Texto do João Parreira (ex-Furriel Miliciano) (CART 730 e Comandos, Bissorã e Brá, 1964/66) (1)
Caro Luís Graça & Camaradas:
Estava em Bissorã, nos idos anos de 1965, e naquele dia resolvi pelo cair da tarde ir até à tabanca da Binto Danfa, que era a minha lavadeira...
Já depois de ter feito conversa gira (ai que ricos momentos!) convenci-a a tirar a foto.
Guiné > Região do Oio > Bissorã > CART 730 > 1965 > O Parreira e a Danfa © João Parreira (2006)
Mais tarde chegaram três soldados da minha secção a que se juntaram alguns africanos que posaram para a foto...
E não é que no dia seguinte o Capitão mandou-me chamar e passou-me uma valente piçada por andar à noite nas tabancas na companhia de soldados!!! Fiquei revoltado, mas tive que aguentar e calar.
Guiné > Região do Oio > Bissorã > CART 730 > 1965 > © João Parreira (2006)
Com 2 bajudas e o Furriel Ribeiro (transmissões) e, por trás, o Furriel Amadeu (minas e armadilhas) que mais tarde ficou a tratar da nossa alimentação...
Ao Furriel SAM Nelson que tinha o curso de vagomestre enfiaram-lhe uma G-3 nas mãos e passou a operacional e assim a ter de ir para o mato.
Guiné > Regiãodo Oio > Bissorã > CART 730 > 1965 > © João Parreira (2006)
Nesta altura o Nelson ainda não sabia a sorte que o esperava e eu não cheguei a usar o pilão
Guiné > Regiãodo Oio > Bissorã > 1965 > CART 730 > © João Parreira (2006)
E agora que ando por Bissorã, aqui fica o relato de uma operação naquela zona.
Bissorã > 9 de Janeiro de 1965, Sábado > Operação em Cancongo
Saímos (CART 730) do aquartelamento de Bissorã ao fim da tarde e fomos até ao Olossato, donde partimos às 22H00 para a operação. No caminho para o objectivo avistou-se ao longe uma enorme tabanca pelo que a Companhia, em fila de pirilau, dirigiu-se para ela.
À medida que íamos avançando e dado o silêncio total, pareceu-nos que se encontrava abandonada. Assim era de facto, pelo que os soldados, ou descontrolados ou com ordem
de algum oficial, pois nunca cheguei a averiguar, começaram a revistá-la numa grande
desorganização, com grande alarido e alvoroço, e seguidamente incendiaram-na.
Com os Furriéis Prates (que foi para Brá, para os comandos, mas desistiu), e o Reis (da manutenção-auto), em amena conversa na ponte Bissorã-Barro, tendo como fundo uma manada de vacas.
Guiné > Regiãodo Oio > Bissorã > CART 730 > 1965 > © João Parreira (2006)
Com as labaredas, na escuridão da noite, a avistarem-se a vários quilómetros de distância o Capitão não sei o que é que lhe teria passado pela cabeça, mandou-me chamar a mim e ao Alf Mil Francisco Ferreira que chefiava o meu Pelotão, e disse-nos - acho que como pretexto para não argumentarmos - que, como tinhamos os dois o COE [Curso de Operações Especiais], levássemos os guias e fossemos atacar as casas de mato de Catancó, que ficavam a alguns quilómetros mais à frente. Ele ficaria ali com os restantes Pelotões.
Como o Alf Mil Ferreira nada disse, respondi-lhe que não era prudente pois as chamas denunciavam a nossa presença, e o IN podia estar mais à frente a montar-nos uma emboscada. No entanto ele olhou para o Alf Mil Ferreira depois para mim, e em resposta disse-me para obedecer à ordem que tinha dado.
Como ordens são ordens e não se podem discutir, como nos diziam, e uma vez que fazia parte da 1ª Secção lá fui à frente do Pelotão com os guias.
Estávamos já embrenhados na floresta quando de repente os guias pararam e apontaram na direcção de palhotas que se viam ao longe e onde se podia ouvir,
embora tenuamente, o ruído de vários utensílios que não conseguimos identificar, e notava-se grande agitação, o que não era de estranhar depois do espalhafato e das labaredas que ainda se podiam ver no ar.
Assim a prudência aconselhou-nos a não atacar e montámos de imediato uma emboscada.
Passados cerca de 30 minutos, quando tudo estava calmo e em silêncio total entrámos nelas cautelosamente e iniciámos as buscas de palhota a palhota, mas não encontrámos nenhum material de guerra.
Para não complicar mais a situação e não dar conhecimento ao IN da nossa posição,
decidiu-se que as mesmas não fossem incendiadas e regressámos ao seio da Companhia onde relatámos ao Capitão o que tinha acontecido e ele então deu ordem de regressar a Bissorã.
Nesta altura soube que a revista à tabanca foi infrutífera pois não foi descoberto nenhum material, contudo numa das moranças saíu um africano já velho e porventura mais lento, que foi feito prisioneiro.
Já de regresso, e quase de imediato, eram cerca das 03h00, quando ouvimos barulho que nos pareceu de animais a aproximar-se e, subitamente, apareceu uma manada de vacas que saindo do mato passou perto de nós, e no meio delas escondia-se o IN que,
como é natural, nos atacou.
Com o Furriel enfermeiro Zaupa da Silva junto à tabuleta Olossato-Farim. Distâncias: Olossato: 11 km; Farim: 43 km.
Tenho pena de não me recordar o que continha o cesto que a pequenita tinha à cabeça.
Guiné > Regiãodo Oio > Bissorã > CART 730 > 1965 > © João Parreira (2006)
Como resultado o meu Pelotão que seguia à frente da Companhia sofreu 4 feridos com estilhaços de granadas:
- Alf Mil Francisco Ferreira (Comandante de Pelotão, com gravidade, tendo sido levado para o Hospital;
- Sold José Maria S. Gonçalves (evacuado para o HMP - Hospital Militar Principal);
- Fur Mil Parreira (ferido num braço);
- Sold José Francisco Maçarico Gonçalves (ferido num braço).
O Fur Enfº Zaupa fez-nos de imediato um tratamento sumário.
Guiné > Bissau > Fevereiro de 1965 > O Furriel Miliciano Comando João Parreira, já depois de ter saído da CART 730... "Esta foto foi tirada numa esplanada em frente ao Hotel Portugal, creio que se chamava Café Universal".
© João Parreira (2005)
Naquele momento, e ao ver aqueles camaradas tão ensanguentados, fiquei tão exaltado com o Capitão que, sem medir as consequências, lhe disse frontalmente que a culpa era toda dele e que por isso ia sair da Companhia (2).
Ele ficou a olhar para mim com um ar estupefacto, mas não disse nada. No Olossato, apesar do ferimento não ter sido grave, fui tratado pelo Ten médico que depois me deu uma injecção de Anatoxina, dos Laboratórios Berna.
O certo é que a ferida infectou e teve que ser o Ten médico Jaime Afonso, da CART 730, a curar-me.
Um abraço
João Parreira
____________
(1) Vd post de 3 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74- CCCXXX: Velhos comandos de Brá: Parreira, o últimos dos três mosqueteiros
Segundo o Virgínio Briote, o João Parreira é "uma das lendas vivas dos velhos comandos de Brá. Andou pela Guiné toda, viu camaradas a morrer mesmo ao lado dele, foi evacuado no mesmo heli que transportou para Bissau o corpo do Furriel Morais" (...).
(2) Vd post de 6 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXLI: O 'puto' Parreira, do grupo de comandos Apaches (1965/66)
O Mário Dias e o João Parreira pertenceram ambos ao grupo de comandos Apaches que saiu do 2º curso de comandos realizado na Guiné, em Brá. "Entre nós era conhecido por puto Parreira pela sua aparência um pouco imberbe que, aliás, ainda hoje conserva" (MD).
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
segunda-feira, 20 de março de 2006
Guiné 63/74 - P623: Um domingo no Xitole (David Guimarães)
Texto do David Guimarães:
Luís: Não temos sangue de barata, é verdade, mas temos o gosto delas....
Lá, naquele aquartelamento onde vivi durante muito tempo (Xitole, sede da CART 2716 do BART 2917), a refeição principal era muitas vezes filete de cavala com arroz... À noite, eram cavalas com arroz. Sim, sempre os filetes, especialmente nos períodos de isolamento, em que não havia as colunas de reabastecimento de Bambadinca.
Esses períodos eram no meu tempo um descanso para a CCAÇ 12, especialmente para eles, que não nos vinham visitar ao Xitole. Pois era, quando a estrada se tornava intransitável, determinava-se, mandava-se publicar e pronto: não haveria colunas naquela época para o Xitole e consequentemente para o Saltinho...
Só que os do Saltinho, esses tinham coisas que vinham de Galomaro... E nós, pronto, tínhamos chuva, muita chuva... E, claro, tínhamos os filetes de cavala e ainda por cima os canhões sem recuo. Ai, senhor, que coisa, do outro lado do Corubal... Aproveitando a trovoada - ai, ai, ai! - aí vinha granada de canhão...
Já contei anteriormente, no blogue, os bombardeamentos a que fomos sujeitos, quando se experimentava o morteiro 107 mm. Era o 1º Sargento Calha, o instrutor: ai, até que enfim que me lembrei do nome do homem!... Instrução de manhã e à noite aulas práticas: aí vem o Nino e os seus canhões amestrados...
Porra, que aquilo só ouvido (e vivido) !... Passava a trovoada, acabavam as canhoadas e lá íamos nós: primeiro, uma cerveja para celebrar mais um fim de um aatque ou flagelação; e depois outra, para acalmar, deitar.... Ninguém ainda pensou que todos celebrávamos mais um dia, aquele em que não tinha morrido ninguém, com as granadas a cairem na pista e pronto...
Mesmo aí, depois disso tudo, ainda se ia à tabanca... Tudo bem e pronto, cada um com a sua... Só a guerra explica isto.... E, pronto, vamos à refeição da manhã.... Exactamente, lá andavam as baratas a passear no pão que íamos comer... E como elas fugiam, com um sopro, um beijo no pão e lá ia... Com café e era muito bom !
Eu muito gostava da refeição com baratas e tudo ... Saibam que acabamos todos por ter um pedaço de sangue de barata. Luís, é que elas eram tantas !... E mais: muitos comeram o pão com baratas sem ver. Nada mau, eu vi.... e comi!...
Era domingo, que bom !... No intervalo da chuva, vinha o sol... Não poucas vezes, aí vai o pessoal, uns para as tabancas vizinhas para além de Xitole, era norma, acção psico.... Levava-se um calção de banho ou então nem isso, nu mesmo... Cambessé! E vamos para o banho em Cussilinta, maravilha !...
Outros iam pavonear-se entre as bajudas do Xitole, na zona civil:
- Jamtum ! - A pronúncia era esta, e pronto, maço de cigarros, conversa com pessoal e logo à tarde temos o relato: o Benfica joga contra o Porto... Ena, coisa boa!... Punha-se umas calças de bombazina e, pronto, lá andávamos nós a passear a roupa uns para os outros, afinal... Elegantemente vestidos à moda europeia., aquela que tínhamos deixado cá...
O almoço hoje era galinha, que bom !... Era domingo, está visto, mas que bem mesmo, pão, vinho da Manutenção e o prato.... Cuidado, que o pão já não tinha baratas: elas só vinham de noite, curioso... E agora uma sesta e lá vem o relato, golo deste e golo daquele... E no Porto o Lemos já marcou dois... E depois parece que marcou mais dois!
Uns dias mais felizes, outros mais chateados, mais cerveja e ficava tudo por igual... Desculpem-me os benquistas mas eu fiquei muito contente, o Porto tinha ganho, até eu me senti rei, quando o verdadeiro Rei, de nome, era um camarada que vive por Azeitão, e até é benfiquista...
Bem, depois íamos recrear o futebol, fazer uma jogatana bem ao lado da pista... Que maravilha, ganhavam uns e perdiam os outros... Prenda ? Vamos lá todos beber depois do banho... E o domingo terminava assim, merda....
Olhávamos para o cifra - desculpem os de transmissões, os atiradores lá chamávamos isto mesmo ao cabo cripto que levava ao fim do dia um papel para o comandante de companhia:
- Não é que o gajo se deslocou pelas nove até ao Capitão ?! - Pensávamos nós - Mas se coluna não é, foda-se, que raio vai ele fazer com aquele papel na mão ?... Será que... já, com esta chuva ainda... !?
Por isso, os nativos já tinham colocado tantos sacos de coconote na entrada do aquartelamento... - Meus senhores - dizia o Capitão Espinha de Almeida -, amanhã há coluna - Não se contava mas parece que a estrada já está transitável e pronto. Estávamos no fim da época das chuvas, os grandes intervalos fizeram com que a estrada secasse o suficiente.
- Antes isso que uma operação, afinal, poça!, como passaríamos a bolanha???
Um abraço
David Guimarães
PS - E o pão até sabia mesmo a barata... E a coluna não foi ao Saltinho, deixou tudo no Xitole. Os do Saltinho é que fizeram depois uma coluna para virem buscar os géneros....
domingo, 19 de março de 2006
Guiné 63/74 - P622: Ponta do Inglês, Janeiro de 1970 (CCAÇ 12 e CART 2520): capturados 15 elementos da população e um guerrilheiro armado (Luís Graça)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > CCAÇ 12 > Sinchã Mamajai > Janeiro de 1970 > A secção do Humberto Reis (2º Gr Comb) na tabanca em autodefesa da Sinchã Mamajai. Em primeiro plano, o 1º cabo Alves (mais conhecido pela sua alcunha, Alfredo).
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > CCAÇ 12 > Janeiro de 1970 > Mais uma coluna logística ao Xitole. Estava-se no tempo seco...
Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
© Humberto Reis (2006).
Extractos de:
História da CCAÇ. 12: Guiné 1969/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores 12. 1971. Capítulo II. 24-26.
(7.3) Op Safira Única: recuperados 15 elementos da população sob controlo IN e capturado um guerrilheiro armado na Ponta do Inglês
Na última operação (1), o IN mostrara-se particularmente agressivo, reagindo a acção das NT durante mais de meia-hora. E o prisioneiro [Jomel Nanquitande] tentara despistá-las com manobras de diversão. A frustração era profunda, sobretudo entre os [soldados] africanos [da CCAÇ 12]. Mas foi imediatamente compensada pelo êxito espectacular da operação seguinte.
Sabia-se que na Ponta do Inglês o IN controlava um aglomerado [populacional]. Segundo as informaçõees do prisioneiro Jomel Nanquitande, a população não estava armada, sendo a segurança aos trabalhos agrícolas feita por um grupo que todos os dias se deslocava do Baio (onde há um acampamento com 50 homens armados), fazendo a cambança do Rio Buruntoni em canoa.
Em face destes elementos, foi decidido fazer uma batida cuidadosa à área da Ponta do Inglês, a fim de aniquilar os grupos IN eventualmente detectados, aprisionar a população que nela vivesse e destruir todos os meios de vida existentes.
0 conceito da operação era executar a progressão e batida com o Dest A (CCAÇ 12, a 3 Gr Comb) e o Dest B (forças da CART 2520) apoiando-se mutuamente, sobretudo a partir de Gundagué Beafada.
Desenrolar da acção:
Em 20 de Janeiro de 1970, pelas 23.30h, a Artilharia do Xime executa uma concentração de 4 tiros sobre a Ponta do Inglês [na margen direita do Rio Corubal, vd. mapa de Fulacunda].
Em 21, ao amanhecer, saem os 2 Destacamentos do Xime, apoiando-se mutuamente e progredindo com o auxílio de bússola através dum itinerário previamente estudado, de maneira a evitar os trilhos que o IN utiliza.
Por volta das 15. 30h, já nas proximidades do objectivo, foram notados indícios de presença humana: trilhos batidos, moringas nas palmeiras para recolha de vinho e um cesto de arroz.
Seguindo um dos trilhos, avistou-se um homem desarmado que seguia em direcção contrárias às NT. Capturado, informou que ia recolher vinho de palma, que a tabanca ficava próxima, que não havia elementos armados e que a maior parte da população estava àquela hora a trabalhar na bolanha.
Feita a aproximação com envolvimento, capturaram-se mais 2 homens, 5 mulheres e 6 crianças. Um dos homens capturados disse chamar-se Festa Na Lona, de etnia Balanta, estar alí a passar férias e pertencer a uma unidade combatente do Gabu. Foi-lhe apreendido uma pistola Tokarev (7,62, m/ 1933) e vários documentos.
Uma pistola de origem soviética, Tokarev, de 7,62, igual ou parecida à que que foi apreendida ao guerrilheiro Festa Na Lona, na Ponta do Inglês, no decurso da Op Safira Única ... Pelo que me recordo, esta pistola ficou à guarda do Alf Mil Abel Maria Rodrigues, comandante do 3º Grupo de Combate, que a tomou como ronco... Não sei se a conseguiu trazer para o Continente e legalizá-la... Ao que parece, esta arma teve a sua estreia na Guerra Civil de Espanha, em 1936, nas fileiras do exército republicano, estando distribuída a pilotos e tripulações de tanques, entre outros... (LG). Fonte: Kentaur, República Checa (2006)
Havia 2 tabancas, cada uma com 4-5 casas, afastadas umas das outras cerca de 200 metros. Cada casa era revestida de chapa de bidon e coberta de capim. Para o efeito foram aproveitados os bidons existentes no antigo aquartelamento da Ponta do Inglês que as NT retiraram em Novembro de 1968.
Foram destruídos todos os meios de vida encontrados e incendiadas casas, a excepção das que ficaram armadilhadas.
Os 2 Dest executaram toda a acção sem disparar um único tiro.
A retirada fez-se igualmente a corta-mato em direcção de Gundagué Beafada, tendo-se chegado ao Xime pelas 18.30h.
Durante a noite, a Artilharia fez fogo de concentração sobre os acampamentos IN do Baio/Buruntoni e Ponta Varela/Poindon.
