sábado, 24 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3788: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (1): Depoimento de Manuel Reis (ex-Alf Mil, CCav 8350)

Mensagem de Manuel Reis
ex-Alf Mil da CCAV 8350 (1972/74)
(Esteve em Guileje e Gadamael em 1973;
vive hoje em Aveiro)

1. Comentário à análise do Tenente Aviador António Martins de Matos e alguns esclarecimentos. (*)


Caro Luís,

Não posso deixar de manifestar, por ti e pela tua equipa, o meu grande apreço e consideração. Camaradas que nunca tiveram oportunidade de libertar os seus fantasmas da Guerra têm, graças a ti, um espaço onde o podem fazer. Bem - hajas.

Não era minha intenção abordar os, já um pouco estafados, temas de Guileje e Gadamael -Porto. Participei em dois documentários televisivos sobre o tema e pouco mais gostaria de acrescentar. No entanto, após a leitura do texto de António de Matos (ex-Ten Pilav), sinto-me na obrigação moral de o fazer por, na minha perspectiva, algumas considerações que faz, não coincidirem com a realidade e muitos dos seus juízos de valor carecerem de sustentação factual.

A memória daqueles que tombaram em Guileje e Gadamael assim mo exige.

Agradar-me-ia escrever sobre o percurso da CCAV 8350 “Para além de Guileje e Gadamael -Porto”, sobre as dificuldades que tivemos de ultrapassar, no são convívio com as populações e no processo de descolonização em Cumbijã. Fica para a próxima.

Quando fui para a Guerra Colonial sabia para o que ia. O espírito de grupo formado durante a instrução e os condicionalismos familiares impediram que tomasse outra decisão. Aceitei as regras do jogo e cumpri a minha missão sem trair ninguém. Coloquei sempre como objectivo principal proteger os que de mim dependiam. A minha relação com todos assentava numa respeitosa e sã camaradagem.

2. Guilege e Gadamael-Porto “ vistos de terra”

Vivi o inferno sufocante de Guileje e a odisseia tenebrosa de Gadamael. Foram realidades distintas, mas tiveram um ponto comum: ambas foram abandonadas ao seu destino, embora Gadamael - Porto viesse a ser fortemente apoiada mais tarde, mas os estragos foram irreparáveis.

O Plano de evacuação de Gadamael chegou a ser colocado em acção sob a coordenação de Leal de Almeida (major), enviado para o local com esse objectivo e que só não se concretizou devido ao apoio massivo das forças especiais, das quais destaco o Batalhão de Pára-quedistas.

Guilege “visto de terra”, em 22 de Maio de 73, está descrito pormenorizadamente no livro de Coutinho e Lima, pp. 74-76. Perante a recusa de ajuda de Bissau, Coutinho e Lima tinha de decidir, o tempo era seu inimigo. Ou retirava ou permanecia. Qualquer decisão tinha os seus riscos. É verdade que retirar nas condições descritas poderia transformar-se no maior desastre da Guiné, como diz António de Matos, mas permanecer lá poderia transformar Guilege num aterrador cemitério.

Coutinho e Lima sabia que esperar pelo substituto nada resolveria, à medida que o tempo passava a situação agravava-se.

Pude testemunhar em Gadamael-Porto a ineficácia do novo Comandante face à situação criada (abordarei o assunto mais à frente). Coutinho e Lima, ao decidir-se pela retirada, define-se como um militar competente e corajoso.

Competente, porque soube avaliar correctamente a situação e conseguiu tirar o melhor proveito desta, aproveitando o factor surpresa. Corajoso, porque a sua vida militar terminaria ali e as consequências para a sua família seriam dolorosas. Ele sabia-o, mas optou por retirar e, deste modo, salvar as pessoas que estavam sob o seu comando (militares e civis).

É natural que para vós, ex-combatentes da Guiné, este momento da decisão nada vos diga, mas quem presenciou, sente, ainda hoje, alguma comoção.

2.1. Permito-me esclarecer o seguinte a António de Matos:
- Não é verdade que desde 6 de Maio de 73 não se efectuasse qualquer saída do aquartelamento. Coutinho e Lima refere no seu livro, pp. 32,33, saídas nos dias 1, 4, 7, 11, 14 e 16 de Maio e cita as suas fontes de informação: documento elaborado pela 4ª Repartição do CTIG.

- Guileje, no dia 21, esteve cercado. A parte norte, na direcção do Mejo (donde não se tinham registado quaisquer ataques) estava ocupada por grupos do PAIGC, pertencentes ao 3º Corpo do Exército. A população chegou a ser atacada, quando se dirigiu à bolanha para recolher água.

-Não houve qualquer debandada. A retirada foi ordenada, conforme ilustram as fotografias do livro de Coutinho e Lima, p.77. Houve, de facto, algum barulho feito pela população, que procurava transportar o máximo dos seus haveres.

