assistiu ao que se passou. Mas, não obstante a presumível credibilidade das fontes a que recorreu, posso garantir que não foi exactamente assim que as coisas se passaram.

E digo isto com a mais profunda convicção e a mais inabalável certeza de alguém que estava na jangada, caiu à água, nadou durante uns cinco minutos e a ela retornou após a mesma se ter de novo equilibrado.

São factos que não se apagarão jamais da minha memória, por mais anos que viva, e apesar de não estar de posse de documentos que os comprovem...


2. O fime da SIC sobre o desasrtre do Rio Corubal

O mais curioso é que no filme, da autoria de José Saraiva, realizado por Manuel Tomás, que foi visto há uns anos atrás, por muitos milhares de portugueses através da sua transmissão pela SIC e pela distribuição de um vídeo feita na mesma altura pelo Diário de Notícias, são apresentadas aquelas mesmas razões como causas imediatas do desastre.

Já nessa altura contestei as conclusões do filme, e fi-lo por escrito e em reunião pessoal com o Director de Informação da SIC, Dr. Alcides Vieira, estando presente o realizador Manuel Tomás, que dirigiu a realização do filme.

Refiro que a carta entregue na SIC foi subscrita não só por mim mas por dezenas de ex-militares da CCAÇ 2405, que, por coincidência nessa mesma altura, no almoço de confraternização anual, a leram e assinaram.

A contestação dos factos descritos no filme foi feita nessa reunião na SIC, com a prévia concordância do Comandante da Operação, Brigadeiro Hélio Felgas, e estando presentes, além de mim próprio, o Capitão Miliciano José Miguel Novais Jerónimo e o Alferes Miliciano Paulo Enes Lage Raposo.

E ela foi por nós solicitada à SIC em virtude do impacto que a exibição do filme teve nos ex-militares que a ele assistiram e que tinham estado presentes na jangada naquele dia do desastre.
Com efeito, no próprio dia da exibição do filme comecei a receber telefonemas de antigos camaradas, um tanto decepcionados e alguns até revoltados, pela inexactidão dos pormenores que ali eram descritos.

Todos nós três, presentes na dita reunião, participámos na operação de evacuação de Madina do Boé, e todos estavamos presentes no local do acidente no Cheche naquele dia 6 de Fevereiro de 1969.

O Capitão Jerónimo, comandante da CCAÇ 2405, e eu próprio, estávamos na jangada no momento do acidente, onde se encontrava também o Alferes Miliciano Jorge Rijo, oficial da CCAÇ 2405, com o seu pelotão.

O Alferes Miliciano Paulo Raposo, também oficial da CCAÇ 2405, já tinha feito a travessia do rio na viagem anterior, e encontrava-se na margem norte do Corubal com o seu pelotão, observando a tragédia.

Na referida reunião da SIC, o realizador Manuel Tomás argumentou que o filme fora realizado com fundamento em entrevistas e em documentos oficiais militares a que tinha tido acesso, pelo que considerava o filme suficientemente documentado.

E disse que esses documentos atestavam as razões acima referidas, isto é, que a jangada se virou porque, no essencial, teria havido disparos de morteiro que, supostamente vindos do IN, teriam criado o pânico nos militares, os quais, ao agitarem-se, teriam provocado o desiquilíbrio da jangada.

Perante a irredutível posição da SIC em manter a versão veiculada pelo filme, nada mais nos restou do que desistirmos do pedido que lhe fizémos para que fosse proporcionado esclarecimento público sobre as conclusões desse filme.

Foi dito, nessa reunião, ao Dr. Alcides Vieira e ao Sr. Manuel Tomás que, por muito credíveis que pudessem parecer os documentos militares em que fundamentaram a versão filmada, nenhum deles jamais desmentiria ou apagaria da minha memória e dos meus camaradas o que realmente se passou.

Mais importante que os documentos preparados no silêncio dos gabinetes militares, sabe-se lá com que inconfessados motivos, era a indesmentível memória daqueles que tinham sido protagonistas e vítimas do desastre.

É com o mesmo espírito de esclarecimento da verdade dos factos que volto hoje ao assunto, desta vez no ambiente mais acolhedor de um blogue criado e gerido por alguém como o Luis Graça que, tendo estado na Guiné, sabe melhor que ninguém que não queremos honrarias, distinções ou protagonismo público.