Guiné > Zona Leste > Contuboel > Julho de 1969 > CCAÇ 2590/CCAÇ 12 > O alferes miliciano de operações especiais Moreira, no meio do Humberto Reis (à sua direita) e do Tony Levezinho (à sua esquerda). O nosso Moreira era o homem de confiança do comandante da companhia, o Cap Brito.
Guiné > Zona Leste > Contuboel > 15 de Julho de 1969 > CCAÇ 2590/CCAÇ 12 > O alferes miliciano Moreira, à esquerda, acompanhado pelo Tony Levezinho (furriel), o Humberto Reis (furriel), o Rodrigues (alferes, já falecido) e o Fernandes (furriel), preparando-se para sair até Sonaco (a nordeste de Contuboel).
Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
© Humberto Reis (2006).
A 27 do mesmo mês, um grupo IN não estimado flagelaria durante 2 horas o destacamento de Taibatá utilizando 2 canhões s/r, mort 60 e lança-rockets.
E ainda de destacar durante o mês a Op Rubi Tosco que foi o primeiro patrulhamento ofensivo que a CCAÇ 12 efectuou na área do Enxalé, depois desta ter passado a pertencer ao Sector L1, a partir de Outubro último, sendo até então da responsabilidade de Mansoa.
A 27, a CCAÇ 12, a 3 Grupos de Combate, saiu de Bambadinca pelas 7. 30h e cambou o Rio Geba em Samba Silate. Seguiu depois de S. Belchior para o aquartelamento do Enxalé onde foi reforçada com 1 seção de um pelotão da CART 2520.
Dirigindo-se na direcção NW as NT atravessaram a ponte do Rio Malafo e descerram até ao ponto de confluência com o Rio Geba. A foz do Rio Malafo está referenciada como um local de cambança das canoas IN que vêm das regiões de Xime e Quínara com reabastecimentos. Foram detectados, de resto, muitos vestígios do IN.
Após o reconhecimento da zona, os Gr Comb ficaram ali emboscados até de manhã mas sem resultados. Depois do Oficial de Operações Especiais da CCAÇ 12 [Alferes Miliciano Moreira] ter armadilhado o local, regressou-se ao Enxalé, seguindo-se ao longo da margem direita do Rio Geba.
Durante o mês a CCAÇ 12 realizaria quatro acções, tendo nomeadamente montado linhas descontínuas de emboscadas entre Bambadinca e Nhabijões, e uma coluna de reabastecimento para o Xitole.
Entretanto a secção [da CCAÇ 12] destacada em Sinchã Mamadjai foi transferida (em 24) para Sansancuta a fim de controlar os trabalhos de auto-defesa da tabanca, regressando definitivamente a Bambadinca a 12 do mês seguinte (1).
__________
Notas de L.G.:
(1) Vd posts anteriores, relativos à actividade operacional da CAÇ 12 durante o mês de Janeiro de 1970:
7 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXII: Assalto ao destacamento IN de Seco Braima, na margem direita do Rio Corubal (Janeiro de 1970, CCAÇ 12, CAÇ 2404, CART 2413)
13 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXIII: Op Borboleta Destemida: uma emboscada de meia-hora (Poindon/Ponta Varela, CCAÇ 12, Janeiro de 1970)
(2) Sinchã Mamajã (e não Mamadjai, segundo a carta de Bambadinca) e Sansancuta ficavam a leste da estrada Bambadinca-Mansambo, na parte norte do Regulado do Corubal.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > CCAÇ 12 > Janeiro de 1970 > Mais uma coluna logística ao Xitole. Estava-se no tempo seco...
Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
© Humberto Reis (2006).
Extractos de:
História da CCAÇ. 12: Guiné 1969/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores 12. 1971. Capítulo II. 24-26.
(7.3) Op Safira Única: recuperados 15 elementos da população sob controlo IN e capturado um guerrilheiro armado na Ponta do Inglês
Na última operação (1), o IN mostrara-se particularmente agressivo, reagindo a acção das NT durante mais de meia-hora. E o prisioneiro [Jomel Nanquitande] tentara despistá-las com manobras de diversão. A frustração era profunda, sobretudo entre os [soldados] africanos [da CCAÇ 12]. Mas foi imediatamente compensada pelo êxito espectacular da operação seguinte.
Sabia-se que na Ponta do Inglês o IN controlava um aglomerado [populacional]. Segundo as informaçõees do prisioneiro Jomel Nanquitande, a população não estava armada, sendo a segurança aos trabalhos agrícolas feita por um grupo que todos os dias se deslocava do Baio (onde há um acampamento com 50 homens armados), fazendo a cambança do Rio Buruntoni em canoa.
Em face destes elementos, foi decidido fazer uma batida cuidadosa à área da Ponta do Inglês, a fim de aniquilar os grupos IN eventualmente detectados, aprisionar a população que nela vivesse e destruir todos os meios de vida existentes.
0 conceito da operação era executar a progressão e batida com o Dest A (CCAÇ 12, a 3 Gr Comb) e o Dest B (forças da CART 2520) apoiando-se mutuamente, sobretudo a partir de Gundagué Beafada.
Desenrolar da acção:
Em 20 de Janeiro de 1970, pelas 23.30h, a Artilharia do Xime executa uma concentração de 4 tiros sobre a Ponta do Inglês [na margen direita do Rio Corubal, vd. mapa de Fulacunda].
Em 21, ao amanhecer, saem os 2 Destacamentos do Xime, apoiando-se mutuamente e progredindo com o auxílio de bússola através dum itinerário previamente estudado, de maneira a evitar os trilhos que o IN utiliza.
Por volta das 15. 30h, já nas proximidades do objectivo, foram notados indícios de presença humana: trilhos batidos, moringas nas palmeiras para recolha de vinho e um cesto de arroz.
Seguindo um dos trilhos, avistou-se um homem desarmado que seguia em direcção contrárias às NT. Capturado, informou que ia recolher vinho de palma, que a tabanca ficava próxima, que não havia elementos armados e que a maior parte da população estava àquela hora a trabalhar na bolanha.
Feita a aproximação com envolvimento, capturaram-se mais 2 homens, 5 mulheres e 6 crianças. Um dos homens capturados disse chamar-se Festa Na Lona, de etnia Balanta, estar alí a passar férias e pertencer a uma unidade combatente do Gabu. Foi-lhe apreendido uma pistola Tokarev (7,62, m/ 1933) e vários documentos.
Uma pistola de origem soviética, Tokarev, de 7,62, igual ou parecida à que que foi apreendida ao guerrilheiro Festa Na Lona, na Ponta do Inglês, no decurso da Op Safira Única ... Pelo que me recordo, esta pistola ficou à guarda do Alf Mil Abel Maria Rodrigues, comandante do 3º Grupo de Combate, que a tomou como ronco... Não sei se a conseguiu trazer para o Continente e legalizá-la... Ao que parece, esta arma teve a sua estreia na Guerra Civil de Espanha, em 1936, nas fileiras do exército republicano, estando distribuída a pilotos e tripulações de tanques, entre outros... (LG). Fonte: Kentaur, República Checa (2006)
Havia 2 tabancas, cada uma com 4-5 casas, afastadas umas das outras cerca de 200 metros. Cada casa era revestida de chapa de bidon e coberta de capim. Para o efeito foram aproveitados os bidons existentes no antigo aquartelamento da Ponta do Inglês que as NT retiraram em Novembro de 1968.
Foram destruídos todos os meios de vida encontrados e incendiadas casas, a excepção das que ficaram armadilhadas.
Os 2 Dest executaram toda a acção sem disparar um único tiro.
A retirada fez-se igualmente a corta-mato em direcção de Gundagué Beafada, tendo-se chegado ao Xime pelas 18.30h.
Durante a noite, a Artilharia fez fogo de concentração sobre os acampamentos IN do Baio/Buruntoni e Ponta Varela/Poindon.
Guiné > Zona Leste > Contuboel > Julho de 1969 > CCAÇ 2590/CCAÇ 12 > O alferes miliciano de operações especiais Moreira, no meio do Humberto Reis (à sua direita) e do Tony Levezinho (à sua esquerda). O nosso Moreira era o homem de confiança do comandante da companhia, o Cap Brito.
Guiné > Zona Leste > Contuboel > 15 de Julho de 1969 > CCAÇ 2590/CCAÇ 12 > O alferes miliciano Moreira, à esquerda, acompanhado pelo Tony Levezinho (furriel), o Humberto Reis (furriel), o Rodrigues (alferes, já falecido) e o Fernandes (furriel), preparando-se para sair até Sonaco (a nordeste de Contuboel).
Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
© Humberto Reis (2006).
A 27 do mesmo mês, um grupo IN não estimado flagelaria durante 2 horas o destacamento de Taibatá utilizando 2 canhões s/r, mort 60 e lança-rockets.
E ainda de destacar durante o mês a Op Rubi Tosco que foi o primeiro patrulhamento ofensivo que a CCAÇ 12 efectuou na área do Enxalé, depois desta ter passado a pertencer ao Sector L1, a partir de Outubro último, sendo até então da responsabilidade de Mansoa.
A 27, a CCAÇ 12, a 3 Grupos de Combate, saiu de Bambadinca pelas 7. 30h e cambou o Rio Geba em Samba Silate. Seguiu depois de S. Belchior para o aquartelamento do Enxalé onde foi reforçada com 1 seção de um pelotão da CART 2520.
Dirigindo-se na direcção NW as NT atravessaram a ponte do Rio Malafo e descerram até ao ponto de confluência com o Rio Geba. A foz do Rio Malafo está referenciada como um local de cambança das canoas IN que vêm das regiões de Xime e Quínara com reabastecimentos. Foram detectados, de resto, muitos vestígios do IN.
Após o reconhecimento da zona, os Gr Comb ficaram ali emboscados até de manhã mas sem resultados. Depois do Oficial de Operações Especiais da CCAÇ 12 [Alferes Miliciano Moreira] ter armadilhado o local, regressou-se ao Enxalé, seguindo-se ao longo da margem direita do Rio Geba.
Durante o mês a CCAÇ 12 realizaria quatro acções, tendo nomeadamente montado linhas descontínuas de emboscadas entre Bambadinca e Nhabijões, e uma coluna de reabastecimento para o Xitole.
Entretanto a secção [da CCAÇ 12] destacada em Sinchã Mamadjai foi transferida (em 24) para Sansancuta a fim de controlar os trabalhos de auto-defesa da tabanca, regressando definitivamente a Bambadinca a 12 do mês seguinte (1).
__________
Notas de L.G.:
(1) Vd posts anteriores, relativos à actividade operacional da CAÇ 12 durante o mês de Janeiro de 1970:
7 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXII: Assalto ao destacamento IN de Seco Braima, na margem direita do Rio Corubal (Janeiro de 1970, CCAÇ 12, CAÇ 2404, CART 2413)
13 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXIII: Op Borboleta Destemida: uma emboscada de meia-hora (Poindon/Ponta Varela, CCAÇ 12, Janeiro de 1970)
(2) Sinchã Mamajã (e não Mamadjai, segundo a carta de Bambadinca) e Sansancuta ficavam a leste da estrada Bambadinca-Mansambo, na parte norte do Regulado do Corubal.
Guiné 63/74 - P621: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (3): O dia em que o homem foi à lua
Jantar a bordo do Uíge, a caminho da Guiné > Finais de Julho/princípios de Agosto de 1968 > Os quatros alferes milicianos da CCAÇ 2405: David e Raposo, do lado esquerdo; Felício e Rijo, do lado direito. © Paulo Raposo (1997) (O meu testemunho e visão da guerra de África, de que iremos publicar em breve uma série de excertos)
Lisboa > Março de 2006 > A lua, o satélite do nosso planeta, vista do Lumiar, ainda de madrugada... © Luís Graça (2006)
Texto de Rui Felício
Guiné > Zona Leste > Subsector de Galomaro >Samba Cumbera> Destacamento > 3º Grupo de Combate da CCAÇ 2405
20 de Julho de 1969
Era domingo… Durante todo o dia a rádio ia noticiando a chegada do homem à Lua… A célebre frase do astronauta afirmando que o passo que acabara de dar em solo lunar era um passo de gigante para a humanidade, era escutada repetidamente nos pequenos transistores que nos mantinham ligados ao mundo (1).
Claro que não havia televisão na Guiné e, mesmo que houvesse, jamais seria vista em Samba Cumbera (2), pequena tabanca onde a luz nos era fornecida através de garrafas de cerveja cheias de petróleo, nas quais se embebiam torcidas de desperdício que, depois de acesas, nos enchiam os pulmões de fuligem e fumo.
Mas nos confins da mata, longe de toda a civilização, a importante notícia precisava de ser partilhada e divulgada... Os soldados se encarregariam de o fazer à sua maneira, junto das bajudas.
Por mim, preferia meditar sobre o assunto, silenciosamente... Afinal os nossos avós jamais imaginariam que alguma vez o homem pudesse chegar à Lua, apesar de Júlio Verne, o visionário do século anterior, já o ter previsto…
E, longe das mais modernas evoluções da ciência e da tecnologia, os naturais da Guiné que nasciam e morriam na sua aldeia da selva sem nunca sairem do pequeno perímetro onde viviam, muito menos sonhariam com essa utópica possibilidade de o homem chegar à Lua.
Como muitas vezes fazia, depois de jantar, sentei-me numa cadeira de fula, onde descansava semi deitado, olhando o céu, nessa noite muito limpo e estrelado…
Bem alto, a luz branca da lua, em quarto crescente, derramava-se pela orla da floresta e pelos cones de capim dos telhados das tabancas, desenhando sombras fantasmagóricas pelo terreno limpo do centro da aldeia.
E mantive-me assim deitado, o olhar fixo na lua, tentando prescrutar o mais pequeno sinal da presença do homem que eu sabia estar ali vagueando, em qualquer lugar do Mar das Tempestades…
Não sei quanto tempo assim me mantive, absorto, atento e quieto… Despertei e voltei à realidade com a voz do meu simpático amigo Samba, Chefe da Tabanca de Samba Cumbera, que me perguntava se podia sentar-se a meu lado, para o qual arrastara uma cadeira semelhante à minha…
Era um homem de grande cultura árabe, que conhecia muito da história do islamismo, que sabia com um estranho rigor a exacta direcção de Meca, que lia e escrevia árabe, que conhecia em pormenor toda a história dos Fulas e da razão de ser da sua permanência na terra da Guiné… Para onde, dizia, foram empurrados em sucessivas lutas tribais com os seus rivais Mandingas…
As nossas conversas eram normalmente muito agradáveis e, posso dizer, sempre aprendi mais com ele do que ele comigo…
Temos a tendência e o preconceito de avaliar os outros, pelos nossos parâmetros e pela nossa cultura, catalogando-os de bárbaros e analfabetos só porque não têm o conhecimento e a instrução, medidos pelos nossos padrões.
Aprendi que no meio daquela gente, existiam homens com conhecimento mais vasto e aprofundado que muitos dos nossos soldados… O Samba era um deles…
Perguntou-me porque estava tão pensativo e quieto… Respondi-lhe que aquela noite era muito especial para o mundo, porque estava se passando algo que nunca antes tinha acontecido…
Franziu o rosto, comentando que, pelo meu ar, não devia ser coisa boa… Sorri, dizendo-lhe que era exactamente o contrário…
E, embora sabendo de antemão a resposta, perguntei-lhe apenas como forma de iniciar a revelação do que estava acontecendo:
- Sabes que neste preciso momento um homem como nós caminha na lua que está ali em cima diante dos nossos olhos?
A reacção foi inesperada e contrária a tudo o que eu teria imaginado:
- Alfero! Não é um homem como nós, não! É o profeta Maomé que, juntamente com Alá dali nos vigia a todos, para nos proteger, nos ensinar o caminho justo e para nos castigar quando dele nos desviamos…
E prosseguiu:
- Como é possivel que homem grande e instruido como o Alfero, só hoje soubesse isso? Não entendo mesmo!...
Pensei durante uns segundos se devia argumentar, puxar dos meus galões de homem civilizado, e demonstrar-lhe a minha superioridade, provando-lhe que não era nada daquilo que ele dizia. Desisti de o fazer…
Afinal, ambos nos estávamos alimentando de sonhos… e, cada um à sua maneira, sentiamo-nos felizes pela beleza insubstituível de um luar africano em noite calma e limpída…
Independentemente de quem lá estava caminhando naquele momento…
P.S. - Passados dias, com a chegada de um jornal de Lisboa, mostrei-lhe as fotografias do astronauta pisando a Lua. E, então expliquei-lhe o que realmente se tinha passado naquela noite… Pelo seu ar meio trocista, ainda hoje não sei se o convenci…
Mas como ele também não me convenceu que por lá andavam Alá e o Maomé, ficamos quites, cada um na sua... em paz!
Rui Felício
Ex-Alf Mil Inf.
3º Grupo de Combate
CCAÇ 2405 (Dulombi, 1968/70)
_____________
Notas de L.G.
(1) O astronauta Neil Armstrong foi o primeiro homem a pisar a Lua... Ficou célebre a sua frase: "Este é um pequeno passo para o homem, mas um grande salto para a humanidade". Os outros dois tripulantes da nave Apolo 11 eram Edwin Aldrin e Michael Collins.
(2) Samba Cumbera (vd. mapa de Duas Fontes): fica entre Moricanhe (mapa do Xime) e Galomaro, a nordeste de Candamã...
sexta-feira, 17 de março de 2006
Guiné 63/74 - P620: Estórias cabralianas (7): Alfero poi catota noba
© José Teixeira (2006)
Simplesmente genial: este camarada, se não existisse, tinha que ser inventado, para compôr ou completar o nosso ramalhete, a nossa caserna, a nossa tertúlia, o grupo (cada vez maior e cada vez mais fantástico) dos amigos e camaradas da Guiné que se reune, virtualmente, todos os dias, sob o espírito, aberto, sadio, maroto, provocador, lúcido, irreverente, desconcertante, descomplexado ... deste Blogue-fora-nada...