Pode-se levantar aqui a questão: Porque não atacou o PAIGC? Isto, ainda hoje, após conversas havidas em Dezembro de 1995 com o Comandante Nino (Comandante da Região Militar Sul) e com o Comandante da Logística, constitui um mistério para mim.

Nino (Comandante da Operação) deixa transparecer algum desconforto com a questão e diz que nada fazia prever a nossa saída, pelo facto de durante toda a noite termos feito imenso fogo com os obuses. Já o Comandante da Logística, mostrando o mesmo desconforto, responsabiliza o Major, Comandante do Sector. Este viria posteriormente a ser fuzilado.

Estamos perante duas hipóteses: Ou os guerrilheiros do PAIGC, que permaneciam na zona, se afastam do local para outro mais afastado do aquartelamento, onde pudessem descansar mais tranquilamente e são surpreendido pela nossa saída, ou a possível existência de familiares na população inibe-os de atacar.

Parece-me, no entanto, pouco credível esta segunda hipótese. O que fica bem claro era a intenção de nos atacar, expresso no descontentamento manifestado pelos mais altos responsáveis do PAIGC. O fuzilamento do Major, Comandante do Sector, reforça esta ideia.

- Era completamente impossível desarticular a Artilharia do inimigo com a nossa Artilharia, conforme explica Coutinho e Lima no seu livro p. 78.
Devo acrescentar que não era só a Artilharia que fazia mossa, a utilização frequente dos morteiros 82 e RPGs era bastante limitadora da nossa movimentação dentro do próprio aquartelamento (o mesmo se veio mais tarde a verificar em Gadamael).

Em algumas flagelações o PAIGC utilizou todo o tipo de armamento tornando difícil verificar donde “chovia” e o quê. Aconteceu até, sermos flagelados no momento em que os FIAT – 91 nos sobrevoavam.

Desconheço o alcance da artilharia do PAIGC mas permito-me duvidar da sua inexistência no território da Guiné, nas proximidades da Guileje. O que ninguém me consegue convencer é que o fogo de RPG fosse efectuado do lado lá da fronteira e viesse atingir Guilege. A menor distância, em linha recta, é de 7 km (carta militar de Guilege, blogue de Luís Graça).

- Além de “mau gosto” foi lamentável e no mínimo infeliz a resposta que António de Matos dá ao Alfaiate (Furriel Transmissões) quando este, em situação de desespero, lhe pede auxílio. Disse-o com raiva, refere António de Matos.

Guilege “ visto do ar” era de facto outra coisa! Guilege “ visto do ar” era uma ficção. Não existiu simplesmente!

Recordo uma conversa entre dois pilotos numa das suas missões (dia 20 ou 21): “Olha que isto é mesmo a sério”. Nesse momento o aquartelamento estava em chamas.

- Durante os 6 meses que estive em Guileje até 18 de Maio de 73, fomos flagelados algumas vezes, o que aliás sucedera com as companhias anteriores, mas era muito raro que qualquer granada caísse dentro do aquartelamento.

No entanto, a partir de 18 de Maio de 73, algo mudou nos processos de actuação do PAIGC. Ataques ao aquartelamento eram feitos a qualquer hora do dia e não só ao cair da tarde, como anteriormente. O tiro era preciso e ajustado. Existiam orientadores da direcção de fogo colocados na copa das árvores e devidamente protegidos pela infantaria, que para o efeito tinha aberto valas na mata (só mais tarde em Gadamael tivemos conhecimento disto). Artilheiros estrangeiros, na sua maioria cubanos, ocupavam-se de toda a coordenação de fogo.

A guerra do bate-e-foge, porque vem aí a aviação, era assunto enterrado. A guerra de guerrilha terminara e estávamos no limiar da guerra clássica. A presença de carros de combate na fronteira, prontos para entrar em acção, era já dos assuntos mais falados.

- O Ten Pilav António de Matos demonstra um certo desconhecimento do que se passou em Guilege, no período de 18 de Maio a 22 de Maio de 73. Não me parece, por isso, que tenha o perfil ideal para julgar qualquer militar da CCav 8350 e muito menos quem, no terreno, teve de decidir: Major Coutinho e Lima.

Poderia ter ocorrido aqui uma tragédia de dimensões difíceis de imaginar: Não era só o pessoal de Guilege que estava em causa. Qualquer reforço terrestre vindo do exterior teria imensas dificuldades em chegar a Guileje. Se tentassem vir pela estrada de Gadamael (que era o mais natural e lógico), logo nas imediações de Gadamael encontravam uma forte oposição do PAIGC.