Queremos tão só que a história seja o mais verdadeira e exacta possivel... Esse é o legado que queremos deixar aos vindouros, para que jamais seja ignorado o sacrificio de uma geração inteira, retirada à sua despreocupada juventude para fazer uma guerra em longínquas terras, em nome dos seus deveres e obrigações para com a sua Pátria.


3. A verdade do que sucedeu

Mas então, o que se passou realmente naquela manhã de 6 de Fevereiro [de 1969]?

A CCAÇ 2405, comandada pelo Cap Mil Inf Novais Jerónimo, integrava a coluna militar que tinha partido na manhã do dia anterior de Madina do Boé, rumo ao Cheche, e tinha como missão escoltar a Companhia de Caçadores [1790] evacuada daquele aquartelamento e que era comandada pelo Cap Inf Aparício (que, após o 25 de Abril, veio a assumir a função de Comandante Geral da PSP de Lisboa).

Ao fim desse dia a coluna chegou às imediações do rio Corubal, junto ao local de cambança para o Cheche. E durante toda a noite a jangada fez contínuas viagens transportando pessoal de apoio e, sobretudo, equipamentos militares e de transporte.

Ao amanhecer, as viagens de transporte entre as duas margens continuaram consecutivamente, até que chegou o momento em que na margem sul do rio Corubal já só restavam quatro grupos de combate, todos eles comandados pelos respectivos alferes, bem como os capitães Aparício e Novais Jerónimo. Além destes, encontrava-se o 2º Comandante da Operação [Mabecos Bravios], um major cujo nome já não recordo.

Segundo a rotina estabelecida e as instruções recebidas pelo responsável pela condução da travessia (Alf Mil Diniz), esperávamos na margem do rio que este responsável mandasse entrar metade do pessoal ainda ali estacionado, ou seja, dois dos quatro pelotões acima referidos.

É que a jangada, segundo bem explicou o alferes Diniz, tinha uma lotação de segurança de um máximo de 60 homens (2 pelotões). E o alferes Diniz assim fez, à semelhança do que tinha já feito dezenas de vezes ao longo da noite, zelando para que a carga da jangada não excedesse os limites de segurança estabelecidos.

Mandou entrar o meu pelotão e o do Alferes Rijo, ficando na margem para a viagem seguinte, os dois pelotões da Companhia do Capitão Aparício. Subitamente porém, assisti a uma conversa entre o 2º Comandante da Operação e o Alferes Diniz, em que este foi intimado pelo referido 2º Comandante a mandar embarcar os dois pelotões restantes, dado que não se podia atrasar mais a operação.

Apesar dos argumentos do Alf Diniz, tentando que em vez dos 4 pelotões embarcassem apenas dois, prevaleceu a autoridade da patente militar mais alta e assim acabaram por embarcar os 4 pelotões, para a derradeira viagem da jangada...

E foi de facto a sua derradeira e trágica viagem... Ainda não estavam percorridos 10 metros e já a jangada submergia e, de seguida, se virava projectando para a água quantos nela seguiam... E não me recordo de ter ouvido qualquer disparo de morteiro, antes do desastre... E não me lembro de ter detectado antes qualquer sinal de pânico entre os soldados... Aliás, a sua experiência operacional no teatro de guerra era já apreciável e não entrariam em pânico por um simples disparo de morteiro que estou seguro que não existiu.

Houve alguns disparos de morteiro, é verdade, mas após o desastre e feitos pelas NT, no intuito de prevenir qualquer aproveitamento do IN que eventualmente estivesse emboscado nas imediações.

Exceptuando os militares que infelizmente pereceram afogados no Corubal, passados poucos minutos, todos restantes retornavam à jangada que, pouco depois, se reequilibrou e retomou a sua viagem para a margem norte do rio. E eu fui um deles... Depois de me ter libertado da espingarda, das cartucheiras, das botas e das granadas, cujo peso me puxava inexoravelmente para o fundo...

Em nenhum momento descortinei qualquer tipo de pânico quando regressei à jangada e, talvez nervosos ainda do desastre, todos sorriamos e aceitávamos o banho forçado como uma dádiva divina depois de vários dias de sede e calor.