Este homem é o Cabral, o Jorge, o nosso Jorge Cabral, ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, que esteve destacado, há muitas luas, nos idos tempos de 1969/71, em Fá Mandinga e depois em Missirá... Na Província portuguesíssima da Guiné, longe do Vietname... Hoje, República da Guiné-Bissau, país independente, de língua oficial portuguesa...
Dele já aqui eu disse (e penso que é o maior elogio que posso fazer dele, na qualidade de seu velho amigo e de fã das suas estórias), que, para além de oficial miliciano, era homem grande, pai, patrão, chefe de tabanca, conselheiro, amigo do PAIGC, poeta, antropólogo, feiticeiro, cherno, mauro, médico, sexólogo, advogado e não sei que mais, um verdadeiro Lawrence da Guiné, que os pares de Bambadinca chegaram a recear (uns, os amigos) ou a desejar (outros, os seus inimigos) a sua total cafrealização... Inimigos é uma força de expressão: em boa verdade, nunca lhe conheci nenhum...
O Jorge mandou-me outra (a sétima) das suas estórias malandras (sic) com o recado (expresso) de "animar as hostes". Ficamos a conhecer outro dos seus múltiplos (e insuspeitados) talentos: desta vez, consertador de catotas... Obrigado, Jorge!
Cabral, Salvador das Bajudas Desfloradas
Finda a comissão, calculem (!), fui louvado. O Despacho do Exmo. Comandante do CAOP 2 referia, entre outros elogios, a minha “habilidade para lidar com a tropa africana e populações”, a qual me havia “granjeado grande prestígio”.
Esquecido, porém, foi o essencial – evitei a dezenas de Bajudas o repúdio matrimonial e a consequente devolução do preço. Essa tão meritória actividade, sim, teria merecido, não um simples louvor, mas uma medalha…
Entre Fulas, Mandingas e Beafadas, as mulheres eram compradas, alcançando-se verbas elevadas. Cheguei a arbitrar casamentos, cujo dote atingiu os trinta contos! Claro que era exigida a virgindade, que às vezes havia desaparecido… Era então que o Alfero odjo grosso era procurado para remediar o que parecia irremediável.
Quanto ao teste pré-matrimonial, a cargo das mulheres grandes, que utilizavam um ovo(!), a questão resolvia-se, com alguns pesos.
O mais difícil era a prova do sangue no lençol, que devia ser exibido no dia seguinte à cerimónia.
Equacionado o problema, adoptei uma solução que sabia já ter sido usada entre outras gentes com sucesso. Comprei em Bafatá pequenas esponjas, as quais embebidas em sangue de galinha, e metidas no local apropriado deram um resultadão.
Não houve mais Bajuda que não casasse em total e absoluta virgindade e confesso que me dava um certo gozo assistir às manifestações de júbilo dos viris maridos, no dia seguinte aos casamentos, no meio da algazarra da Tabanca.
Espalhada a minha fama, acorreram noivas de todo o lado. Ponderei mesmo montar um gabinete especializado, tendo chegado a escrever um folheto publicitário a informar que Alfero poi catota noba, dam trezbintim.
© Jorge Cabral (2006)
Guiné 63/74 - P619: O espírito de união dos operacionais: uma coluna de socorro à malta da CCAÇ 12 (Luís Graça)
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Antiga Estrada Xime - Bambadinca > 1997 > A antiga Ponte do Rio Undunduma, vista da nova estrada Xime-Bambadinca.
© Humberto Reis (2005) (com a colaboração do Braima Samá, professor de Bambadinca)
Pergunta o João Tunes:
"E nunca vos aconteceu darem convosco, perante os sinais longínquos de um ataque a um aquartelamento próximo mas de outra companhia e outro batalhão, a encolherem os ombros e a dizerem "a malta de X... está a enfardar" (...metendo para dentro a frase-chave calada: "foda-se, antes eles que nós!")?
Comentário de L.G.:
Pois é, João, quantas vezes, à noite em Bambadinca, fumando um cigarro, descontraídos, ou de copo de uísque na mão, nas traseiras do aquartelamento sobranceiro à bolanha, não assistimos ao fogo de artifício, ao longe, tentando advinhar quem eram os desgraçados que estavam a levar porrada, o tipo de granadas que explodiam, os quilómetros que distavam do nosso relativo conforto!... Sem nada fazer ou poder fazer, é certo... Nessas noites tínhamos pelo menos a certeza de poder dormir numa cama com lençóis lavados, na nossa cama... Era dia (ou noite) de folgar as costas, de poupar o coirão...
Mas também é verdade que eramos capazes de pegar na trouxa e zarpar, em socorro de camaradas em perigo, mesmo à noite. Podíamnos contar alguns episódios: lembro-me, por exemplo, de um coluna de socorro a Nhabijões, justamente quando eu lá estava destacado e houve uma alerta de turra na tabanca! (reordenada)... Aqui vai um outro episódio, contado pelo Humberto Reis:
" [Foto da] Antiga Ponte do Rio Undunduma, captada da ponte nova, na estrada que liga Bambadinca ao Xime. Neste destacamento estava permanente um Grupo de Combate da CCAÇ 12, que vivia em buracos como as toupeiras (rodava todas as semanas). Ou melhor dizendo: eram três apartamentos subterrâneos tipo T Zero...
"Com este destacamento passou-se um episódio que diz bem do carácter que presidia à união de todos os operacionais (operacionais eram aqueles que iam para o mato e as sentiam assobiar e não os que viviam no bem bom, dentro dos arames farpados, e que nunca sentiram o medo de levar um tiro).
"Um domingo à noite estávamos a jantar na messe [, em Bambadinca], nesse dia calhou-me estar dentro do arame, e de repente começámos a ouvir rebentamentos para os lados da ponte. Pensámos que era o destacamento que estava a embrulhar e automaticamente nos levantámos (eu e mais alguns até estávamos vestidos à civil), fomos a correr aos respectivos quartos buscar as armas e quando chegámos à parada já lá estavam alguns Unimog com os respectivos condutores à espera (ninguém lhes tinha dito nada mas a ideia foi a mesma - é a malta da ponte a embrulhar, temos de os ir socorrer).
"Até um dos morteiros 81 levámos e aí vai o Fur Mil Lopes, do Pelotão de Morteiros com uma esquadra - o Lopes, natural de Angola (tão bem organizada que era a nossa administração militar, que o colocaram na Guiné!).
"Felizmente, quando chegámos à ponte, verificámos que não era aí, mas sim dois Km mais à frente, na tabanca de Amedalai, pelo que seguimos até lá. [Amedalai ficava a caminho do Xime, antes da temível Ponta Coli]...
"Escusado será dizer que quando o IN notou que chegaram reforços desarmou a tenda, fez a mala e foi-se embora"...
Guiné 63/74 - P618: Mais fotos de Canjadude (CCAÇ 5, 1973/74) (João Carvalho)
1. Mais fotos de Canjadude, do tempo em que os Gatos Pretos da CCAÇ 5 por lá se acolheram (1973/74). Arquivo pessoal do João Carvalho, ex-furriel miliciano enfermeiro. Legendas do fotógrafo. (Comentários off-record de L.G.) (1)
Guiné > Zona Leste > Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (1973/74) > A psico na tabanca. Em pé está o fulano que eu conheço desde o meu primeiro dia de vida. [E no meio, uma bajuda fula, linda de morrer, talvez ligeiramente estrábica... Sob o olhar vigilante da mãe, e rodeado dos irmãos mais pequenos... Repare-se como os tugas , passada a priimeira surpresa da exposição ao nu étnico, se apoderaram rapidamente do termo psico e deram-lhe uma outra conotação... mais épica, mais erótica, mais camoniana... Outra legenda possível: Canjadude, Ilha dos Amores, Lusíadas, Canto IX]
© João Carvalho (2006).
Guiné > Zona Leste > Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (1973/74) > O artista junto a um morteiro. [Morteiro 81 mm: uma arma poderosa, eficaz, mortífera, quando bem manejada, e apontada para as linhas inimigas...] © João Carvalho (2006).
Guiné > Zona Leste > Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (1973/74) > Escola da tabanca de Canjadude em que o Salazar dava aulas, vendo-se ao fundo a saída para Madina do Boé [ Recorde-se aqui a trágica história do professor Salazar Saliú Queta que terá sido executado (barbaramente) pelos homens do PAIGC a seguir à saída das NT, segundo fontes apuradas pelo João Martins...](1). © João Carvalho (2006).
Guiné > Zona Leste > Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (1973/74)> Ainda a escola, vendo-se junto um abrigo para a população da tabanca [As populações nas tabancas em autodefesa ou vivendo em povoações importantes, com destacamentos ou aquartelamentos das NT, pagaram uma pesada factura... Mesmo assim, não tão grande quanto a das populações sob controlo do PAIGC, bombardeadas pela Força Aérea, fustigadas pelos obuzes das nossas unidades de quadrícula, obrigadas a fugir sob a ameaça das nossas G-3... ] © João Carvalho (2006).
Guiné > Zona Leste > Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (1973/74) > Aeroporto de Canjadude durante a noite. Fotografia tirada de uma das tais grandes rochas (grandes para a Guiné), ou seja, de uma das rochas em que estava colocado um posto de sentinela. Consegue-se ver ainda o heliporto, que não sei se já existia quando o José Martins passou por estas bandas [Aeroporto, é favor: chamemos-lhe antes uma pista para pequenas aeronaves, como a Dornier-27, que nos trazia o correio e alguns víveres frescos... Falo pelo que conhecia de Bambadinca, por exemplo]. © João Carvalho (2006).
Guiné > Zona Leste > Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (1973/74)> Um dos postos de sentinela, á esquerda, e ao fundo os insólitos blocos de pedra de Canjadude... Bajudas transportam bidões que foram oferecidos à população, antes da entrega do aquartelamento ao PAIGC (Setembro de 1974). © João Carvalho (2006) [ A imagem original que estava demasiado azulada, foi editada e retocada pelo Albano Costa, o nosso artista-fotógrafo de Guifões, Matosinhos ].
Guiné > Zona Leste > Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (1973/74) > À direita as chapas de zinco que protegiam o tecto do abrigo do paiol. Mais à esquerda, protegida pelos bidões, a messe. A casa grande era a secretaria [ Canjadude não fugia à regra: adaptou-se aos condicionalismos da guerra... dispensando os bons ofícios dos engenheiros militares de Bissau... A malta virou arquitecto, engenheiro, trolha, marceneiro... O desenrascanço, à boa maneira dos tugas... É preciso fazer um paiol ? Pois, que se faça já aqui, a menos de 100 metros da messe... Admiro-me que não tenha havido, na Guiné - pelo menos, ao que se saiba - grandes acidentes resultantes da explosão de paióis... Em 1973 os foguetões de 122 mm caíram lá perto ] © João Carvalho (2006).
Guiné > Zona Leste > Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (1973/74)> A enfermaria em grande plano e à esquerda com uma pequena porta e umas minijanelas, o posto de transmissões [Julgo que o João Carvalho, furriel enfermeiro, também ele, não terá tido mãos a medir no apoio sanitário às populações locais... Uma nobre missão que muito dignificou os serviços de saúde militares... ]
© João Carvalho (2006).
Guiné > Zona Leste > Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (1973/74)> A porta para a estrada que levava a Cheche e Madina do Boé [, de má memória para as NT...] . © João Carvalho (2006).
2. Estas fotos mereceram o seguinte comentário do José Martins, que também foi furriel miliciano (de transmissões), da CCAÇ 5, mas noutro tempo (1968/70):
Caros camaradas:
Com estas viagens virtuais, a um tempo real e inesquecível, vamos vencendo o silêncio a que fomos sujeitos durante tanto tempo.
Para os nossos queridos filhos e netos: Aqui vão retalhos duma vida sem viver, mas que continua viva na nossa mente.
Pena é que cada dia que passa sejamos cada vez menos. Vivemos isto pelos nossos pais e por muitos de vós que já existiam e por muitos mais que vieram a existir.
Não calem as vossas vozes nem prendam o vosso pensamento: SEJAM LIVRES e
façam favor de SER FELIZES, para que nós também o sejamos.
Um abalo do vosso camarada, vosso pai e vosso avô incondicional
José Martins
_____________
Notas de L.G.
(1) Vd. posts anteriores:
23 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXIV: O nosso fotógrafo em Canjadude (CCAÇ 5, 1973/74)
5 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCIX: O ataque de foguetões a Canjadude, em Abril de 1973 (João Carvalho)
28 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXCIII: Cancioneiro de Canjadude (CCAÇ 5, Gatos Pretos)
4 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCIV: Os últimos dias de Canjadude (fotos de João Carvalho)
4 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCV: A última noite em Canjadude (CCAÇ 5) (João Carvalho)
5 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCVI: A dolce vita de Canjadude, até ao dia 27 de Abril de 1973 (João Carvalho)
(2) Vd. post de 6 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCIX: Salazar Saliú Queta, degolado pelos homens do PAIGC em Canjadude (José Martins)
Guiné > Zona Leste > Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (1973/74) > A psico na tabanca. Em pé está o fulano que eu conheço desde o meu primeiro dia de vida. [E no meio, uma bajuda fula, linda de morrer, talvez ligeiramente estrábica... Sob o olhar vigilante da mãe, e rodeado dos irmãos mais pequenos... Repare-se como os tugas , passada a priimeira surpresa da exposição ao nu étnico, se apoderaram rapidamente do termo psico e deram-lhe uma outra conotação... mais épica, mais erótica, mais camoniana... Outra legenda possível: Canjadude, Ilha dos Amores, Lusíadas, Canto IX]
© João Carvalho (2006).
Guiné > Zona Leste > Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (1973/74) > O artista junto a um morteiro. [Morteiro 81 mm: uma arma poderosa, eficaz, mortífera, quando bem manejada, e apontada para as linhas inimigas...] © João Carvalho (2006).
Guiné > Zona Leste > Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (1973/74) > Escola da tabanca de Canjadude em que o Salazar dava aulas, vendo-se ao fundo a saída para Madina do Boé [ Recorde-se aqui a trágica história do professor Salazar Saliú Queta que terá sido executado (barbaramente) pelos homens do PAIGC a seguir à saída das NT, segundo fontes apuradas pelo João Martins...](1). © João Carvalho (2006).
Guiné > Zona Leste > Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (1973/74)> Ainda a escola, vendo-se junto um abrigo para a população da tabanca [As populações nas tabancas em autodefesa ou vivendo em povoações importantes, com destacamentos ou aquartelamentos das NT, pagaram uma pesada factura... Mesmo assim, não tão grande quanto a das populações sob controlo do PAIGC, bombardeadas pela Força Aérea, fustigadas pelos obuzes das nossas unidades de quadrícula, obrigadas a fugir sob a ameaça das nossas G-3... ] © João Carvalho (2006).
Guiné > Zona Leste > Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (1973/74) > Aeroporto de Canjadude durante a noite. Fotografia tirada de uma das tais grandes rochas (grandes para a Guiné), ou seja, de uma das rochas em que estava colocado um posto de sentinela. Consegue-se ver ainda o heliporto, que não sei se já existia quando o José Martins passou por estas bandas [Aeroporto, é favor: chamemos-lhe antes uma pista para pequenas aeronaves, como a Dornier-27, que nos trazia o correio e alguns víveres frescos... Falo pelo que conhecia de Bambadinca, por exemplo]. © João Carvalho (2006).
Guiné > Zona Leste > Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (1973/74)> Um dos postos de sentinela, á esquerda, e ao fundo os insólitos blocos de pedra de Canjadude... Bajudas transportam bidões que foram oferecidos à população, antes da entrega do aquartelamento ao PAIGC (Setembro de 1974). © João Carvalho (2006) [ A imagem original que estava demasiado azulada, foi editada e retocada pelo Albano Costa, o nosso artista-fotógrafo de Guifões, Matosinhos ].
Guiné > Zona Leste > Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (1973/74) > À direita as chapas de zinco que protegiam o tecto do abrigo do paiol. Mais à esquerda, protegida pelos bidões, a messe. A casa grande era a secretaria [ Canjadude não fugia à regra: adaptou-se aos condicionalismos da guerra... dispensando os bons ofícios dos engenheiros militares de Bissau... A malta virou arquitecto, engenheiro, trolha, marceneiro... O desenrascanço, à boa maneira dos tugas... É preciso fazer um paiol ? Pois, que se faça já aqui, a menos de 100 metros da messe... Admiro-me que não tenha havido, na Guiné - pelo menos, ao que se saiba - grandes acidentes resultantes da explosão de paióis... Em 1973 os foguetões de 122 mm caíram lá perto ] © João Carvalho (2006).
Guiné > Zona Leste > Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (1973/74)> A enfermaria em grande plano e à esquerda com uma pequena porta e umas minijanelas, o posto de transmissões [Julgo que o João Carvalho, furriel enfermeiro, também ele, não terá tido mãos a medir no apoio sanitário às populações locais... Uma nobre missão que muito dignificou os serviços de saúde militares... ]
© João Carvalho (2006).
Guiné > Zona Leste > Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (1973/74)> A porta para a estrada que levava a Cheche e Madina do Boé [, de má memória para as NT...] . © João Carvalho (2006).
2. Estas fotos mereceram o seguinte comentário do José Martins, que também foi furriel miliciano (de transmissões), da CCAÇ 5, mas noutro tempo (1968/70):
Caros camaradas:
Com estas viagens virtuais, a um tempo real e inesquecível, vamos vencendo o silêncio a que fomos sujeitos durante tanto tempo.
Para os nossos queridos filhos e netos: Aqui vão retalhos duma vida sem viver, mas que continua viva na nossa mente.
Pena é que cada dia que passa sejamos cada vez menos. Vivemos isto pelos nossos pais e por muitos de vós que já existiam e por muitos mais que vieram a existir.
Não calem as vossas vozes nem prendam o vosso pensamento: SEJAM LIVRES e
façam favor de SER FELIZES, para que nós também o sejamos.
Um abalo do vosso camarada, vosso pai e vosso avô incondicional
José Martins
_____________
Notas de L.G.