Para impedir qualquer apoio a Guilege estavam montadas 20 armadilhas, comandadas electricamente, o que, aliás, aconteceu nas imediações de Guilege. A outra hipótese seria a utilização do trilho que nos serviu na retirada, mas a probabilidade de o poderem fazer era praticamente nula, nessa altura. Só rompendo o cerco como fizeram em Guidage conseguiriam entrar em Guilege, com custos em vidas humanas difíceis de quantificar.

3. Gadamael-Porto

A CCav 8350 chega a Gadamael por volta das 12 horas. Aí já se encontra o novo Comandante do COP5. Coutinho e Lima é detido e passados 3 dias é conduzido para Bissau. Os militares da CCav 8350 passam a ser tratados de uma maneira discriminatória e até desumana.

Os grupos da CCav 8350 passam a sair diariamente para efectuar patrulhamentos à volta do aquartelamento e são vítimas de emboscadas, sem grandes consequências, enquanto as forças do PAIGC fazem protecção avançada à instalação das suas bases de fogo. Isto era evidente, exigia-se outro tipo de intervenção, para que o desastre não acontecesse. Guilege estava fresco na memória de todos.

As condições físicas e anímicas da CCav 8350 eram deploráveis. Obrigados pelo novo Comandante do COP5, todos os dias, a esforços violentos, arrastam-se pelo mato, caem de exaustão, vomitam e muitos encontram-se em estado de desidratação avançada, provocada por constantes diarreias. A tudo isto permanecem insensíveis as chefias militares.

No dia 31 de Maio, de manhã, o novo Comandante dirige-se a Cufar. Para ele, a situação de Gadamael estava controlada. Antes, porém, ordena-me que, nessa tarde, faça um patrulhamento nas imediações de Sangonhá.

O festival de morteiro 82 (deles) e 81 (nosso) começa por volta das 14.30 e as granadas transitam, nos dois sentidos, por cima das nossas cabeças. Pretendo voltar ao aquartelamento no final da tarde, o que me é recusado. Permaneço emboscado com dois grupos de combate durante toda a noite. Perante a dimensão da flagelação, tenho a percepção que algo de muito grave terá sucedido.

Regresso ao aquartelamento, por volta das 12 horas do dia 1 de Junho, sem autorização, porque não conseguia estabelecer contacto com o quartel. Sou informado pelo Seabra (Alf. Mil CCav 8350) da dimensão da tragédia humana e no aquartelamento não permanecem mais de 30 homens, dispersos pelas valas e pelos abrigos.

Entretanto, o novo Comandante, alertado para a situação, regressa no próprio dia 1 de Junho de Cufar e recebe-me junto à pista. É a primeira vez que me trata como um ser humano e indica-me os procedimentos a tomar.

A situação é incontrolável. O pânico instalara-se no aquartelamento e as NT fugiram desordenadamente. Uns refugiaram-se na mata circundante ao aquartelamento e só regressaram ao início da noite. Outros, a maioria, atravessaram o rio na direcção de Cacine e foram evacuados com a ajuda dos fuzileiros, tendo um deles morrido na travessia do rio.

Nesse dia as tropas do PAIGC dispõem da oportunidade soberana de tomar de assalto o aquartelamento sem grandes riscos. (Confessar-me-ia, em Agosto de 74, no aquartelamento de Cumbijã, um dos quadros políticos do PAIGC terem cometido aí o seu maior erro estratégico).

No dia 2 de Junho, uma flagelação atinge o abrigo das transmissões, onde se encontravam os dois Comandantes de Companhia, que são feridos e, posteriormente evacuados pelos fuzileiros.

Ainda no dia 2 de Junho, o General Spínola vai ao aquartelamento inteirar-se da situação, mas não chega a descer do helicóptero, perante os gritos desesperados de alerta dum soldado deitado à minha frente (numa das valas da enfermaria) e a corrida desenfreada do Comandante do COP 5. Salvam-se por uma fracção de segundo.

Há um espaço temporal em que não existe um único Oficial do Quadro a assumir esta situação. Só no final da tarde, o Adjunto do Comandante chega a Gadamael e assume o Comando.

O novo Comandante do COP5 não voltou a ser visto em Gadamael, pelo menos durante a permanência da CCAV 8350, meados de JULHO de 73.

No dia 4 de Junho, 11 militares mal armados, saem para o mato pressionados pelo novo Comandante da CCav 8350 e são emboscados a 500 metros do arame farpado. Resultado: 4 mortos e um ferido grave.

Ainda no dia 4 de Junho chega a 1ª Companhia de Pára-quedistas para reforço das nossas tropas. São colocados numa vala na extremidade da pista. Sou também enviado para lá com o meu grupo de combate, sem eu saber porquê e para quê.

Os Pára-quedistas sentem-se impotentes perante tal situação. Mal saem da vala para efectuar qualquer patrulhamento são de imediato flagelados e impedidos de sair. Apesar disso a sua presença é benéfica para as nossas tropas, que pela 1ª vez desde 18 de Maio, sentem alguma protecção.