Ninguém se apercebeu de nenhum camarada em aflição ou pedindo socorro. Ninguém sequer sonhou que a tragédia tivesse atingido as proporções que tomou. Só na margem norte do rio, quando mandei formar o meu pelotão e o vi reduzido a quase metade é que tive consciência da desgraça que tinha acontecido.

E foi então que, algo descontrolado, me dirigi à margem do rio que engolira os meus soldados na esperança de ainda ver alguém... Mas a tragédia estava consumada de forma silenciosa, definitiva e rápida.

Em resumo e concluindo:

(i) O desastre do Cheche ficou a dever-se, em minha opinião, ao excesso de peso entrado na jangada.

(ii) E ela é corroborada por todos aqueles que, como eu, viajavam na jangada e que em conversas a seguir ao desastre manifestaram a mesma opinião.

(iii) Note-se que a mesma jangada tinha já feito dezenas de travessias sob as ordens directas do Alf Diniz sem nunca se ter detectado qualquer problema.

(iv) Esse problema surgiu de forma trágica na última travessia, ou seja, naquela em que o responsável Alf Diniz não pôde efectivamente proceder segundo o que estava estabelecido, deixando entrar na jangada o dobro da sua capacidade, por ordem do 2º Comandante da Operação a que, pela natureza da hierarquia militar, não poderia opor-se.

(v) Mas fê-lo, e disso dei testemunho no âmbito do inquérito que se seguiu, advertindo previamente o seu superior hierárquico para o facto de estar a infringir as determinações que tinha sobre a forma de fazer a travessia do rio e da lotação definida para a embarcação.

(vi) E estou convencido que a rapidez do desaparecimento das vítimas nas águas calmas, escuras e profundas do Corubal, se ficou a dever ao facto de todos transportarem consigo pesado equipamento de guerra que lhes tolheu os movimentos e os conduziu para o fundo do rio, de forma tão rápida, com a agravante de que a maior parte deles não sabia nadar.

(vii) Finalmente, não posso deixar de fazer referência ao que o José Martins diz ter ouvido de "alguém que esteve no centro do acontecimento" de que as águas tomaram um tom avermelhado.

(viii) Sei da existência de crocodilos naquele troço do rio Corubal.

(ix) Sei que alguns dos corpos de soldados encontrados dias mais tarde, apresentavam sinais de terem sido dilacerados por crocodilos.

(x) Mas sei também que as águas, naquele dia, e após o acidente, apenas apresentavam o tom natural verde escuro de um rio calmo e profundo e tenho dúvidas que os crocodilos tivessem estado presentes naqueles momentos, com o ruído de helicópteros sobrevoando as águas a baixa altitude, na tentativa de encontrar e socorrer algum soldado em dificuldades.

(xi) Não devemos dramatizar mais o que só por si já foi suficientemente dramático (2)...


4. Breves dados sobre a CCAÇ 2405

Composição da CCAÇ 2405

A CCAÇ 2405, à data dos acontecimentos, tinha a sua sede em Galomaro (3).

Comandante: Cap. Mil. José Miguel Novais Jerónimo

1º Grupo de Combate – Alf Mil Jorge Lopes Maia Rijo
2º Grupo de Combate – Alf Mil Vitor Fernando Franco David
3º Grupo de Combate – Alf Mil Rui Manuel da Silva Felício
4º Grupo de Combate – Alf Mil Paulo Enes Lage Raposo

O 2º Grupo de Combate, comandado pelo Alf Mil Vitor David, não integrou a Companhia na operação de evacuação de Madina do Boé, ficando na sede da Companhia em Galomaro, onde porém a acompanhou através dos meios rádio.

As baixas resultantes do desastre do Cheche, foram sofridas pelos 1º e 3º Grupos de Combate, que viajavam na jangada na altura do acidente.

Rui Felício
(Ex-alf mil inf CCAÇ 2405
_________

Notas de L.G.

(1) Vd. post do José Martins > 6 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - D: Madina do Boé, 37 anos depois

(2) Vd os posts anteriores sobre este tópico:

17 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIX: Antologia (7): Os bravos de Madina do Boé (CCAÇ 1790)
"Apresentação do livro de Gustavo Pimenta, sairómeM - Guerra Colonial (Palimage Editores, 1999), no Porto, Cooperativa Árvore, em 10 de Dezembro de 1999. Autor do texto: José Manuel Saraiva, jornalista do Expresso" (...)