(1) Vd. posts anteriores:
23 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXIV: O nosso fotógrafo em Canjadude (CCAÇ 5, 1973/74)
5 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCIX: O ataque de foguetões a Canjadude, em Abril de 1973 (João Carvalho)
28 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXCIII: Cancioneiro de Canjadude (CCAÇ 5, Gatos Pretos)
4 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCIV: Os últimos dias de Canjadude (fotos de João Carvalho)
4 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCV: A última noite em Canjadude (CCAÇ 5) (João Carvalho)
5 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCVI: A dolce vita de Canjadude, até ao dia 27 de Abril de 1973 (João Carvalho)
(2) Vd. post de 6 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCIX: Salazar Saliú Queta, degolado pelos homens do PAIGC em Canjadude (José Martins)
quinta-feira, 16 de março de 2006
Guiné 63/74 - P617: A arte (da sobrevivência) (CART 2339, Fá e Mansambo, 1968/69) (Carlos Marques Santos)
Coimbra > Santo António dos Olivais > Aguarela da igreja paroquial (Sofia Santos, s/d)
© Carlos Marques dos Santos (2006)
Coimbra > Santo António dos Olivais > Igreja Paroquial
Texto do Carlos Marques Santos:
Sendo o meu berço de nascimento e porque na altura almoçámos juntos lá perto (eu, tu e o Victor David) envio a título pessoal uma imagem real da Igreja e uma aguarela feita pela minha filha Sofia, licenciada em Pintura (1).
Esta aguarela tem alguns anos e foi realizada ainda antes de entrar em Pintura.
Tenho lido tudo o que se tem escrito. É imparável e riquissimo o teu blogue, mas tal como tu, já quase não consigo organizar ideias e novos documentos. Vou vêr se consigo participar, ponto por ponto, com algo de interesse.
A minha história militar - que é de 41 meses de tropa (hoje falava-se de no mínimo 36 meses), pois fui mobilizado no último dia possível e a minha classificação indiciava que iria para Timor ou S. Tomé - é talvez algo diferente, como já te disse, porque nós vivemos no mato, dentro de arame farpado, sem populações, sem água, sem luz, picando a estrada para irmos a Bambadinca durante 17 Kms, muitas vezes com o apoio dos Obuses 105mm.
Recordo que um dia, numa coluna de reabastecimento de materiais para a edificação de Mansambo foram precisos 2 (dois) dias... Era na época das chuvas...
17 kms em 2 dias? Quem, a não ser nós, acreditaria nisto!?
Ficámos abrigados numa tabanca no meio do percurso, com toda a coluna atascada. Transportávamos 30.000 kgs de diverso material de construção.
Apanhámos, com o consentimento dos nativos, os frangos disponíveis e fizemos churrasco, temperado com as pastilhas de desinfecção da água (seria SAL?).
Digo com o consentimento, porque houve alturas em que não havia consentimento nenhum.
Com os Balantas, de Fá de Baixo, era correr atrás dos leitões, apanhá-los e largar para um churrasco.
Enfim, experiências de vida.
Um abraço Luís,
CMS
_________
Nota de L.G.
(1) Os nossos camaradas Victor David (CCAÇ 2405) e Carlos Marques Santos (CART 2339) são primos, nados e criados em Santo António dos Olivais onde tradicionalmente havia uma rua com o parelelo 98: uma linha imaginária que nenhum estudante podia transpôr...
O nosso camarada CMS é, além disso, um pai babado que, no dia 19 de Março, dia do pai, irá muito provavelmente ter com os seus filhos ao Café com Arte, uma referência obrigatória - dizem-me - para quem vive em (ou passa por) a cidade dos estudantes...
Fui lá há dias em trabalho, a Coimbra, duas vezes no espaço de um mês, mas ainda não deu para dar um salto ao Café com Arte... Tomo a liberdade de citar o que diz o Guia do Lazer do Publico.pt:
Café com Arte
Poderia ser rotulado como o café da cantora Inês Santos - a mesma que venceu o concurso "Chuva de Estrelas" - mas a verdade é que é muito mais que isso. Um espaço cultural que pretende, entre bebidas e aperitivos, mostrar Arte.
Sendo este um projecto de família, convivem neste café-galeria as influências musicais de Inês e a "direcção artística" da sua irmã, que fazem do Café com Arte uma agradável mostra itinerante de pinturas, fotografias, cerâmicas e esculturas, e que o tornam apetecível para uma incursão nocturna à "cidade dos estudantes".
Para os amigos e camaradas da Guiné que ainda não conhecem este espaço, aqui ficam as coordenadas:
Telefone > 239402494
Local > Coimbra, Av. Elísio de Moura 367 - loja 1
Horário> Todos os dias das 12h00 às 01h00. 5ª, 6ª e Sábado, aberto até às 02h00
Observações > Café/galeria, internet. Quinzenalmente, aos Sábados, "Artes de Palco" (música, teatro, poesia)... Grande selecção de chás e de cervejas importadas.
© Carlos Marques dos Santos (2006)
Coimbra > Santo António dos Olivais > Igreja Paroquial
Texto do Carlos Marques Santos:
Sendo o meu berço de nascimento e porque na altura almoçámos juntos lá perto (eu, tu e o Victor David) envio a título pessoal uma imagem real da Igreja e uma aguarela feita pela minha filha Sofia, licenciada em Pintura (1).
Esta aguarela tem alguns anos e foi realizada ainda antes de entrar em Pintura.
Tenho lido tudo o que se tem escrito. É imparável e riquissimo o teu blogue, mas tal como tu, já quase não consigo organizar ideias e novos documentos. Vou vêr se consigo participar, ponto por ponto, com algo de interesse.
A minha história militar - que é de 41 meses de tropa (hoje falava-se de no mínimo 36 meses), pois fui mobilizado no último dia possível e a minha classificação indiciava que iria para Timor ou S. Tomé - é talvez algo diferente, como já te disse, porque nós vivemos no mato, dentro de arame farpado, sem populações, sem água, sem luz, picando a estrada para irmos a Bambadinca durante 17 Kms, muitas vezes com o apoio dos Obuses 105mm.
Recordo que um dia, numa coluna de reabastecimento de materiais para a edificação de Mansambo foram precisos 2 (dois) dias... Era na época das chuvas...
17 kms em 2 dias? Quem, a não ser nós, acreditaria nisto!?
Ficámos abrigados numa tabanca no meio do percurso, com toda a coluna atascada. Transportávamos 30.000 kgs de diverso material de construção.
Apanhámos, com o consentimento dos nativos, os frangos disponíveis e fizemos churrasco, temperado com as pastilhas de desinfecção da água (seria SAL?).
Digo com o consentimento, porque houve alturas em que não havia consentimento nenhum.
Com os Balantas, de Fá de Baixo, era correr atrás dos leitões, apanhá-los e largar para um churrasco.
Enfim, experiências de vida.
Um abraço Luís,
CMS
_________
Nota de L.G.
(1) Os nossos camaradas Victor David (CCAÇ 2405) e Carlos Marques Santos (CART 2339) são primos, nados e criados em Santo António dos Olivais onde tradicionalmente havia uma rua com o parelelo 98: uma linha imaginária que nenhum estudante podia transpôr...
O nosso camarada CMS é, além disso, um pai babado que, no dia 19 de Março, dia do pai, irá muito provavelmente ter com os seus filhos ao Café com Arte, uma referência obrigatória - dizem-me - para quem vive em (ou passa por) a cidade dos estudantes...
Fui lá há dias em trabalho, a Coimbra, duas vezes no espaço de um mês, mas ainda não deu para dar um salto ao Café com Arte... Tomo a liberdade de citar o que diz o Guia do Lazer do Publico.pt:
Café com Arte
Poderia ser rotulado como o café da cantora Inês Santos - a mesma que venceu o concurso "Chuva de Estrelas" - mas a verdade é que é muito mais que isso. Um espaço cultural que pretende, entre bebidas e aperitivos, mostrar Arte.
Sendo este um projecto de família, convivem neste café-galeria as influências musicais de Inês e a "direcção artística" da sua irmã, que fazem do Café com Arte uma agradável mostra itinerante de pinturas, fotografias, cerâmicas e esculturas, e que o tornam apetecível para uma incursão nocturna à "cidade dos estudantes".
Para os amigos e camaradas da Guiné que ainda não conhecem este espaço, aqui ficam as coordenadas:
Telefone > 239402494
Local > Coimbra, Av. Elísio de Moura 367 - loja 1
Horário> Todos os dias das 12h00 às 01h00. 5ª, 6ª e Sábado, aberto até às 02h00
Observações > Café/galeria, internet. Quinzenalmente, aos Sábados, "Artes de Palco" (música, teatro, poesia)... Grande selecção de chás e de cervejas importadas.
Guiné 63/74 - P616: Convívio da CCAÇ 2405 (Os Baixinhos de Dulombi, 1968/70) (Victor David)
1. Mensagem do Victor David:
Luís:
Peço desculpa de te incomodar mas tentei mandar este mail abaixo descrito para o Jorge Santos, e ele veio recambiado, pelo que te incomodo pedindo o favor de anunciar o nosso almoço no Blogue e no local dos convívios de 2006.
Gostaria de saber se já recebeste as minhas fotos para a Tertúlia e que foram enviadas há uns tempos já, mas, como sou um pouco nabo nestas coisas das novas tecnologias, podem os anexos eventualmente ter ficado perdidos pelo caminho... É que Lisboa é muito longe...
Ainda não me encontrei com o Carlos Marques para me embrenhar no escrito que lhe deixaste - a História do BCAÇ 2852 [mais a História da CCAÇ 12], mas fá-lo-ei em breve.
Espero poder rever-te, em Coimbra,em breve,
Um grande Abraço do
Victor David
Ex-Alf Mil da CCAÇ 2405 (Galomaro e Dulombi, 1968/70)
Coimbra
2. Caro Camarada Jorge Santos:
Tive a felicidade de entrar no Blogue do Luis Graça & Camaradas da Guiné e encontrar aqui em Coimbra o Luis Graça, pelo que passei a fazer parte também da Tertúlia.
Nesse sentido pedia se poderias anunciar o convívio anual da CCAÇ 2405 que se realiza na Guarda, no dia 27 de Maio de 2006, com o seguinte programa:
11h00 - Concentração junto à Capela do Mileu
11h15 - Missa para quem quiser assistir
12h45 - Almoço na Casa da Lageosa, em Lageosa do Mondego
Depois do almoço:
- Tarde Dançante
- Jogos de Cartas (para os batoteiros)
O organizador do encontro deste ano é :
MATEUS ANDRADE COELHO
Tel. 271 239 891 ou Telemóvel 965 807 623
Obrigado antecipadamente
Victor David
Ex-Alf. Mil. da CCAÇ 2405
Coimbra
Luís:
Peço desculpa de te incomodar mas tentei mandar este mail abaixo descrito para o Jorge Santos, e ele veio recambiado, pelo que te incomodo pedindo o favor de anunciar o nosso almoço no Blogue e no local dos convívios de 2006.
Gostaria de saber se já recebeste as minhas fotos para a Tertúlia e que foram enviadas há uns tempos já, mas, como sou um pouco nabo nestas coisas das novas tecnologias, podem os anexos eventualmente ter ficado perdidos pelo caminho... É que Lisboa é muito longe...
Ainda não me encontrei com o Carlos Marques para me embrenhar no escrito que lhe deixaste - a História do BCAÇ 2852 [mais a História da CCAÇ 12], mas fá-lo-ei em breve.
Espero poder rever-te, em Coimbra,em breve,
Um grande Abraço do
Victor David
Ex-Alf Mil da CCAÇ 2405 (Galomaro e Dulombi, 1968/70)
Coimbra
2. Caro Camarada Jorge Santos:
Tive a felicidade de entrar no Blogue do Luis Graça & Camaradas da Guiné e encontrar aqui em Coimbra o Luis Graça, pelo que passei a fazer parte também da Tertúlia.
Nesse sentido pedia se poderias anunciar o convívio anual da CCAÇ 2405 que se realiza na Guarda, no dia 27 de Maio de 2006, com o seguinte programa:
11h00 - Concentração junto à Capela do Mileu
11h15 - Missa para quem quiser assistir
12h45 - Almoço na Casa da Lageosa, em Lageosa do Mondego
Depois do almoço:
- Tarde Dançante
- Jogos de Cartas (para os batoteiros)
O organizador do encontro deste ano é :
MATEUS ANDRADE COELHO
Tel. 271 239 891 ou Telemóvel 965 807 623
Obrigado antecipadamente
Victor David
Ex-Alf. Mil. da CCAÇ 2405
Coimbra
Guiné 63/74 - P615: Tabanca Grande: Victor David, ex-Alf Mil da CCAÇ 2405 (Dulombi, 1968/70)
Curriculum Vitae militar do nosso novo tertuliano, o Victor David, ex-alf mil da CCAÇ 2405 (Mansoa, Galomaro e Dulombi, 1968/70)
Resenha da minha actividade de militar como voluntário à força:
- Incorporado em Mafra, na Escola Prática de Infantaria, como recruta em 10 de Abril de 1967;
- Especialidade tirada em Mafra: atirador de infantaria;
- Promovido a Aspirante Miliciano em 25 de Setembro de 1967, fui colocado em Abrantes, no Regimento de Infantaria nº 2 (RI2);
- Primeiro trabalho no RI2 : organizar a biblioteca do Quartel!
- Dei uma recruta ainda em Abrantes até ser mobilizado;
- Em Jan de 1968, curso de Rangers em Lamego. Nota: reprovei, mas não fui despromovido porque já era Aspirante!
- Formámos depois Batalhão [2852] em Santa Margarida e embarcámos para a Guiné em Julho de 1968, no N/M Uíge;
- Chegada a Bissau em 30 de Julho de 1968;
- Treino operacional em Mansoa, no chão balanta;
- Ao fim de cinco meses, a CCAÇ 2405 é colocada na zona leste, no chão fula, em Galomaro, onde provisoriamente nos instalámos - num antigo celeiro - até sermos deslocados para Dulombi, onde construimos o Quartel onde nada existia! (até parecia que eramos de Engenharia...) (vd. mapa de Padada);
- Regresso a Portugal em 28 de Maio de 1970;
- Peluda em 29 de Junho de 1970;
- Importantíssimo(!): promovido na disponibilidade a Ten Mil em 1 de Dezembro de 1970! Quase chegava a General!!!
Fotos do arquivo pessoal de © Victor David (2006)
Resenha da minha actividade de militar como voluntário à força:
- Incorporado em Mafra, na Escola Prática de Infantaria, como recruta em 10 de Abril de 1967;
- Especialidade tirada em Mafra: atirador de infantaria;
- Promovido a Aspirante Miliciano em 25 de Setembro de 1967, fui colocado em Abrantes, no Regimento de Infantaria nº 2 (RI2);
- Primeiro trabalho no RI2 : organizar a biblioteca do Quartel!
- Dei uma recruta ainda em Abrantes até ser mobilizado;
- Em Jan de 1968, curso de Rangers em Lamego. Nota: reprovei, mas não fui despromovido porque já era Aspirante!
- Formámos depois Batalhão [2852] em Santa Margarida e embarcámos para a Guiné em Julho de 1968, no N/M Uíge;
- Chegada a Bissau em 30 de Julho de 1968;
- Treino operacional em Mansoa, no chão balanta;
- Ao fim de cinco meses, a CCAÇ 2405 é colocada na zona leste, no chão fula, em Galomaro, onde provisoriamente nos instalámos - num antigo celeiro - até sermos deslocados para Dulombi, onde construimos o Quartel onde nada existia! (até parecia que eramos de Engenharia...) (vd. mapa de Padada);
- Regresso a Portugal em 28 de Maio de 1970;
- Peluda em 29 de Junho de 1970;
- Importantíssimo(!): promovido na disponibilidade a Ten Mil em 1 de Dezembro de 1970! Quase chegava a General!!!
Fotos do arquivo pessoal de © Victor David (2006)
Guiné 63/74 - P614: Praxes... ou a pulsão da crueldade sádica (João Tunes)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Algures (Destacamento do Rio Undunduma ?) > 1969 ou 1970 > O 1º Cabo Branco do 2º Gr Comb da CCAÇ 12 experimentado uma granada de fumo.
Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71). © Humberto Reis (2006).
Texto do João Tunes
Caro Luís,
O blogue anda numa tal produção frenética que é difícil acompanhá-la. Valha o que isso representa de saudável no despejo e reequilíbrio da memória. Mas que começa a ser difícil acompanhar a pedalada do sprint memorial, lá disso não me resta qualquer dúvida. E falo só por mim?
Entre tanta produção, eu, ás vezes, já baralho as autorias. Que, diga-se, se vão diluindo dando palco à nossa odisseia colectiva, essa mancha viva que a todos nos marcou.
Embora as dores não sejam transmissíveis, cada um sendo marcado pelas suas, como nenhum passou sem uma e outra marca forte a fazer-lhe cócegas na lembrança, nesta riquíssima troca de experiências acabamos por ganhar uma dimensão que antes não teríamos - perceber que, mais coisas menos coisa, pitoresco aqui, pitoresco acolá, passamos por muito aproximado com cada qual metido lá no seu beco frente à bolanha.
E assim vamos perdendo a hipervalorização do que cada um passou, mais a malta do seu pelotão, da sua companhia, do seu batalhão. O isolamento dos aquartelamentos na Guiné criava-nos uma dimensão reduzida dos acontecimentos, dos sofrimentos e das façanhas. Muitos de nós fomos e voltámos da Guiné com uma ideia ego-localizada, quase de natureza concentracionária, do buraco onde nos enfiaram.
A Guiné estava ali, ali começando e ali acabando. Para uns, Guiné era Mansoa, para outros Aldeia Formosa ou Catió ou Farim. E como elas doíam em toda a parte, o natural é que cada um pensasse que tinha passado pelo pior, desvalorizando-se os outros que, comparando-se com o que tínhamos passado, não podia ter sido pior, logo até devia ter sido melhor.