Esta situação de impedimento de saída do aquartelamento acaba por ser ultrapassada, uns dias mais tarde, com a chegada das restantes companhias que integravam o Batalhão. A eles se deve a não ocupação de Gadamael pelo PAIGC.

Muito mais haveria para contar. Talvez um dia.

4-Conclusão:

Bem podíamos esperar, enterrados em Guileje, pela perspicácia deste novo Comandante e pelas ajudas que nem sequer prometeram a Coutinho e Lima.

5-Considerações finais:

Foi minha intenção, apenas e só, repor a verdade dos factos. A dignidade e o profissionalismo dos intervenientes neste conflito não foram colocados em causa. São intocáveis.

Deixo o meu sincero apreço pelos camaradas da Força Aérea que, enquanto não tiveram limitações de voo, foram inexcedíveis. Sempre soubemos reconhecê-lo.

Eram recebidos, em plena pista, pelo Comandante do COP5 e/ou Companhia, que se faziam acompanhar por uma menina, vestida a rigor, transportando numa bandeja uma garrafa de whisky, uma garrafa de água e um copo.

Um abraço amigo para todos aqueles que, de uma maneira ou doutra, combateram na Guiné.


Manuel Reis

__________


Notas de vb:
1. Sublinhados do editor.


2. Artigos relacionados em


(*) Vd. postes de:
23 de Janeiro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3783: FAP (1): A diferença entre o desastre e a segurança das tropas terrestres (António Martins de Matos, Ten Gen Pilav Res)

23 de Janeiro de 2009 >
Guiné 63/74 - P3782: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (18): Obrigou-se o PAIGC a combater em Gadamael... (João Seabra)






Vd. ainda o poste de 16 de Dezembro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3632: Álbum das Glórias (49): O meu ex-Cap Mil Abel Quintas, da CCAV 8350, os Piratas de Guileje (J. Casimiro Carvalho)

Guiné 63/74 - P3787: Poemário do José Manuel (25): A Morte

Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250 (1972/74) >

Foto e poema: © José Manuel (2008). Direitos reservados.

1. Mensagem de 28 de Fevereiro de 2008, que o José Manuel Lopes me enviou na véspera de eu partir para Bissau, para participar no Simpósio Internacional de Guileje (1-7 de Março de 2008)


Um abraço, camarada, uma óptima viagem até Guileje (Guiledje!). Leva um pouco
da minha saudade e nostalgia. Mas ainda hei-de um dia voltar aquela estrada.


2. Poemário do José Manuel (25) (*)

A Morte
Senti-la passar ao lado,
em forma de assobio
cruel,
com ela levando
aqueles
que nunca voltam,
sentir
o sabor amargo
de enxofre na garganta,
a angústia de despedidas
sem um acenar de mão
daquelas vidas perdidas...
e há coisas
que não se contam
e morrem no coração.

Guiné 1973
josema
_________

Nota de L.G.

(*) Vd. último poste da série > 17 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3468: Poemário do José Manuel (24): Sabes o que é morrer... ?

Guiné 63/74 - P3786: Dicionário fula / português (Luís Borrega) (2): Gô, Didi, Tati, Nai, Joi.../ Um, Dois, Três, Quatro, Cinco...






Continuação da publicação do Dicionário Fula/Português, organizado pelo nosso camarada Luís Borrega, ex-Fur Mil Cav MA da CCAV 2749/BCAV 2922 (Piche, 1970/72) (*).

Como ele já nos explicou, esta singela recolha de vocábulos em dialecto fula (e respectiva tradução em português) resultou de longas e pacientes conversas com o seu amigo Cherno Al Hadj Mamangari, que vivia em Cambor, a nordeste de Piche.

O título Al Hadj é dado ao crente que já foi a Meca (**).

_________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste anterior desta série > 24 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3785: Dicionário fula / português (Luís Borrega) (1): Nafinda, nháluda, naquirda... Bom dia, boa tarde, boa noite...

(**) 7 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - L: Mancarra, a semente do diabo... (Luís Graça)

(...) Excertos do diário de um tuga. L.G. > 8 de Março de 1970 > Sansancuta.