2 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXIII: O desastre do Cheche, na retirada de Madina ...

"Este documento, que me chegou às mãos através do Humberto Reis, relata aa dramática operação em que participou a CCAÇ 2405, sedeada em Galomaro, e pertencente ao BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70), operação essa que tinha em vista operação essa que tinha em vista retirar as NT da posição insustentável de Madina do Boé, cercada pelo PAIGC"...

8 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXX: A retirada de Madina do Boé (José Martins)

"O mês de Fevereiro de 1969 tivera inicio há poucos dias quando passou, no aquartelamento de Canjadude, uma coluna cuja missão era retirar a Companhia de Caçadores nº 1790 do seu destacamento de Madina do Boé. Paralelamente a guarnição do posto do Cheche, pertencente à Companhia de Caçadores nº 5, também retiraria e juntar-se-ia à nossa companhia em Canjadude" (...)

8 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXXI: Comentário de Afonso Sousa ao texto sobre a retirada de Madina do Boé

"Emociona este seu testemunho. Eu só faço uma pequena ideia do sofrimento de todos vocês, naquele momento trágico, nas horas e nos dias seguintes - em terras de solidão, em paragens dos confins da Guiné" (...).

(3) Em Fevereiro de 1969, a CCAÇ 2405 era a unidade de quadrícula de Galomaro, pertencendo ao Sector L1, e estando afecta por isso ao comando do BCAÇ 2852, sediado em Bambadinca.

Guiné 63/74 - P508: Tabanca Grande: Paulo Raposo e Rui Felício, dois novos camaradas (CCAÇ 2405, Galomaro, 1968/70)

Recebi notícias de mais dois camaradas da CCAÇ 2405 (Galomaro, 1968/70):

(i) em primeiro lugar, do Paulo Raposo, que nos diz ter sido alferes de infantaria do BCAÇ 2852, CCAÇ 2405 (Guiné Ago 1968 a Maio de 1970). Paulo Laje Raposo, de seu nome completo, acrescenta: "fiz no ano passado os meus primeiros 60 anos. Estivemos em Mansoa em intervenção (fomos ao Morés), Galomaro e Dulombi (fomos evacuar Madina do Boé e percorrer o Fiofioli). Manga de porrada". Não perdeu a sua jovialidade, mandando-nos uma animação com um chimpazé a perguntar: "Corpo di bó?"... Deduzo destas palavras de boas-vindas que o Paulo queira entrar para a nossa tertúlia. Julgo que ele já saiba as regras: duas fotos (uma do tempo da guerra e outra mais actual), acompanhada de uma pequena apresentação ou de um pequena estória da vida militar... Naturalmente que o Paulo é bem vindo!

(ii) Temos depois outra mensagem de outro camarada da CCAÇ 2405, já aqui apresentado anteriormente, o Rui Felício, juntamente com o Victor David. Foi-me enviada ontem à noite:

"Caro Luis Graça,

"Passei o dia de hoje em Coimbra almoçando com o Vitor David a quem me ligam laços profundos de amizade e camaradagem.

"Falámos do blogue cuja utilidade é inquestionável e que tanto mais se valorizará quanto os contributos para o esclarecimento das coisas que se passaram na Guiné se multipliquem.

"Foi um dia agradabilíssimo na companhia, à beira do Mondego, da mulher e da filha do Vitor David, ambas simpatiquíssimas, e do meu próprio filho que me acompanhou de Lisboa até Coimbra onde estuda.

"O Vitor David incentivou-me a enviar-te o texto que escrevi e que lhe dei a ler sobre o desastre do Corubal, pedindo-te que decidas sobre se o mesmo deve ou não ser divulgado no teu blogue.

"Espero vir a conhecer-te pessoalmente em breve... Pelos elogios do Vitor David a teu respeito, fiquei ansioso por esse momento se proporcionar.

"Um abraço

Rui Felício (ex- Alf Mil Inf CCAÇ 2405)

Rui: O teu post merece prioridade elevada. Vou publicá-lo logo a seguir. LG