E nunca vos aconteceu darem convosco, perante os sinais longínquos de um ataque a um aquartelamento próximo mas de outra companhia e outro batalhão, a encolherem os ombros e a dizerem "a malta de X... está a enfardar" (...metendo para dentro a frase-chave calada: "foda-se, antes eles que nós!")?
Julgo que não é mérito menor deste blogue dar-nos, à distância de umas dezenas de anos, essa dimensão mais integrada da realidade da Guiné. Que, no fundo, sempre tendo sido um país pobre e pequeno, sobretudo por via do seu tremendo e complexo mosaico étnico, é, pelo menos em termos de paisagem humana, social e cultural, muitos países metido numa estreita faixa de terra. E ainda hoje está para ser, se vier a ser, uma Nação mesmo.
Alguns entre nós, por força das circunstâncias particulares da sua missão e da sua especialização, ou fruto do aleatório, circulámos por espaços mais amplos e diversificados da Guiné. Foi o meu caso, por ter prestado serviço em três batalhões (um com sede em Bissau e depois no Pelundo, outro com sede em Catió, o último com sede em Bissau), no espaço dos vinte e quatro meses que por lá me obrigaram a andar.
Se isso me deu uma visão relativamente alargada dos chãos da Guiné, inibiu-me o espírito de corpo da cristalização e consolidação de laços dos que se mantiveram constantes na mesma unidade e tecendo, estruturando e fortalecendo, os mesmos laços de relacionamento e de camaradagem. Ou seja, mais desprendido relativamente ao corpo da unidade. O que, como tudo, teve vantagens e inconvenientes. Talvez, venha daí a minha experiência e opinião relativamente às praxes.
Um dos tertulianos escreveu: "Nós, tugas, tínhamos também as nossas praxes e rituais para exorcizar o medo, para reforçar a nossa crença da invulnerabilidade do nosso corpo... Ora, nada como evocar e desafiar a morte, invectivar Deus e o Diabo, fazer bravatas, armar-se em fanfarrão, inocular ainda mais medo aos pobres diabos que chegavam ao mato, o mítico mato da Guiné..." e julgo que foi o Luís que assim bem falou.
Concordo com a apreciação mas se me é permitido direi que a componente praxista, se cumpria um papel de descarga e de iniciação, positiva por necessária ou inevitável, não deixava de ser uma pulsão de crueldade sádica e, nesse aspecto, uma negação da camaradagem. Felizmente, as praxes eram breves e não atingiam níveis de violência intolerável. Mas eram uma forma de violência gratuita e acobardada e disso não passavam, como, aliás, acontece com praticamente todas as praxes (incluindo-se a boçalidade degradante e generalizada das praxes académicas).
Pela minha experiência, os momentos em que me senti mais triste, mais infeliz, mais abandonado, mais animal perdido no mundo, foram os insultos sádicos com que fui recebido em Bissau, sentindo-me ainda mais ridículo no verde vivo do camuflado novo em folha, com os escárnios do "periquito vai para o mato..." e outros do mesmo fio dessa meada. E o único aspecto positivo que retenho dessa experiência praxista foi a minha decisão, logo ali tomada e depois cumprida, de não a reproduzir, nem tal permitir a homens sob meu comando, quando me chegasse a vez de aceder à classe dos velhinhos.
Porque pensava, e ainda assim penso, que a violência da praxe era um acrescento inútil e desproporcionado à violência e dores da própria guerra. Pior que tudo, nas praxes, como em qualquer praxe, é que elas são celebradas em postura de autoridade ampliada de cima para baixo ou quando muito para o lado. Implicando sempre uma situação de partida com superioridade garantida do forte para com o fraco. E todos nós tivemos à mão de semear uns oficiais de merda, carregados de riscos dourados nos ombros, cagões e sem capacidade de mando, fazendo carreira e pés de meia nos caminhos daquela inútil guerra.
E eu nunca entendi que valentia era essa de praxar o desgraçado como nós, o amedrontado como nós, os que vinham passar pelo que havíamos passado, e descarregar o gozo de alívio nesses mesmos, nossos iguais e nossos sucessores, e não nos gajos feitos ao regime, comendo sinecuras e promoções, incluindo fascistas e colonialistas por opção ou por manjedoura, que, de uma ou outra forma, nos tinham levado até ali, praxantes e praxados, ao mesmo cú de judas. Enfim, um mero ponto de vista.
As melhores saudações para ti, caro Luís, e para todos os camaradas tertulianos.
João Tunes
Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71). © Humberto Reis (2006).
Texto do João Tunes
Caro Luís,
O blogue anda numa tal produção frenética que é difícil acompanhá-la. Valha o que isso representa de saudável no despejo e reequilíbrio da memória. Mas que começa a ser difícil acompanhar a pedalada do sprint memorial, lá disso não me resta qualquer dúvida. E falo só por mim?
Entre tanta produção, eu, ás vezes, já baralho as autorias. Que, diga-se, se vão diluindo dando palco à nossa odisseia colectiva, essa mancha viva que a todos nos marcou.
Embora as dores não sejam transmissíveis, cada um sendo marcado pelas suas, como nenhum passou sem uma e outra marca forte a fazer-lhe cócegas na lembrança, nesta riquíssima troca de experiências acabamos por ganhar uma dimensão que antes não teríamos - perceber que, mais coisas menos coisa, pitoresco aqui, pitoresco acolá, passamos por muito aproximado com cada qual metido lá no seu beco frente à bolanha.
E assim vamos perdendo a hipervalorização do que cada um passou, mais a malta do seu pelotão, da sua companhia, do seu batalhão. O isolamento dos aquartelamentos na Guiné criava-nos uma dimensão reduzida dos acontecimentos, dos sofrimentos e das façanhas. Muitos de nós fomos e voltámos da Guiné com uma ideia ego-localizada, quase de natureza concentracionária, do buraco onde nos enfiaram.
A Guiné estava ali, ali começando e ali acabando. Para uns, Guiné era Mansoa, para outros Aldeia Formosa ou Catió ou Farim. E como elas doíam em toda a parte, o natural é que cada um pensasse que tinha passado pelo pior, desvalorizando-se os outros que, comparando-se com o que tínhamos passado, não podia ter sido pior, logo até devia ter sido melhor.
E nunca vos aconteceu darem convosco, perante os sinais longínquos de um ataque a um aquartelamento próximo mas de outra companhia e outro batalhão, a encolherem os ombros e a dizerem "a malta de X... está a enfardar" (...metendo para dentro a frase-chave calada: "foda-se, antes eles que nós!")?
Julgo que não é mérito menor deste blogue dar-nos, à distância de umas dezenas de anos, essa dimensão mais integrada da realidade da Guiné. Que, no fundo, sempre tendo sido um país pobre e pequeno, sobretudo por via do seu tremendo e complexo mosaico étnico, é, pelo menos em termos de paisagem humana, social e cultural, muitos países metido numa estreita faixa de terra. E ainda hoje está para ser, se vier a ser, uma Nação mesmo.
Alguns entre nós, por força das circunstâncias particulares da sua missão e da sua especialização, ou fruto do aleatório, circulámos por espaços mais amplos e diversificados da Guiné. Foi o meu caso, por ter prestado serviço em três batalhões (um com sede em Bissau e depois no Pelundo, outro com sede em Catió, o último com sede em Bissau), no espaço dos vinte e quatro meses que por lá me obrigaram a andar.
Se isso me deu uma visão relativamente alargada dos chãos da Guiné, inibiu-me o espírito de corpo da cristalização e consolidação de laços dos que se mantiveram constantes na mesma unidade e tecendo, estruturando e fortalecendo, os mesmos laços de relacionamento e de camaradagem. Ou seja, mais desprendido relativamente ao corpo da unidade. O que, como tudo, teve vantagens e inconvenientes. Talvez, venha daí a minha experiência e opinião relativamente às praxes.
Um dos tertulianos escreveu: "Nós, tugas, tínhamos também as nossas praxes e rituais para exorcizar o medo, para reforçar a nossa crença da invulnerabilidade do nosso corpo... Ora, nada como evocar e desafiar a morte, invectivar Deus e o Diabo, fazer bravatas, armar-se em fanfarrão, inocular ainda mais medo aos pobres diabos que chegavam ao mato, o mítico mato da Guiné..." e julgo que foi o Luís que assim bem falou.
Concordo com a apreciação mas se me é permitido direi que a componente praxista, se cumpria um papel de descarga e de iniciação, positiva por necessária ou inevitável, não deixava de ser uma pulsão de crueldade sádica e, nesse aspecto, uma negação da camaradagem. Felizmente, as praxes eram breves e não atingiam níveis de violência intolerável. Mas eram uma forma de violência gratuita e acobardada e disso não passavam, como, aliás, acontece com praticamente todas as praxes (incluindo-se a boçalidade degradante e generalizada das praxes académicas).
Pela minha experiência, os momentos em que me senti mais triste, mais infeliz, mais abandonado, mais animal perdido no mundo, foram os insultos sádicos com que fui recebido em Bissau, sentindo-me ainda mais ridículo no verde vivo do camuflado novo em folha, com os escárnios do "periquito vai para o mato..." e outros do mesmo fio dessa meada. E o único aspecto positivo que retenho dessa experiência praxista foi a minha decisão, logo ali tomada e depois cumprida, de não a reproduzir, nem tal permitir a homens sob meu comando, quando me chegasse a vez de aceder à classe dos velhinhos.
Porque pensava, e ainda assim penso, que a violência da praxe era um acrescento inútil e desproporcionado à violência e dores da própria guerra. Pior que tudo, nas praxes, como em qualquer praxe, é que elas são celebradas em postura de autoridade ampliada de cima para baixo ou quando muito para o lado. Implicando sempre uma situação de partida com superioridade garantida do forte para com o fraco. E todos nós tivemos à mão de semear uns oficiais de merda, carregados de riscos dourados nos ombros, cagões e sem capacidade de mando, fazendo carreira e pés de meia nos caminhos daquela inútil guerra.
E eu nunca entendi que valentia era essa de praxar o desgraçado como nós, o amedrontado como nós, os que vinham passar pelo que havíamos passado, e descarregar o gozo de alívio nesses mesmos, nossos iguais e nossos sucessores, e não nos gajos feitos ao regime, comendo sinecuras e promoções, incluindo fascistas e colonialistas por opção ou por manjedoura, que, de uma ou outra forma, nos tinham levado até ali, praxantes e praxados, ao mesmo cú de judas. Enfim, um mero ponto de vista.
As melhores saudações para ti, caro Luís, e para todos os camaradas tertulianos.
João Tunes
Guiné 63/74 - P613: Aponta, Bruno! (ou outra alcunha do Spínola) (Zé Teixeira)
Luís
Saúde, paz e felicidade.
A propósito do Caco Baldé, toma outra alcunha do dito:
- O Aponta, Bruno... Aí vem o Aponta, Bruno ! - dizia logo o pessoal quando se avistava o Héli que o transportava.
Porquê ? Toda a zona de Buba, Nhala, Mampatá, Chamarra e Aldeia Formosa esteve uns tempos a comer, ao almoço e ao jantar, arroz com arroz e de vez em quando uma amostra de chispe. A barcaça que levava os mantimentos foi afundada pelos nossos amigos, e ficamos a ver . . . barcaças !
Isto gerou um mal estar que mais se agravou com o ataque às 5 da matina, como já contei no meu diário. Devo dizer que a minha companhia estava reduzida a 36 homens operacionais, dado esforço que se estava a fazer com a protecção à nova estrada de Buba para Aldeia Formosa, em que saíamos com o que seriam três pelotões às seis da matina (1). Regressávamos à tarde, no dia seguinte estávamos de serviço à segurança do quartel e logo de seguida abalávamos de novo para a estrada.
Então o homem chega e começa o discurso:
- Pátria está a exigir de vós um grande esforço e vós sois .....blá, blá, blá. Sei que a comida não tem sido a melhor, mas a Pátia exige sacrificios... blá, blá,blá. Quando estiverdes a comer feijão ou arroz, sem mais nada, fechai os olhos e imaginai-vos a comer um belo perú recheado ou um grãozinho com bacalhau, lá em Lisboa... blá, blá, blá.
Acompanhava-o um capitão, seu ajudante de campo, que toda a gente conhece e perante as reclamações do Major e do médico, ele só dizia:
- Aponta, Bruno!
Felizmente tinhamos um excelente médico, a quem presto a minha homenagem no Blogue, o Dr. João Carlos de Azevedo Franco, que à mais pequena mazela, muitas vezes resultante do estado psicológico em que vivívamos, dava uma baixa. Recordo que nesse célebre dia do Aponta, Bruno, , o Spínola disse ao médico:
- Estes rapazes o que precisam é de umas picas, vou lhe mandar uma boa dose de medicamentos... aponta, Bruno!
- O que eles precisam é de uns bons bifes e descanso.
Claro está que o Capitão Bruno não apontou o que o médico disse. Não é que oito dias depois chega a barcaça com mantimentos e duas enormes caixas de medicamentos não solicitados ?! Escusado será dizer que foram devolvidas ao remetente, com a informação "medicação não solicitada"e a vida continuou.
Chegou o fotógrafo. Acerca das fotografias que mandaste para a Web no blogue, aí vai a legenda:
1ª - Almoço no Hotel de muitas estrelas em Aldeia Formosa no intervalo de duas colunas de reabastecimento. Chegadinhos de Buba, partíamos no dia seguinta para Gandembel. Agosto de 1968.
2ª - Um leitão à maneira oferecido aos enfermeiros Maiorais pelo grande Mamadu, que toda a gente que passou por Empada recordará com saudade, pois faleceu há três anos. Foto tirada em Agosto de 1969.
3ª - Estou a passar as minhas técnicas da psico a três camaradas Maiorais. Em Empada não havia Fuzas. 1969.
4ª - O famoso pelotão Colhões Negros, uns filhotes dos Maiorais a que tive o orgulho de pertencer: sou o 3º à esquerda, na fila superior ( sem óculos)
Um abraço.
Zé Teixeira
Saúde, paz e felicidade.
A propósito do Caco Baldé, toma outra alcunha do dito:
- O Aponta, Bruno... Aí vem o Aponta, Bruno ! - dizia logo o pessoal quando se avistava o Héli que o transportava.
Porquê ? Toda a zona de Buba, Nhala, Mampatá, Chamarra e Aldeia Formosa esteve uns tempos a comer, ao almoço e ao jantar, arroz com arroz e de vez em quando uma amostra de chispe. A barcaça que levava os mantimentos foi afundada pelos nossos amigos, e ficamos a ver . . . barcaças !
Isto gerou um mal estar que mais se agravou com o ataque às 5 da matina, como já contei no meu diário. Devo dizer que a minha companhia estava reduzida a 36 homens operacionais, dado esforço que se estava a fazer com a protecção à nova estrada de Buba para Aldeia Formosa, em que saíamos com o que seriam três pelotões às seis da matina (1). Regressávamos à tarde, no dia seguinte estávamos de serviço à segurança do quartel e logo de seguida abalávamos de novo para a estrada.
Então o homem chega e começa o discurso:
- Pátria está a exigir de vós um grande esforço e vós sois .....blá, blá, blá. Sei que a comida não tem sido a melhor, mas a Pátia exige sacrificios... blá, blá,blá. Quando estiverdes a comer feijão ou arroz, sem mais nada, fechai os olhos e imaginai-vos a comer um belo perú recheado ou um grãozinho com bacalhau, lá em Lisboa... blá, blá, blá.
Acompanhava-o um capitão, seu ajudante de campo, que toda a gente conhece e perante as reclamações do Major e do médico, ele só dizia:
- Aponta, Bruno!
Felizmente tinhamos um excelente médico, a quem presto a minha homenagem no Blogue, o Dr. João Carlos de Azevedo Franco, que à mais pequena mazela, muitas vezes resultante do estado psicológico em que vivívamos, dava uma baixa. Recordo que nesse célebre dia do Aponta, Bruno, , o Spínola disse ao médico:
- Estes rapazes o que precisam é de umas picas, vou lhe mandar uma boa dose de medicamentos... aponta, Bruno!
Ao que o médico lhe respondeu:
- O que eles precisam é de uns bons bifes e descanso.
Claro está que o Capitão Bruno não apontou o que o médico disse. Não é que oito dias depois chega a barcaça com mantimentos e duas enormes caixas de medicamentos não solicitados ?! Escusado será dizer que foram devolvidas ao remetente, com a informação "medicação não solicitada"e a vida continuou.
Chegou o fotógrafo. Acerca das fotografias que mandaste para a Web no blogue, aí vai a legenda:
1ª - Almoço no Hotel de muitas estrelas em Aldeia Formosa no intervalo de duas colunas de reabastecimento. Chegadinhos de Buba, partíamos no dia seguinta para Gandembel. Agosto de 1968.
2ª - Um leitão à maneira oferecido aos enfermeiros Maiorais pelo grande Mamadu, que toda a gente que passou por Empada recordará com saudade, pois faleceu há três anos. Foto tirada em Agosto de 1969.
3ª - Estou a passar as minhas técnicas da psico a três camaradas Maiorais. Em Empada não havia Fuzas. 1969.
4ª - O famoso pelotão Colhões Negros, uns filhotes dos Maiorais a que tive o orgulho de pertencer: sou o 3º à esquerda, na fila superior ( sem óculos)
Um abraço.
Zé Teixeira
quarta-feira, 15 de março de 2006
Guiné 63/74 - P612: O blogue (que) faz a nossa história (Zé Teixeira)
Guiné > Região de Quínara (Buba) > CCAÇ 2381 (1968/70) > O Zé (Teixeira), o nosso fermero, de marmita na mão, no relativo (des)conforto de um refeitório do mato, em instalações hoteleiras de múltiplas estrelas... Ele não disse nem quando nem onde... (LG)
Guiné > Região de Quínara (Buba) > CCAÇ 2381 (1968/70) > Três tugas partilhando um copo, brindando à vida, à paz, ao amor, à amizade... Não importa onde nem quando... (LG)
Guiné > Região de Quínara (Buba) > O Zé com três barbudos (+ um) que só podiam ser fuzileiros navais, dos que atravessavam o Grande Rio de Buba que eu nunca cheguei a conhecer... (LG)
Guine > Região de Quínara (Buba) > CCAÇ 2381 (1968/70) > Quatro fotos à procura do fotógrafo... Alvíssaras dão-se para a melhor legenda... (LG)
Fotos do arquivo pessoal do © José Teixeira (2006)
1. Texto do camarada Zé Teixeira:
Luís:
Paz, saúde e felicidade.