É interessante notar que na mitologia fula a mancarra (amendoím) esteja associada ao Diabo em pessoa (Iblissa). O cherno Umaru que dirige uma pequena escola nesta tabanca e que se prepara , como bom muçulmano devoto (tijanianké), para fazer no próximo ano a sua peregrinação a Meca (Iado Hadjo, em fula) e assim juntar ao seu nome o título venerando de al-hadj, contou-me , por intermédio do Suleimane (o meu braço direito, guarda-costa, intérprete, cozinheiro, secretário – é um dos nossos poucos soldados que sabe ler e escrever português, daí ser soldado arvorado e em breve 1º cabo), contou- me ele a seguinte estória:
- Um dia Iblissa (o Diabo) quis desafiar a autoridade divina de Mohamadu (o Profeta Maomé). Tinha chovido muito e o Profeta dissera que então nasceriam todas as sementes que fossem lançadas à terra. O Diabo, em vez de uma semente de milho ou de arroz, deitou leite numa cova que ele próprio tinha feito no chão. Mohamadu, intrigado e inquieto com a provocação de Iblissa, foi falar com Alá, que lhe mandou guardar uma semente. E ao fim desse tempo, não é que do leite nasceu mesmo a mancarra ?

Recordo que Amílcar Cabral, na Estação Agronómica de Fá-Mandinga, fez estudos sobre vários tipos de semente de amendoím. E já então ele denunciava o perigo que representava, para o desenvolvimento da agricultura na Guiné, a monocultura desta oleaginosa, um típico produto do imposto pelo colonialismo aos guinéus.(...)

Guiné 63/74 - P3785: Dicionário fula / português (Luís Borrega) (1): Nafinda, nháluda, naquirda... Bom dia, boa tarde, boa noite...






1. Mensagem do Luís Borrega, ex-Fur Mil Cav MA da CCAV 2749/BCAV 2922 (Piche, 1970/72) (*), com data de 17 do corrente:

Bom dia camarada e amigo Luis Graça, ainda não cumpri a segunda parte da [minha obrigação, decorrente da] inscrição na TABANCA GRANDE (que é o envio de uma história), porque me encontro doente.

Safei-me na Guiné do paludismo, mas não me safei agora da gripe.

Em relação ao Dicionário Fula/Português, como só agora comprei um PC portátil especialmente para me ligar à Tabanca, ainda ando na informática tipo galo pica no chão. Agradeço que sejam vocês a tratar de pôr o dicionário operacional no Blogue.

Também tenho histórias com os macacos cães (Babuínos), que oportunamente contarei!

Alfa Bravo

Luis Borrega

2. Comentário de L.G.:

O dicionário Fula / Português (sob a forma de uma dezena de listas de vocábulos e expressões em dialecto fula e o corresponente significado em língua portuguesa) é um trabalho de recolha feito pelo Luís Borrega. Chegou-nos todavia por mão do nosso camarada e amigo Mário Beja Santos.

Escrevi ao Mário, com conhecimento ao Luís, o seguinte:

"Posso fazer a partição e a edição da imagem, de modo a torná-la legível. Ou tentar arranjar um voluntário (entre a malta da nossa Tabanca Grande) para transcrever para word e (re)organizar o texto (por ex., ordem alfabética, fula/português e português/fula)... Recebi cinco documentos digitalizados em formato.jpg. Obrigado, aos dois".

Ao Luís Borrega mandei a seguinte mensagem:

"Sê bem vindo ao ... admirável mundo novo [da Internet] ! Mais vale um PC portátil do que... uma G3. Vamos avançar com o teu dicionário. Abraço. LG"

Como nos explica no 1º documento que se reproduz em cima, o Luís Borrega passou longas horas a conversar com o prestigiado Cherno Al Hadj Mamangari, de Cambor, um chefe religioso muçulmano com real influência em toda a região do Gabú e até além fronteiras. Morreu em 2005.

Não é (nem pretende ser) um trabalho científico, mas o nosso camarada revela aqui grande sensibilidade cultural, além de muita paciência e perseverança, qualidades essenciais em qualquer investigador.

A recolha do Luís Borrega é digna do nosso apreço e honra as nossas duas culturas, a portuguesa e a guineense. Aqui ficam as primeiras listas de vocábulos correntes, em fula, e da sua correspondência em português.

Jarama!...

(Continua)
__________

Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 4 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3699: Tabanca Grande (108): Luís Borrega, ex-Fur Mil Cav da CCAV 2749/BCAV 2922, Piche, 1970/72

(...) "Ex Furriel Miliciano de Cavalaria com o curso de minas e armadilhas, mobilizado para a Guiné pelo Regimento de Cavalaria 3 de Estremoz, integrando a Companhia de Cavalaria 2749 / Batalhão de Cavalaria 2922, colocado no sector L4, no leste da Guiné em Piche.

"A minha companhia tinha os destacamentos CAMBOR, Ponte de RIO CAIUM e mais tarde reocupámos o destacamento de BENTEM. A nossa área de operações era Piche, Canquelifá e Buruntuma" (...).