Acabo de chegar a casa e reler o Meu Diário e ... não sei o que dizer-te sobre as tuas palavras. Sei que são do fundo do coração de um grande homem que tenho a honra, prazer e sobretudo sorte em conhecer. Pena é que só agora, mas ainda é tempo.
Queimam demasiado no seu ardor e ao mesmo tempo exige. Há muito que um grande mestre Baden Powell disse:
- Quando morreres procura deixar o mundo um pouco melhor do que quando o encontraste.
Se todos os homens procurassem seguir este conselho que mundo excelente teríamos. Eu e tu com tanta garra, é isso o que procuramos fazer.
O Diário foi e é apenas e só um pequeno espaço da minha vida que estava na gaveta do sonho, até que apareceste e . . . saltou.
Foi como um renascer do tempo que se tinha ido e voltou para reviver palmo a palmo, passo a passo, minuto a minuto, aqueles dias, meses, anos que nunca mais passavam e já se foram há tanto tempo.
Tem sido um ir e voltar, um viver e reviver cenas tantas delas felizes no meio da infelicidade.
Quantas lágrimas de alegria, no fim da emboscada ou do ataque, abraçados uns nos outros em que não se divisavam as divisas de cada um, mas apenas e só o homem, que mais uma vez escapou.
Quantas lágrimas de dor e raiva contidas e tantas vezes teimosas a descer pela face, perante o colega, o amigo, o companheiro que partia, sem dizer Adeus, camarada!, porque uma bala traiçoeira, um estilhaço perdido, lhe roubou a vida.
Na frente donde partiu cantava-se vitória. Da rectaguarda de onde nos mandaram, ficava a memória e lá, no local, ficava a dor que nunca mais passou.
Obrigado, Luís, pelo teu pequeno/grande e trabalhoso gesto. O blogue faz a nossa história. Não precisamos que outros a inventem. Esta é a verdadeira.
Conta comigo. Um fraternal abraço do
Zé Teixeira
2. Notícias da tertúlia (L.G.):
(i) O nosso Pai Natal, o Humberto Reis, mandou-nos mais uma porrada de mapas da Guiné, digitalizados: Binta, Buruntuma, Cacine, Caio, Cansissé, Madina do Boé, Nambonco, Padada, Pelundo, Piche, Quinhamel, Teixeira Pinto e Tendinto…
Vocês sabem onde fica(va) a zona de Tendinto ? Eu não... Vim agora a saber que é(era) a zona entre Contuboel e o Senegal... As coisas (talvez inúteis e seguramente tardias) que a gente aprende sobre a Guiné de há cinquenta anos... nesta escolinha que se transformou o nosso blogue!!!
Agora só falta o ajudante do Pai Natal pôr tudo direitinho nas nossas páginas na Net (não é no blogue, que não cabem lá…), para os trabalhos práticos da próxima aula de geografia...
Obrigado, Pai Natal!
(ii) O nosso ranger Magalhães Ribeiro (ranger só há um, o Ribeiro e mais nenhum!, que me perdoem todos os demais especialistas de operações especiais da nossa tertúlia...) tem um texto que achei interessante e que faz parte do Cancioneiro de Mansoa: a recepção dos periquitos pelos velhinhos de Mansoa… em Agosto de 1974!!!
Reparem que em 9 de Setembro são esses mesmos periquitos que vão fazer a transferência da soberania (que irónica expressão!)… Agora vejam os mimos com que foram recebidos… Os ritos, as praxes… Todos passámos por isso… O post é de leitura obrigatória....
Outros camaradas (o Paulo Raposo…) deitaram fogo ao cu dos jagudis ou mataram todos os cães vadios da parada (eu, o Humberto, o major B.B.)… Why ?... É caso para lançar o desafio: quem não fez merda, que levante o braço...
Eu tenho uma teoria (especulativa) sobre isto e que já deixei esta manhã no blogue… Querem vocês também debitar a vossa (teoria) ?
(iii) Zé Teixeira: Obrigado pela citação do Baden Powell... Quanto ao resto, não comento por pudor. Concordo contigo num ponto: não queremos fazer história, competir com o Spínola ou o Amílcar Cabral. Queremos apenas contar a(s) nossa(s) história(s)...
(iv) O João Tunes é um senhor professor catedrático em muitas matérias do conhecimento humano e, nomeadamente, de criptografia... Depois de o ler, é que percebo por que é que os gajos, os criptos que eu conheci no meu sector, armavam ao pingarelho... Estes de facto eram os oficiantes do Santo dos Santos... Só não percebo é por que é que o João, com ficha na PIDE, conseguiu chegar a oficial cripto de um batalhão inteiro... Os gajos da PIDE nesse dia ou estavam distraídos ou devem ter metido o artº 4 da função pública e ido às putas... João: Magnífico texto, o teu, como sempre!
(v) Mário Dias: mas que ternura tens tu pela tua segunda terra, pela Bissau da tua adolescência e juventude!... Um dia, se eu lá voltar, à Guiné, vou-te convidar para ser o meu guia de Bissau & arredores...
Guiné > Região de Quínara (Buba) > CCAÇ 2381 (1968/70) > Três tugas partilhando um copo, brindando à vida, à paz, ao amor, à amizade... Não importa onde nem quando... (LG)
Guiné > Região de Quínara (Buba) > O Zé com três barbudos (+ um) que só podiam ser fuzileiros navais, dos que atravessavam o Grande Rio de Buba que eu nunca cheguei a conhecer... (LG)
Guine > Região de Quínara (Buba) > CCAÇ 2381 (1968/70) > Quatro fotos à procura do fotógrafo... Alvíssaras dão-se para a melhor legenda... (LG)
Fotos do arquivo pessoal do © José Teixeira (2006)
1. Texto do camarada Zé Teixeira:
Luís:
Paz, saúde e felicidade.
Acabo de chegar a casa e reler o Meu Diário e ... não sei o que dizer-te sobre as tuas palavras. Sei que são do fundo do coração de um grande homem que tenho a honra, prazer e sobretudo sorte em conhecer. Pena é que só agora, mas ainda é tempo.
Queimam demasiado no seu ardor e ao mesmo tempo exige. Há muito que um grande mestre Baden Powell disse:
- Quando morreres procura deixar o mundo um pouco melhor do que quando o encontraste.
Se todos os homens procurassem seguir este conselho que mundo excelente teríamos. Eu e tu com tanta garra, é isso o que procuramos fazer.
O Diário foi e é apenas e só um pequeno espaço da minha vida que estava na gaveta do sonho, até que apareceste e . . . saltou.
Foi como um renascer do tempo que se tinha ido e voltou para reviver palmo a palmo, passo a passo, minuto a minuto, aqueles dias, meses, anos que nunca mais passavam e já se foram há tanto tempo.
Tem sido um ir e voltar, um viver e reviver cenas tantas delas felizes no meio da infelicidade.
Quantas lágrimas de alegria, no fim da emboscada ou do ataque, abraçados uns nos outros em que não se divisavam as divisas de cada um, mas apenas e só o homem, que mais uma vez escapou.
Quantas lágrimas de dor e raiva contidas e tantas vezes teimosas a descer pela face, perante o colega, o amigo, o companheiro que partia, sem dizer Adeus, camarada!, porque uma bala traiçoeira, um estilhaço perdido, lhe roubou a vida.
Na frente donde partiu cantava-se vitória. Da rectaguarda de onde nos mandaram, ficava a memória e lá, no local, ficava a dor que nunca mais passou.
Obrigado, Luís, pelo teu pequeno/grande e trabalhoso gesto. O blogue faz a nossa história. Não precisamos que outros a inventem. Esta é a verdadeira.
Conta comigo. Um fraternal abraço do
Zé Teixeira
2. Notícias da tertúlia (L.G.):
(i) O nosso Pai Natal, o Humberto Reis, mandou-nos mais uma porrada de mapas da Guiné, digitalizados: Binta, Buruntuma, Cacine, Caio, Cansissé, Madina do Boé, Nambonco, Padada, Pelundo, Piche, Quinhamel, Teixeira Pinto e Tendinto…
Vocês sabem onde fica(va) a zona de Tendinto ? Eu não... Vim agora a saber que é(era) a zona entre Contuboel e o Senegal... As coisas (talvez inúteis e seguramente tardias) que a gente aprende sobre a Guiné de há cinquenta anos... nesta escolinha que se transformou o nosso blogue!!!
Agora só falta o ajudante do Pai Natal pôr tudo direitinho nas nossas páginas na Net (não é no blogue, que não cabem lá…), para os trabalhos práticos da próxima aula de geografia...
Obrigado, Pai Natal!
(ii) O nosso ranger Magalhães Ribeiro (ranger só há um, o Ribeiro e mais nenhum!, que me perdoem todos os demais especialistas de operações especiais da nossa tertúlia...) tem um texto que achei interessante e que faz parte do Cancioneiro de Mansoa: a recepção dos periquitos pelos velhinhos de Mansoa… em Agosto de 1974!!!
Reparem que em 9 de Setembro são esses mesmos periquitos que vão fazer a transferência da soberania (que irónica expressão!)… Agora vejam os mimos com que foram recebidos… Os ritos, as praxes… Todos passámos por isso… O post é de leitura obrigatória....
Outros camaradas (o Paulo Raposo…) deitaram fogo ao cu dos jagudis ou mataram todos os cães vadios da parada (eu, o Humberto, o major B.B.)… Why ?... É caso para lançar o desafio: quem não fez merda, que levante o braço...
Eu tenho uma teoria (especulativa) sobre isto e que já deixei esta manhã no blogue… Querem vocês também debitar a vossa (teoria) ?
(iii) Zé Teixeira: Obrigado pela citação do Baden Powell... Quanto ao resto, não comento por pudor. Concordo contigo num ponto: não queremos fazer história, competir com o Spínola ou o Amílcar Cabral. Queremos apenas contar a(s) nossa(s) história(s)...
(iv) O João Tunes é um senhor professor catedrático em muitas matérias do conhecimento humano e, nomeadamente, de criptografia... Depois de o ler, é que percebo por que é que os gajos, os criptos que eu conheci no meu sector, armavam ao pingarelho... Estes de facto eram os oficiantes do Santo dos Santos... Só não percebo é por que é que o João, com ficha na PIDE, conseguiu chegar a oficial cripto de um batalhão inteiro... Os gajos da PIDE nesse dia ou estavam distraídos ou devem ter metido o artº 4 da função pública e ido às putas... João: Magnífico texto, o teu, como sempre!
(v) Mário Dias: mas que ternura tens tu pela tua segunda terra, pela Bissau da tua adolescência e juventude!... Um dia, se eu lá voltar, à Guiné, vou-te convidar para ser o meu guia de Bissau & arredores...
Guiné 63/74 - P611: Memórias do antigamente (Mário Dias) (3): O progresso chega a Bissau
Continuação das memórias do Mário Dias relativamente à sua experiência na Guiné, como civil, na década de 1950. O Mário foi depois sargento comando durante a guerra (Brá, 1963/66).
Fotos do arquivo pessoal de © Mário Dias (2006)
O progresso vai chegando
Aos poucos, Bissau ia melhorando. Com o decorrer do tempo, passou a ter electricidade durante todo o dia. A velha central eléctrica, situada num edifício próximo da entrada do estádio Sarmento Rodrigues (alguns se lembrarão dele), foi substituída pela nova, instalada em edifício construído de raiz lá para os lados do rio. Que maravilha a possibilidade de se porem de lado os frigoríficos a petróleo!
A pavimentação das ruas começou, como teste, na rua onde se situavam as principais casas de comércio. Os engenheiros não conheciam bem qual seria o comportamento dos solos nem a solidez da pouca pedra que por lá se conseguia arranjar. A experiência resultou, apesar do cepticismo de alguns defensores da tese da impossibilidade de tal obra na Guiné.
Guiné > Bissau > Anos 50 > Primeira rua a ser alcatroada em Bissau. O edifício à esquerda era o estabelecimento comercial conhecido por Pinto Grande, irmão de um outro Pinto conhecido por “Pintosinho” por ser (o estabelecimento) de menores dimensões. O “Pinto Grande”, embora continuando a ser chamado por esse nome, foi, durante a guerra, propriedade de um comerciante anteriormente estabelecido em Bolama, de nome Ernesto de Carvalho que o tomou de trespasse.
A avenida que ligava o rio à Praça do Império tinha uma configuração bem diferente da actual. Possuía uma placa central, larga, cimentada, arborizada com dois renques de frondosas árvores e filas de apetecíveis bancos onde tantas vezes me sentei usufruindo de calmos crepúsculos como só África tem. O trânsito de automóveis, ainda relativamente reduzido, processava-se, assim, por faixas separadas: ascendente e descendente.
Era esta avenida “o picadeiro” - expressão habitualmente usada em muitas terras para definir o local, praça ou rua, por onde os habitantes normalmente passeiam e que serve igualmente de ponto de encontro. Nessa placa central existia, já perto da Casa Gouveia, um quiosque com uma esplanada muito agradável onde se bebia excelente cerveja alemã. O café do Bento, a célebre 5ª repartição, surgiu mais tarde, no jardim, precisamente como resultado deste quiosque ter sido demolido com as obras de remodelação da avenida.
Num domingo de manhã bem cedo, cerca das 8 horas, estava em casa quando ouvi, vindo dos lados da avenida que me era próxima, enorme ruído no qual sobressaía o característico som do arranque de árvores. Fui ver. Toda aquela azáfama era para mim novidade. Nunca tinha visto aquela enorme máquina que, com um simples empurrão e sem qualquer dificuldade derrubava as árvores enquanto outra, lâmina enorme e resplandecente, escavava e, num piscar de olhos, levava à sua frente a placa de cimento dos passeios, os bancos, candeeiros e tudo mais que por lá existia. Ali me quedei, embasbacado como saloio, e com grande mágoa de ver as belas árvores derrubadas, os bancos onde tantas vezes me sentara arrancados e empurrados chão fora e toda a avenida esventrada. Coisas do impiedoso progresso.
Em pouco tempo, ao contrário das obras de hoje que demoram, e demoram, e demoram, a avenida ficou pronta. Alcatroada, com duas filas de candeeiros novos que ainda hoje lá estão, e com novas árvores para substituir as arrancadas. Se me perguntarem de qual gostava mais direi, sem qualquer hesitação, do seu aspecto antigo. Podiam ter alcatroado, substituído os candeeiros de iluminação pública e proceder a outras beneficiações sem necessidade de uma alteração tão profunda. Mas quem sou eu para me digladiar com o saber dos urbanistas?!
Aos poucos, outras ruas e avenidas foram alcatroadas e concluiu-se a construção do aeroporto de Bissalanca que veio permitir ligações aéreas a Lisboa. Anteriormente, para se vir a Lisboa ou a qualquer outro ponto da Europa, tínhamos de ir num pequeno avião que saía do campo de aviação de Brá (mais tarde ali ficou instalada a Companhia de Engenharia) até Dakar, por vezes com escala em Ziguinchor, onde então se tomava o avião para Lisboa.
Uma outra obra de grande importância e que em muito veio facilitar o acesso ao interior foi a ponte de Ensalmá, na estrada que liga a Mansoa, evitando-se a jangada que anteriormente servia para atravessar o canal que separa a ilha Bissau do continente. O local da “cambança” era na antiga estrada para Nhacra que passava por Santa Luzia.
Esta ponte foi, na a época, considerada uma bela obra de engenharia por ter o tramo central móvel, permitindo a sua elevação sempre que houvesse uma embarcação a navegar por aquele ponto do canal, de grande importância para o transporte de mercadorias, produtos agrícolas e pessoas. O sistema que fazia erguer o tabuleiro era, assaz, engenhoso e simples não necessitando de motor ou dispositivo semelhante. Um simples contrapeso movimentado ao longo de enorme barra que acompanhava exteriormente o tabuleiro, era o responsável pelo “milagre”. Talvez algum dos camaradas da tertúlia tenha chegado a observar directamente como isto acontecia sempre que uma embarcação passava.
Segundo recentemente me informaram, esta ponte já não é usada, pois uma outra foi construída para a substituir, e pelo canal, completamente assoreado, já não passam barcos. Mas fica o registo para a história.
O primeiro troço de estrada a receber alcatrão foi entre Bissalanca e Ensalmá e resumia-se a uma estreita faixa ao centro com largura somente para um carro. Quando duas viaturas se cruzavam, cada uma delas era forçada a passar com um dos rodados pela borda da estrada não alcatroada. Mais tarde, o alcatrão “alargou” e estendeu-se até Mansoa.
Pode dizer-se que o desenvolvimento da Guiné, começou a avançar, embora timidamente, a partir de meados da década de 50. Novos edifícios iam sendo construídos e surgiam as infra-estruturas indispensáveis ao progresso.
Guiné > Bissau > Anos 50 > O novo liceu Honório Barreto. O antigo liceu funcionava no edifício da praça do Império que era também museu e biblioteca. Esse edifício, que ainda lá está embora quase arruinado, era por nós apelidado de “chapéu de palhaço” pela semelhança que o torreão central tinha com o dito chapéu.
Guiné > Bissau > Anos 50 > Uma das muitas moradias que um pouco por toda a cidade de Bissau iam surgindo. Esta situava-se, e situa-se ainda, em frente à residência do Prefeito Apostólico (bispo) e nela residi durante algum tempo por ser propriedade da minha madrasta. Creio que hoje é residência de um embaixador. Qual, não sei.
Outras obras importantes para o progresso de Bissau foram realizadas. As novas instalações da Alfandega e armazéns portuários junto à nova ponte cais, o novo hospital, (hoje Simão Mendes) a nova estação dos correios, renovação de toda a iluminação pública, abertura de novas ruas e avenidas, o quartel dos bombeiros, o novo cinema da UDIB, a sede do Benfica, a sede da Associação Comercial (hoje do PAIGC) e demais realizações que estavam, embora lentamente e com muito atraso, a trazer Bissau para a “civilização”.
Por ter falado no novo cinema da UDIB, será lógica a pergunta: - E antes não havia cinema? - Claro que havia mas as condições em que acontecia dão vontade de rir. O cinema tinha lugar num armazém, mais barracão que armazém, pertencente à Casa Gouveia e situado no quarteirão onde ficava a sede dessa empresa comercial, na rua que a separava do BNU. Cadeiras de madeira tosca, desconjuntadas, chão de cimento todo fragmentado, escuro e abafado mas que, às quintas, sábados e domingos faziam as nossas delícias.
Guiné > Bissau > Anos 50 > O novo edifício dos correios. Anteriormente os CTT eram no edifício que se encontra do lado direito e onde continuou funcionando a Emissora da Guiné ( 1º andar ). De notar a curiosa viatura que era um dos “luxuosos” autocarros da época que, pela semelhança, eram conhecidos por ambulâncias. Esta (ambulância) pertencia à firma A. Brites Palma. Havia ainda, tanto quanto me recordo, outras duas empresas de transportes que faziam carreiras de autocarros (ambulâncias) para toda a Guiné. Eram o “Costa”, sedeado em Bissau e o “Escada” em Teixeira Pinto (Canchungo). Tenho a vaga ideia de existir uma outra na região de Bafatá-Gabú propriedade de um libanês mas não tenho a certeza. Talvez alguém me possa ajudar nesta dúvida. De notar as árvores recentemente plantadas, fruto da alteração do traçado da avenida que referi neste texto.
Guiné > Bissau > Anos 50 > Perspectiva da Avenida da República, obtida a partir da torre da catedral já ao final do dia. O primeiro edifício, de que se vê pouco mais que o telhado, é a sede da uma das importantes firmes comerciais da Guiné: “Nunes & Irmão”. Mais ao fundo, do lado direito, o cinema UDIB e o palácio do governador na praça do Império. O edifício da Associação Comercial (hoje PAIGC) situado na mesma praça, ainda não existia.
Com esta atabalhoada narrativa podem os caros amigos desta tertúlia fazer uma pequena ideia de como era a Bissau dos tempos que antecederam a guerra.
Nesta pequena crónica referi apenas os aspectos urbanísticos. Darei conta, brevemente, da vida laboral e lúdica desses tempos.
___________
9 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXII: Memórias do antigamente (Mário Dias) (1): Um cabaço de leite
19 de Fevereirod e 2006 > Guiné 63/74 - LDXVI: Memórias do antigamente (Mário Dias) (2): Uma serenata ao Governador
Fotos do arquivo pessoal de © Mário Dias (2006)
O progresso vai chegando
Aos poucos, Bissau ia melhorando. Com o decorrer do tempo, passou a ter electricidade durante todo o dia. A velha central eléctrica, situada num edifício próximo da entrada do estádio Sarmento Rodrigues (alguns se lembrarão dele), foi substituída pela nova, instalada em edifício construído de raiz lá para os lados do rio. Que maravilha a possibilidade de se porem de lado os frigoríficos a petróleo!
A pavimentação das ruas começou, como teste, na rua onde se situavam as principais casas de comércio. Os engenheiros não conheciam bem qual seria o comportamento dos solos nem a solidez da pouca pedra que por lá se conseguia arranjar. A experiência resultou, apesar do cepticismo de alguns defensores da tese da impossibilidade de tal obra na Guiné.
Guiné > Bissau > Anos 50 > Primeira rua a ser alcatroada em Bissau. O edifício à esquerda era o estabelecimento comercial conhecido por Pinto Grande, irmão de um outro Pinto conhecido por “Pintosinho” por ser (o estabelecimento) de menores dimensões. O “Pinto Grande”, embora continuando a ser chamado por esse nome, foi, durante a guerra, propriedade de um comerciante anteriormente estabelecido em Bolama, de nome Ernesto de Carvalho que o tomou de trespasse.
A avenida que ligava o rio à Praça do Império tinha uma configuração bem diferente da actual. Possuía uma placa central, larga, cimentada, arborizada com dois renques de frondosas árvores e filas de apetecíveis bancos onde tantas vezes me sentei usufruindo de calmos crepúsculos como só África tem. O trânsito de automóveis, ainda relativamente reduzido, processava-se, assim, por faixas separadas: ascendente e descendente.
Era esta avenida “o picadeiro” - expressão habitualmente usada em muitas terras para definir o local, praça ou rua, por onde os habitantes normalmente passeiam e que serve igualmente de ponto de encontro. Nessa placa central existia, já perto da Casa Gouveia, um quiosque com uma esplanada muito agradável onde se bebia excelente cerveja alemã. O café do Bento, a célebre 5ª repartição, surgiu mais tarde, no jardim, precisamente como resultado deste quiosque ter sido demolido com as obras de remodelação da avenida.
Num domingo de manhã bem cedo, cerca das 8 horas, estava em casa quando ouvi, vindo dos lados da avenida que me era próxima, enorme ruído no qual sobressaía o característico som do arranque de árvores. Fui ver. Toda aquela azáfama era para mim novidade. Nunca tinha visto aquela enorme máquina que, com um simples empurrão e sem qualquer dificuldade derrubava as árvores enquanto outra, lâmina enorme e resplandecente, escavava e, num piscar de olhos, levava à sua frente a placa de cimento dos passeios, os bancos, candeeiros e tudo mais que por lá existia. Ali me quedei, embasbacado como saloio, e com grande mágoa de ver as belas árvores derrubadas, os bancos onde tantas vezes me sentara arrancados e empurrados chão fora e toda a avenida esventrada. Coisas do impiedoso progresso.
Em pouco tempo, ao contrário das obras de hoje que demoram, e demoram, e demoram, a avenida ficou pronta. Alcatroada, com duas filas de candeeiros novos que ainda hoje lá estão, e com novas árvores para substituir as arrancadas. Se me perguntarem de qual gostava mais direi, sem qualquer hesitação, do seu aspecto antigo. Podiam ter alcatroado, substituído os candeeiros de iluminação pública e proceder a outras beneficiações sem necessidade de uma alteração tão profunda. Mas quem sou eu para me digladiar com o saber dos urbanistas?!
Aos poucos, outras ruas e avenidas foram alcatroadas e concluiu-se a construção do aeroporto de Bissalanca que veio permitir ligações aéreas a Lisboa. Anteriormente, para se vir a Lisboa ou a qualquer outro ponto da Europa, tínhamos de ir num pequeno avião que saía do campo de aviação de Brá (mais tarde ali ficou instalada a Companhia de Engenharia) até Dakar, por vezes com escala em Ziguinchor, onde então se tomava o avião para Lisboa.
Uma outra obra de grande importância e que em muito veio facilitar o acesso ao interior foi a ponte de Ensalmá, na estrada que liga a Mansoa, evitando-se a jangada que anteriormente servia para atravessar o canal que separa a ilha Bissau do continente. O local da “cambança” era na antiga estrada para Nhacra que passava por Santa Luzia.
Esta ponte foi, na a época, considerada uma bela obra de engenharia por ter o tramo central móvel, permitindo a sua elevação sempre que houvesse uma embarcação a navegar por aquele ponto do canal, de grande importância para o transporte de mercadorias, produtos agrícolas e pessoas. O sistema que fazia erguer o tabuleiro era, assaz, engenhoso e simples não necessitando de motor ou dispositivo semelhante. Um simples contrapeso movimentado ao longo de enorme barra que acompanhava exteriormente o tabuleiro, era o responsável pelo “milagre”. Talvez algum dos camaradas da tertúlia tenha chegado a observar directamente como isto acontecia sempre que uma embarcação passava.
Segundo recentemente me informaram, esta ponte já não é usada, pois uma outra foi construída para a substituir, e pelo canal, completamente assoreado, já não passam barcos. Mas fica o registo para a história.
O primeiro troço de estrada a receber alcatrão foi entre Bissalanca e Ensalmá e resumia-se a uma estreita faixa ao centro com largura somente para um carro. Quando duas viaturas se cruzavam, cada uma delas era forçada a passar com um dos rodados pela borda da estrada não alcatroada. Mais tarde, o alcatrão “alargou” e estendeu-se até Mansoa.
Pode dizer-se que o desenvolvimento da Guiné, começou a avançar, embora timidamente, a partir de meados da década de 50. Novos edifícios iam sendo construídos e surgiam as infra-estruturas indispensáveis ao progresso.
Guiné > Bissau > Anos 50 > O novo liceu Honório Barreto. O antigo liceu funcionava no edifício da praça do Império que era também museu e biblioteca. Esse edifício, que ainda lá está embora quase arruinado, era por nós apelidado de “chapéu de palhaço” pela semelhança que o torreão central tinha com o dito chapéu.
Guiné > Bissau > Anos 50 > Uma das muitas moradias que um pouco por toda a cidade de Bissau iam surgindo. Esta situava-se, e situa-se ainda, em frente à residência do Prefeito Apostólico (bispo) e nela residi durante algum tempo por ser propriedade da minha madrasta. Creio que hoje é residência de um embaixador. Qual, não sei.
Outras obras importantes para o progresso de Bissau foram realizadas. As novas instalações da Alfandega e armazéns portuários junto à nova ponte cais, o novo hospital, (hoje Simão Mendes) a nova estação dos correios, renovação de toda a iluminação pública, abertura de novas ruas e avenidas, o quartel dos bombeiros, o novo cinema da UDIB, a sede do Benfica, a sede da Associação Comercial (hoje do PAIGC) e demais realizações que estavam, embora lentamente e com muito atraso, a trazer Bissau para a “civilização”.
Por ter falado no novo cinema da UDIB, será lógica a pergunta: - E antes não havia cinema? - Claro que havia mas as condições em que acontecia dão vontade de rir. O cinema tinha lugar num armazém, mais barracão que armazém, pertencente à Casa Gouveia e situado no quarteirão onde ficava a sede dessa empresa comercial, na rua que a separava do BNU. Cadeiras de madeira tosca, desconjuntadas, chão de cimento todo fragmentado, escuro e abafado mas que, às quintas, sábados e domingos faziam as nossas delícias.
Guiné > Bissau > Anos 50 > O novo edifício dos correios. Anteriormente os CTT eram no edifício que se encontra do lado direito e onde continuou funcionando a Emissora da Guiné ( 1º andar ). De notar a curiosa viatura que era um dos “luxuosos” autocarros da época que, pela semelhança, eram conhecidos por ambulâncias. Esta (ambulância) pertencia à firma A. Brites Palma. Havia ainda, tanto quanto me recordo, outras duas empresas de transportes que faziam carreiras de autocarros (ambulâncias) para toda a Guiné. Eram o “Costa”, sedeado em Bissau e o “Escada” em Teixeira Pinto (Canchungo). Tenho a vaga ideia de existir uma outra na região de Bafatá-Gabú propriedade de um libanês mas não tenho a certeza. Talvez alguém me possa ajudar nesta dúvida. De notar as árvores recentemente plantadas, fruto da alteração do traçado da avenida que referi neste texto.
Guiné > Bissau > Anos 50 > Perspectiva da Avenida da República, obtida a partir da torre da catedral já ao final do dia. O primeiro edifício, de que se vê pouco mais que o telhado, é a sede da uma das importantes firmes comerciais da Guiné: “Nunes & Irmão”. Mais ao fundo, do lado direito, o cinema UDIB e o palácio do governador na praça do Império. O edifício da Associação Comercial (hoje PAIGC) situado na mesma praça, ainda não existia.
Com esta atabalhoada narrativa podem os caros amigos desta tertúlia fazer uma pequena ideia de como era a Bissau dos tempos que antecederam a guerra.
Nesta pequena crónica referi apenas os aspectos urbanísticos. Darei conta, brevemente, da vida laboral e lúdica desses tempos.
___________
9 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXII: Memórias do antigamente (Mário Dias) (1): Um cabaço de leite
19 de Fevereirod e 2006 > Guiné 63/74 - LDXVI: Memórias do antigamente (Mário Dias) (2): Uma serenata ao Governador
Guiné 63/74 - P610: Ser cripto no olho do cu de Judas (João Tunes)
Camarada Luís,
Numa tua legenda a uma foto do nosso camarada Afonso M. F. Sousa, com ele confortavelmente instalado e posando para a posteridade como um soba de camuflado à espera de uma cerveja bem gelada, junto ao centro cripto da sua unidade, disseste: "O centro cripto era uma espécie de cofre forte dos nossos aquartelamentos, o santos dos santos, o mais misterioso recôndito da pátria lusa naquele pedaço de terra onde flutuava a bandeira das quinas...". E como é teu costume e abuso, disseste bem.
Confirmo essa aura que circundava a actividade cripto na guerra, num relativismo que ia da treta até à treta e meia. Eu próprio gozei do privilégio dessa casta aristocrática no domínio do acesso ao antro sagrado em que as mensagens a transmitir por rádio eram codificadas para que não fossem conhecidas pela guerrilha.
Como oficial de transmissões, era também o responsável pela actividade de codificação ao nível do batalhão. Pelas regras da segurança militar, dava-se até um dado curioso - os únicos militares com acesso ao centro cripto eram exclusivamente os que nele prestavam serviço, o que excluía qualquer oficial com função de comando, fosse alferes, capitão, major, tenente-coronel ou general comandante-chefe. O que transformava o centro cripto num lugar sagrado. Assim, se o comandante de companhia ou o comandante de batalhão decidissem passar revista a esse local, o regulamento obrigava a que estes oficiais fizessem aviso prévio dessa intenção, com tempo necessário para que todo o material de codificação fosse coberto com cobertores a fim de os sumos oficiais não poderem espreitar e conhecer os códigos em utilização.
Quando havia renovação dos códigos, era o oficial cripto (acumulando com as funções de oficial de transmissões) que fazia a troca (entregando os códigos vencidos e recebendo os novos) dentro de um circuito paralelo e exógeno à cadeia do comando.
Refira-se, ainda, que a acumulação de funções transmissões/cripto se dava exclusivamente no caso do alferes miliciano do batalhão, passando a haver distinção clara de funções relativamente aos furriéis e cabos (que eram só de transmissões ou só cripto).
Outra protecção dada, de resguardo, aos elementos das equipas cripto (normalmente, um furriel e dois cabos) era - julgo que só comparável ao tratamento dado ao capelão e ao cabo sacristão - a sua dispensa de qualquer actividade operacional para prevenir o risco da sua captura pela guerrilha. Ou seja, não se queria que o IN nos decifrasse os códigos das mensagens militares nem os salmos e as penitências com que comunicávamos com a Santíssima Trindade e lhe pedíamos protecção divina.
Por todas estas razões, a equipa cripto (a par do staff religioso) constituía, de facto, uma certa elite nos aquartelamentos, o que, claro, deve ser interpretado à luz da justa e fraca proporção das coisas no universo típico de uma unidade encafuada no meio do mato da Guiné.
A situação referida, o resguardo da fortaleza cripto, deu-me alguns dissabores bem gostosos. O comandante e segundo comandante que me (nos) mandavam no Pelundo (1969/71) não conseguiam engolir a reserva nos seus acessos ao centro cripto. E tentaram, ao princípio, violar as regras, forçando a entrada, sem aviso prévio. Ora, perante essas tentativas de violar as regras militares (claramente estabelecidas e escritas) eram, para mim (melhor para o meu sangue quente de então) uma oportunidade a não perder para exercício de inversão da macacada do cerimonial da hierarquia militarista, metendo um tenente-coronel e mais um major - e que par de jarras! - em sentido e na devida ordem. Não só lhes barrei as tentativas de entradas inopinadas no antro sagrado (sem o necessário aviso prévio para tapar os materiais com os cobertores regulamentares) como lhes comuniquei que a contumácia na prevaricação me levaria a uma participação ao Comando-Chefe por violação das regras de segurança militar por parte do Exmo Comando do Batalhão (e, por regulamento, podia fazê-lo). Cederam eles (serviriam a vingança, a frio, mais tarde...).
O que, por sinal, foi pretexto (a malta queria era pretextos!) para uma rica e bem regada patuscada da malta cripto em comemoração da vã glória de estar para ali encafuada no que - bem dito por ti, camarada Luís - era o santo dos santos daquelas nossas moradias enfiadas lá no olho do cú de judas, se me é prmitida alguma dose de libertinagem na linguagem.
Porque, acho eu e sem desprimor para com opiniões em contrário, se o Judas teve cú, como nós temos, presumindo-se que sim, embora nenhuma autópsia lhe tenha certificado algo mais que a bolsa dos euros traidores, ali na Guiné, na nossa Guiné, estava lá o lugar central do cú de judas - o do seu realíssimo e infecto olho. E ser isto ou ser aquilo, ser miliciano ou chico, ser oficial, sargento, furriel, cabo ou soldado, ser cripto ou não, sacristão ou relapso às santas práticas, no mesmíssimo cú estivemos enfiados, riscando os dias em falta para dali sairmos. E talvez tenha sido isso, afinal graças a um cú e ao cabrão do seu olho, que nos tornámos todos melhores como homens, e camaradas, e amigos. Valha-nos isso.
Um abraço forte para ti e para todos os camaradas e estimados tertulianos.
João Tunes
[Blogador-mor do Água Lisa (6) ]
Numa tua legenda a uma foto do nosso camarada Afonso M. F. Sousa, com ele confortavelmente instalado e posando para a posteridade como um soba de camuflado à espera de uma cerveja bem gelada, junto ao centro cripto da sua unidade, disseste: "O centro cripto era uma espécie de cofre forte dos nossos aquartelamentos, o santos dos santos, o mais misterioso recôndito da pátria lusa naquele pedaço de terra onde flutuava a bandeira das quinas...". E como é teu costume e abuso, disseste bem.