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3784: Tabanca Grande (109): Manuel Rodrigues, ex-Fur Mil Mec Auto Rodas da CCAÇ 3491, Dulombi e Galomaro, 1971/74



Manuel Rodrigues, ex-Fur Mil Mec Auto Rodas da CCAÇ 3491, Dulombi e Galomaro, 1971/74

1. Em 20 de Janeiro de 2009, Luís Graça deixou este comentário no poste Guiné 63/74 - P3762: Fauna & flora (14): O que nós comíamos sem saber (Manuel Rodrigues, ex-Fur Mec, CCAÇ 3491, Dulombi e Galomaro, 1971/74) (*):

Em resposta à minha pergunta: "Este texto significa também a intenção de fazeres parte da Tabanca Grande ? Se sim, serás muito bem vindo", o Rodrigues respondeu-me o seguinte:

Ainda não estou reformado, por isso mesmo não tenho grande disponibilidade, no entanto agradeço a publicação do artigo que enviei.

As fotos, de acordo com as normas, para poder fazer parte da tabanca grande, seguirão tão breve quanto possível.

Dulombi fazia parte do Leste, era o quartel mais próximo de Madina do Boé, onde foi declarada a independência da Guiné, pelo PAIGC, muito antes do 25 de Abril.

Na história da luta armada, o primeiro grande desastre, das Tropas Portuguesas, provavelmente o mais noticiado, aconteceu na travessia do rio Corubal, na retirada para norte, de tropas estacionadas no Dulombi, também a Norte do mesmo rio, da companhia que esteve no Dulombi, antes da 2700.

A história da jangada afundada.

Parece-me, que a verdadeira história da jangada afundada foi esquecida..., embora tenha tido uma enorme importância, na comunicação social, principalmente, fora de Portugal.

A jangada era improvisada, feita de bidões, e pelo que diziam nativos, no local, quando pretendiam fazer a travessia, a corrente era muito forte, pelo que só alguns atravessaram, provavelmente a nado...

Anel
Ex Fur Mec Auto Rodas, CCAÇ 3491, Dulombi e Galamaro, 1971/74


Disse Luís Graça:

Rodrigues:

Ficamos à tua espera... A Companhia a que referes (e que eram os vossos avozinhos), era a CCAÇ 2405 (1968/70), a que atencedeu a 2700 (1970/72)... Esta subunidade perdeu 17 homens no Cheche, na trevessia do Corubal. Ao todo foram 46 militares e 1 civil.

Este desastre, que ocorreu em 6 de Fevereiro de 1969 no decurso da Op Mabecos Bravios (retirada do quartel de Madina do Boé, menos de quatro meses de eu chegar à Guiné, em finais de Maio de 1969), está amplamente documento no nosso blogue, sobretudo na I Série (que vai de Abril de 2005 a Maio de 2006).

Um Alfa Bravo.
Luís


2. No dia 21 de Janeiro de 2009 o nosso camarada Manuel Rodrigues escrevia assim para a Tabanca Grande

Junto envio fotos conforme prometido.

Sabendo que estou a comunicar, com um bom sociólogo, e sabendo que nos dias de hoje, com a ajuda da ferramenta informática é possivel irmos em termos de investigação muito mais longe que há pouco tempo.

Parece-me possível confirmarmos cientificamente que a esperança de vida dos que passaram pela Guiné é inferior à media nacional.

É um tema que gostava de desenvolver/ver desenvolvido, estando contudo consciente que preciso de muita ajuda.

Com um pequeno inquérito e utilizando o QI2, talvez possamos tirar conclusões, relevantes para todos aqueles que por lá passaram!


3. Comentário de CV:

Caro Manuel Rodrigues, bem-vindo à nossa Tabanca Grande.
Em nome dos Editores e da restante Tertúlia estou a receber-te.
Tens na tertúlia um camarada da tua CCAÇ 3491, o Luís Dias, ex-Alf Mil, que tem colaborado regularmente na reconstituição da história da nossa passagem por terras da Guiné.
Esperamos também a tua colaboração, já que todos somos poucos para que outros não tenham que fazer aquilo que a nós compete, a história da Guerra Colonial, neste caso no TO do CTI da Guiné.

Deixo-te um abraço de boas-vindas.
CV
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 19 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3762: Fauna & flora (14): O que nós comíamos sem saber (Manuel Rodrigues, ex-Fur Mec, CCAÇ 3491, Dulombi e Galomaro, 1971/74)

Vd. último poste da série de 4 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3699: Tabanca Grande (108): Luís Borrega, ex-Fur Mil Cav da CCAV 2749/BCAV 2922, Piche, 1970/72

Guiné 63/74 - P3783: FAP (1): A diferença entre o desastre e a segurança das tropas terrestres (António Martins de Matos, Ten Gen Pilav Res)



O António Martins de Matos, ex-Ten Pilav (BA12, Bissalanca, 1972/74), hoje Ten Gen Pilav na reserva... Foto do blogue do nosso camarada
Victor Barata, Especialistas da Base Aérea 12, Guiné 65/74.Com a devida vénia...

O Victor reproduziu, no seu blogue (Sexta-feira, 16 de Janeiro de 2009 > 718 "A retirada de Guileje: um erro de 'casting', o comandante do COP 5"), o primeiro texto do António Matos, P3737, de 14 de Janeiro...Na introdução, o Victor Barata escreve o seguinte: "Não querendo menosprezar a opinião de cada um (julgo que para isto ainda existe democracia em Portugal...), não posso deixar de realçar aquela que na realidade classifico da mais íntegra visão dos factos relacionados com o tema, emitida pelo meu ilustre companheiro com quem partilhei algumas horas de voo nos ceús da Guiné: António Matos" (...).


Mensagem de António Martins de Matos, Ten Gen Pilav Res

[Subtítulos do editor vb]


Foi preciso ter sido acordado pelo livro do Cor Coutinho e Lima A retirada do Guileje, para vencer a inércia e escrever dois artigos sobre a Guiné (*).


(i) A às vezes esquecida e injustiçada Força Aérea Portuguesa (FAP) na Guiné

Não que essa vontade não se tivesse já manifestado anteriormente e por várias vezes, quase sempre por ver com que indiferença a Força Aérea é retratada, como se não existisse, como se servisse apenas para missões de apoio logístico/sanitário, para levar uns abastecimentos aqui e recolher os feridos e doentes acolá (alguns em estado grave, outros nem tanto).

E, no entanto, num cem (com c) número de vezes foi ela o fio da balança que significou a diferença entre o desastre e a segurança das forças terrestres.

Com excepção a um ou outro artigo onde se refere muito ao de leve o apoio da FAP a esta ou aquela operação, o que é comum encontrar são comentários do tipo “a aviação amordaçada”, “os aviões deixaram de voar”, “ já não nos apoiam”, “actuação interdita”...

E no entanto, nunca a FAP voou tanto como no período Abril-Setembro de 1973, por muitos reconhecido como o período mais violento da guerra da Guiné.

Faço aqui um parentesis para esclarecer que, como havia o boato de que a FAP não voava por causa do Strella, dava-nos um certo gozo passar a raspar sobre os telhados do QG e cidade de Bissau a 450 nós (850 km/h). Esta brincadeira só terminou quando foram fazer queixinhas ao Gen Spínola.

(ii) A Op Ametista Real


Exemplo da indiferença sobre o papel que a FAP desempenhou está bem patente num artigo do Gen Almeida Bruno sobre a operação Ametista Real, publicado neste blogue em 16 Agosto 2005, segundo as suas próprias palavras, “a operação de maior envergadura daquele tipo, fora do território nacional” (**).

No seu texto, há apenas um parágrafo onde a FAP é referida, e que diz:

“A Força Aérea iniciou um pesado bombardeamento, a que se seguiu o assalto. Um pouco à sorte, já que não se sabia onde ficava a base. E a sorte foi decisiva”.

Fica um pouco a incerteza de quem precisava da sorte, se a FAP, se as forças de assalto, se todos nós.

Fala no “posto de comando aéreo” onde as decisões são do comandante da operação e o piloto apenas faz de “condutor da avioneta”. (Não me lembro que tal posto de comando tenha existido). A pergunta para a qual não tenho resposta é a de saber, a haver, quem estava nesse posto de comando aéreo dado que o Ten Cor Bruno, o Maj Folques, os Cap Matos Gomes e António Ramos estavam no chão.

E termina a descrição da operação referindo sobre a retirada que “Foi um movimento lento, interrompido por vários e violentos combates, até que, pelas quatro da tarde, o inimigo abandonou o terreno”. Só, sem mais.

O leitor desprevenido ficará com a ideia que a FAP fez o bombardeamento inicial e com isso terminou a sua actuação. Nada mais errado.

Vamos aos factos:

No briefing feito na véspera, na sala de operações da Base de Bissalanca, o Ten Cor Bruno afirma que, o que precisa da FAP é o bombardeamento inicial e o manter-se em alerta durante o resto do dia para um eventual mas remoto pedido de apoio.
Afirma igualmente que não deixam nada nem ninguém em território inimigo, a haver mortos, “trazem-nos às costas”.

Na cabeça deste Tenente aviador, já um pouco cafrealizado (12 meses de comissão), o pensamento deixa escapar um “Manga di ronco próprio”, antecipando desde logo que irá ter uma tarde repousada.

À alvorada do dia seguinte descolam de Bissau 6 FIAT-G91, (como disse num outro texto, só existiam 6 pilotos de Fiat), cada um com 2 bombas de 750 libras. Após a descolagem, um dos FIAT-G91 (o meu amigo Pipoca) entra em rota de colisão com um jagudi, daí resultando numa falha parcial do motor, pelo que o piloto aborta a missão, volta para Bissau, larga as bombas em segurança no rio Geba e aterra de imediato na Base de Bissalanca; os restantes 5 prosseguem a missão conforme o planeado.