Confirmo essa aura que circundava a actividade cripto na guerra, num relativismo que ia da treta até à treta e meia. Eu próprio gozei do privilégio dessa casta aristocrática no domínio do acesso ao antro sagrado em que as mensagens a transmitir por rádio eram codificadas para que não fossem conhecidas pela guerrilha.
Como oficial de transmissões, era também o responsável pela actividade de codificação ao nível do batalhão. Pelas regras da segurança militar, dava-se até um dado curioso - os únicos militares com acesso ao centro cripto eram exclusivamente os que nele prestavam serviço, o que excluía qualquer oficial com função de comando, fosse alferes, capitão, major, tenente-coronel ou general comandante-chefe. O que transformava o centro cripto num lugar sagrado. Assim, se o comandante de companhia ou o comandante de batalhão decidissem passar revista a esse local, o regulamento obrigava a que estes oficiais fizessem aviso prévio dessa intenção, com tempo necessário para que todo o material de codificação fosse coberto com cobertores a fim de os sumos oficiais não poderem espreitar e conhecer os códigos em utilização.
Quando havia renovação dos códigos, era o oficial cripto (acumulando com as funções de oficial de transmissões) que fazia a troca (entregando os códigos vencidos e recebendo os novos) dentro de um circuito paralelo e exógeno à cadeia do comando.
Refira-se, ainda, que a acumulação de funções transmissões/cripto se dava exclusivamente no caso do alferes miliciano do batalhão, passando a haver distinção clara de funções relativamente aos furriéis e cabos (que eram só de transmissões ou só cripto).
Outra protecção dada, de resguardo, aos elementos das equipas cripto (normalmente, um furriel e dois cabos) era - julgo que só comparável ao tratamento dado ao capelão e ao cabo sacristão - a sua dispensa de qualquer actividade operacional para prevenir o risco da sua captura pela guerrilha. Ou seja, não se queria que o IN nos decifrasse os códigos das mensagens militares nem os salmos e as penitências com que comunicávamos com a Santíssima Trindade e lhe pedíamos protecção divina.
Por todas estas razões, a equipa cripto (a par do staff religioso) constituía, de facto, uma certa elite nos aquartelamentos, o que, claro, deve ser interpretado à luz da justa e fraca proporção das coisas no universo típico de uma unidade encafuada no meio do mato da Guiné.
A situação referida, o resguardo da fortaleza cripto, deu-me alguns dissabores bem gostosos. O comandante e segundo comandante que me (nos) mandavam no Pelundo (1969/71) não conseguiam engolir a reserva nos seus acessos ao centro cripto. E tentaram, ao princípio, violar as regras, forçando a entrada, sem aviso prévio. Ora, perante essas tentativas de violar as regras militares (claramente estabelecidas e escritas) eram, para mim (melhor para o meu sangue quente de então) uma oportunidade a não perder para exercício de inversão da macacada do cerimonial da hierarquia militarista, metendo um tenente-coronel e mais um major - e que par de jarras! - em sentido e na devida ordem. Não só lhes barrei as tentativas de entradas inopinadas no antro sagrado (sem o necessário aviso prévio para tapar os materiais com os cobertores regulamentares) como lhes comuniquei que a contumácia na prevaricação me levaria a uma participação ao Comando-Chefe por violação das regras de segurança militar por parte do Exmo Comando do Batalhão (e, por regulamento, podia fazê-lo). Cederam eles (serviriam a vingança, a frio, mais tarde...).
O que, por sinal, foi pretexto (a malta queria era pretextos!) para uma rica e bem regada patuscada da malta cripto em comemoração da vã glória de estar para ali encafuada no que - bem dito por ti, camarada Luís - era o santo dos santos daquelas nossas moradias enfiadas lá no olho do cú de judas, se me é prmitida alguma dose de libertinagem na linguagem.
Porque, acho eu e sem desprimor para com opiniões em contrário, se o Judas teve cú, como nós temos, presumindo-se que sim, embora nenhuma autópsia lhe tenha certificado algo mais que a bolsa dos euros traidores, ali na Guiné, na nossa Guiné, estava lá o lugar central do cú de judas - o do seu realíssimo e infecto olho. E ser isto ou ser aquilo, ser miliciano ou chico, ser oficial, sargento, furriel, cabo ou soldado, ser cripto ou não, sacristão ou relapso às santas práticas, no mesmíssimo cú estivemos enfiados, riscando os dias em falta para dali sairmos. E talvez tenha sido isso, afinal graças a um cú e ao cabrão do seu olho, que nos tornámos todos melhores como homens, e camaradas, e amigos. Valha-nos isso.
Um abraço forte para ti e para todos os camaradas e estimados tertulianos.
João Tunes
[Blogador-mor do Água Lisa (6) ]
Guiné 63/74 - P609: Cancioneiro de Mansoa (7): Os periquitos do pós-guerra (Magalhães Ribeiro)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Dezembro de 1969 > Pessoal da CART 2339 (Mansambo, 1968/69) em fim de comissão, a caminho de Bissau... Na tropa, a velhice era um posto e um periquito um verme... O mato era o inferno, e Bissau as portas do paraíso... Daí a célebre letra da canção: "Periquito vai no mato / Que a velhice vai pra Bissau"... (LG)
© Humberto Reis (2006)
Dos cadernos do Eduardo Magalhães Ribeiro, ex-furriel miliciano de operações especiais, da CCS do BCAÇ 4612 (que esteve em Mansoa por escassos dias, cabendo-lhe a honra de arriar a nossa bandeira em 9 de Setembro de 1974, por ocasião da transferência de soberania do território para o PAIGC) (1).
Os periquitos do pós-guerra
Depois dum período de aclimatação do pessoal da minha Companhia à Guiné, no Cumeré, chegara a hora de cumprirmos a missão fulcral que ali nos levara: substituir a Companhia de Comandos e Serviços (CCS) do Batalhão 4612/72, que se encontrava em Mansoa há mais de dois anos.
Pelo que, naquele fim de tarde de Agosto de 1974, saímos do Cumeré numa ordenada coluna auto. Cerca de meia hora depois sentimos as viaturas a abrandar, e começamos a ouvir, cada vez mais clara e intensamente, longos e arrepiantes pios, semelhantes aos que soltam os pintaínhos:
- Piu, Piu, Piu!!!...- Ena, tanta passarada reunida nas copas das árvores aqui à volta, devem ser mais de mil bicos, que originam este chilrear infernal - pensei eu.
Pus a cabeça de fora da cobertura da Berliet para ver melhor. Não havia árvore nenhuma ali! Então, baixei a cabeça e vi aquilo.
Entre as imensas manifestações que me foram dadas ver (ao vivo!), esta foi inequivocamente uma das cenas mais impressionantes e marcantes que me aconteceram. Julguei, por largos momentos, ter entrado nos domínios dum mundo irreal de fantasia cinematográfica ianque (género Apocalipse Now). Excessivamente incrível para ser verídico.
Afinal a piadura toda, resultava da recepção que os duzentos e tal velhinhos, que íamos render – já bem bebidos, amontoados e dependurados uns nos outros -, nos recebiam em apoteose delirante, como mandava a praxe.
Para eles, nós – os periquitos ou piras -, éramos, para todos os efeitos, os mais reles, insignificantes e desprezíveis piras de toda a tropa da Guiné e do mundo inteiro.
Viam-se cartazes com diversos escritos alegóricos:
- Bem-vindos, periquitos, ao inferno dos vivos!
- Aqui, morrer é o único meio de voltares para casa mais cedo.
- Aqui entras de pé e vais pró Continente deitado num caixote, etc.
Também não faltava uma câmara de TV (uma imitação feita com um velho caixote de madeira), e as respectivas entrevistas fúnebres, extensas e desconexas.
O efeitos do álcool e dos vinte e muitos meses de mato faziam das suas. Os festejos eram ambíguos, umas vezes alegres, outras tétricos. Alguns soldados riam e choravam dizendo coisas macabro-hilariantes, com piadas de todos os tipos: disparatadas, indignificantes e, por vezes, insultuosas.
A imaginação vagueava por ali, vendo-se várias urnas fechadas (mais caixotes com cruzes desenhadas em cima) e simulações de funerais que, eventualmente, seriam dos nossos cadáveres…
Isto tudo passou-se já depois do 25 de Abril de 1974! Já a guerra tinha sido dada como finda! Isto não é ficção! Aconteceu mesmo!(3)
_______
Notas de L.G.
(1) vd. post de 21 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCIV: Eu estava lá, na entrega simbólica do território (Mansoa, 9 de Setembro de 1974)
(2) Vd. post de 1 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVII: Cancioneiro de Mansoa (2): Guiné, do Cumeré a Brá
(...) Enfim, surge um aglomerado
De pavilhões pré-fabricados,
Cumeré, dizia uma placa,
Havia mato por todos os lados.
Após alojado e alimentado,
Acerquei-me da cerca de arame
E pelo que vi, constatei arrepiado:
“Isto aqui era o nosso Vietname”.
Dei umas voltas pelas tabancas
Naqueles dias de aclimatação,
Os velhinhos gozavam e diziam;
- Viv’à liberdade de circulação!
E, continuavam com as bocas:
- Ó periquitos, que por aí andais...
Aí fora, há umas semanas atrás...
O turra comia-vos, tal com’estais!
Aqueles velhinhos enrugados,
Tez enegrecida e voz de bagaço,
De idade, vinte e poucos anos
Pareciam talhados de puro aço.
Um dia, novo destino: Mansoa!
Er’a hora de rendermos o Batalhão
Depois... entregar tudo ao PAIGC!
Foi a nossa derradeira missão!
(...)
(3) Este testemunho do nosso ranger é muito interessante, obrigando-nos a reflectir e a especular sobre o estranho comportamento que atingia a velhice, completamente apanhada pelo clima, na hora da rendição pelos periquitos... Muitos de nós passaram por estas cenas, enquanto periquitos, e voltaram a repeti-las, enquanto velhinhos...
São uma extensão das violentas praxes dos militares, fundamentais para a criação do espírito de corpo e reforço da capacidade de resistência à exposição ao perigo, à captura pelo IN, à morte, à humilhação, à derrota... Julgo que do outro lado, do lado dos combatentes do PAIGC, também as havia: faz parte das culturas guerreiras (dos índios da América do Norte aos felupes do Cacheu)... A ideologia (revolucionária) não chegava para os homens (e as mulheres) do PAIGC darem a vida, arriscarem a sua integridade física, perderem a sua liberdade no caso de captura poelos tugas... Os tipos do PAIGC usavam mezinhos tal como os meus soldados fulas da CCAÇ 12...
Nós, tugas, tínhamos também as nossas praxes e rituais para exorcizar o medo, para reforçar a nossa crença da invulnerabilidade do nosso corpo... Ora, nada como evocar e desafiar a morte, invectivar Deus e o Diabo, fazer bravatas, armar-se em fanfarrão, inocular ainda mais medo aos pobres diabos que chegavam ao mato, o mítico mato da Guiné...
São também ritos de passagem: os mais velhos inciando os mais novos, transmitindo-lhes valores como solidariedade, coragem, determinação, sacrifício... Todos fomos heróis e cobardes, velhinos e periquitos, deuses e homens... O problema é que, quando desembarcámos no cais de ALcântara, em Lisboa, já não éramos mais os mesmos... Não se foi impunemente para a Guiné, para o mato, para a guerra, para aquela guerra... Recorde-se que muitos de nós tiveram, no mínimo, 36 meses de tropa... Ora três anos representam (ou representavam na época) 6% do tempo da nossa vida activa (dos 15 aos 65)...
© Humberto Reis (2006)
Dos cadernos do Eduardo Magalhães Ribeiro, ex-furriel miliciano de operações especiais, da CCS do BCAÇ 4612 (que esteve em Mansoa por escassos dias, cabendo-lhe a honra de arriar a nossa bandeira em 9 de Setembro de 1974, por ocasião da transferência de soberania do território para o PAIGC) (1).
Os periquitos do pós-guerra
Depois dum período de aclimatação do pessoal da minha Companhia à Guiné, no Cumeré, chegara a hora de cumprirmos a missão fulcral que ali nos levara: substituir a Companhia de Comandos e Serviços (CCS) do Batalhão 4612/72, que se encontrava em Mansoa há mais de dois anos.
Pelo que, naquele fim de tarde de Agosto de 1974, saímos do Cumeré numa ordenada coluna auto. Cerca de meia hora depois sentimos as viaturas a abrandar, e começamos a ouvir, cada vez mais clara e intensamente, longos e arrepiantes pios, semelhantes aos que soltam os pintaínhos:
- Piu, Piu, Piu!!!...- Ena, tanta passarada reunida nas copas das árvores aqui à volta, devem ser mais de mil bicos, que originam este chilrear infernal - pensei eu.
Pus a cabeça de fora da cobertura da Berliet para ver melhor. Não havia árvore nenhuma ali! Então, baixei a cabeça e vi aquilo.
Entre as imensas manifestações que me foram dadas ver (ao vivo!), esta foi inequivocamente uma das cenas mais impressionantes e marcantes que me aconteceram. Julguei, por largos momentos, ter entrado nos domínios dum mundo irreal de fantasia cinematográfica ianque (género Apocalipse Now). Excessivamente incrível para ser verídico.
Afinal a piadura toda, resultava da recepção que os duzentos e tal velhinhos, que íamos render – já bem bebidos, amontoados e dependurados uns nos outros -, nos recebiam em apoteose delirante, como mandava a praxe.
Para eles, nós – os periquitos ou piras -, éramos, para todos os efeitos, os mais reles, insignificantes e desprezíveis piras de toda a tropa da Guiné e do mundo inteiro.
Viam-se cartazes com diversos escritos alegóricos:
- Bem-vindos, periquitos, ao inferno dos vivos!
- Aqui, morrer é o único meio de voltares para casa mais cedo.
- Aqui entras de pé e vais pró Continente deitado num caixote, etc.
Também não faltava uma câmara de TV (uma imitação feita com um velho caixote de madeira), e as respectivas entrevistas fúnebres, extensas e desconexas.
O efeitos do álcool e dos vinte e muitos meses de mato faziam das suas. Os festejos eram ambíguos, umas vezes alegres, outras tétricos. Alguns soldados riam e choravam dizendo coisas macabro-hilariantes, com piadas de todos os tipos: disparatadas, indignificantes e, por vezes, insultuosas.
A imaginação vagueava por ali, vendo-se várias urnas fechadas (mais caixotes com cruzes desenhadas em cima) e simulações de funerais que, eventualmente, seriam dos nossos cadáveres…
Isto tudo passou-se já depois do 25 de Abril de 1974! Já a guerra tinha sido dada como finda! Isto não é ficção! Aconteceu mesmo!(3)
_______
Notas de L.G.
(1) vd. post de 21 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCIV: Eu estava lá, na entrega simbólica do território (Mansoa, 9 de Setembro de 1974)
(2) Vd. post de 1 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVII: Cancioneiro de Mansoa (2): Guiné, do Cumeré a Brá
(...) Enfim, surge um aglomerado
De pavilhões pré-fabricados,
Cumeré, dizia uma placa,
Havia mato por todos os lados.
Após alojado e alimentado,
Acerquei-me da cerca de arame
E pelo que vi, constatei arrepiado:
“Isto aqui era o nosso Vietname”.
Dei umas voltas pelas tabancas
Naqueles dias de aclimatação,
Os velhinhos gozavam e diziam;
- Viv’à liberdade de circulação!
E, continuavam com as bocas:
- Ó periquitos, que por aí andais...
Aí fora, há umas semanas atrás...
O turra comia-vos, tal com’estais!
Aqueles velhinhos enrugados,
Tez enegrecida e voz de bagaço,
De idade, vinte e poucos anos
Pareciam talhados de puro aço.
Um dia, novo destino: Mansoa!
Er’a hora de rendermos o Batalhão
Depois... entregar tudo ao PAIGC!
Foi a nossa derradeira missão!
(...)
(3) Este testemunho do nosso ranger é muito interessante, obrigando-nos a reflectir e a especular sobre o estranho comportamento que atingia a velhice, completamente apanhada pelo clima, na hora da rendição pelos periquitos... Muitos de nós passaram por estas cenas, enquanto periquitos, e voltaram a repeti-las, enquanto velhinhos...
São uma extensão das violentas praxes dos militares, fundamentais para a criação do espírito de corpo e reforço da capacidade de resistência à exposição ao perigo, à captura pelo IN, à morte, à humilhação, à derrota... Julgo que do outro lado, do lado dos combatentes do PAIGC, também as havia: faz parte das culturas guerreiras (dos índios da América do Norte aos felupes do Cacheu)... A ideologia (revolucionária) não chegava para os homens (e as mulheres) do PAIGC darem a vida, arriscarem a sua integridade física, perderem a sua liberdade no caso de captura poelos tugas... Os tipos do PAIGC usavam mezinhos tal como os meus soldados fulas da CCAÇ 12...
Nós, tugas, tínhamos também as nossas praxes e rituais para exorcizar o medo, para reforçar a nossa crença da invulnerabilidade do nosso corpo... Ora, nada como evocar e desafiar a morte, invectivar Deus e o Diabo, fazer bravatas, armar-se em fanfarrão, inocular ainda mais medo aos pobres diabos que chegavam ao mato, o mítico mato da Guiné...
São também ritos de passagem: os mais velhos inciando os mais novos, transmitindo-lhes valores como solidariedade, coragem, determinação, sacrifício... Todos fomos heróis e cobardes, velhinos e periquitos, deuses e homens... O problema é que, quando desembarcámos no cais de ALcântara, em Lisboa, já não éramos mais os mesmos... Não se foi impunemente para a Guiné, para o mato, para a guerra, para aquela guerra... Recorde-se que muitos de nós tiveram, no mínimo, 36 meses de tropa... Ora três anos representam (ou representavam na época) 6% do tempo da nossa vida activa (dos 15 aos 65)...
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