O bombardeamento em Cumbamori é executado com precisão, acertando nos paióis do PAIGC; para descobrir o objectivo as forças terrestres já não precisam de sorte, só têm que seguir as colunas de fumo.

Uma vez de volta e aterrados em Bissau, os pilotos de FIAT-G91 entram em alerta (significa ter os aviões armados e prontos a descolar até ao máximo de 10 minutos após o pedido de apoio).

Nada acontece até às 13 horas (verificou-se à posteriori que esta calmia se deveu ao facto dos paióis irem explodindo, um após o outro, o que impossibilitou movimentos terrestres, nossos e do IN).

Ao início da tarde dá-se o primeiro pedido de apoio, a que se sucede um segundo, um terceiro, ..., pedidos que se vão “sucedendo sucessivamente sem cessar”. As nossas tropas estão em retirada para o Guidage.

A situação no chão torna-se critica ao ponto do Maj Folques, entretanto ferido, nos dizer no rádio “Ó Tigres, não se vão embora que estes ... querem deixar-me aqui sozinho”.

Os pilotos já não descansam entre voos, limitam-se a sair de um avião e a entrar noutro entretanto preparado; na tentativa de acelerar a prontidão dos aviões, os mecânicos carregam as bombas à força de braço (cada bomba de 750 libras pesa uns 370 kilos).

Ao fim da tarde e com a capacidade da FAP a esgotar-se, uma parelha de FIAT-G91 ao entrar em contacto com a tropa em retirada, recebe a informação de que estão a ser fortemente alvejados “da orla da mata”.

Ora, observando de cima o local onde se desenrolam os combates, o terreno é do tipo savana, nas redondezas apenas existe uma única mata, do comprimento de um campo de futebol e talvez metade da sua largura.

É aí que os FIAT-G91 largam 4 bombas de 750 libras. De imediato o ataque às nossas forças termina.

Tem razão o Gen Bruno quando diz que “às quatro da tarde o inimigo abandonou o terreno”, não disse foi o porquê.


(iii) O ataque a Bissau... e uma noite de riso

Outro ponto em que se enganou foi na data da operação, 19 Maio e não 20 como refere; a 20 e no rescaldo da operação, a FAP foi, desta vez, chamada a proteger as “barcoletas” da Marinha no rio Cacheu (os marinheiros que desculpem o termo, mas era assim que as chamávamos).

À noite, em Bissau, as conversas são em voz baixa, quase sussurradas. Perguntámos o que aconteceu:
- Bissau foi atacada esta manhã, grandes rebentamentos que ecoaram por toda a cidade.

Quase de imediato o mistério é-nos desvendado; tinham sido as bombas do avião que nessa manhã chocara com o jagudi que, apesar de largadas no rio Geba com as respectivas cavilhas de segurança, tinham mesmo assim explodido, acordando o pessoal de Bissau e arredores, oficiais do QG incluídos.

Claro que não os desapontámos, se diziam que era ataque, é porque era mesmo (também sabíamos construir os nossos boatos).

Nessa noite muito nos rimos à volta de uma garrafa de whisky.

A operação Ametista Real foi um marco importante na história da Guiné.
Pelo que fizeram, o TenCor Bruno, o Maj Folques, os meus amigos Matos Gomes e António Ramos (infelizmente já desaparecido), bem como os Comandos Africanos, merecem ser recordados (***).

Não pretendo negar uma das missões importantes que a FAP deve desempenhar (apoiar as forças que estão no terreno).

Custa-me que o esforço dos que lá do alto, quase como anjos da guarda, deram e dão para apoiar as tropas terrestres, raramente sejam referido e muito menos reconhecido.

Em 10 meses (de Abril 73 e Janeiro de 74) e em apoio às forças terrestres a Força Aérea perdeu 8 aviões, com 4 pilotos mortos em combate.

Também merece ser lembrada.

António Martins de Matos


__________


Notas de vb:


(*) Vd. postes de

[Texto de 1995, retirado de Autores vários: Os Últimos Guerreiros do Império. Lisboa: Edições Erasmos. 1995. 72-75.]

(***) Vd ainda os postes de:

Guiné 63/74 - P3782: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (18): Obrigou-se o PAIGC a combater em Gadamael... (João Seabra)

"Dispositivo do Sector Sul em Abril de 1973, pouco antes do ataque do PAIGC a Guileje. O COP 5 tinha sido activado em 22 de Janeiro de 1973, comandando as unidades instaladas em Guileje , Gadamael e Cacine. A vermelho, as zonas de intervenção do Com-Chefe " (NR).


Raio de acção do armamento do PAIGC, que cercava Guileje: Morteiro 120 (4 km); Grad (6 km); peça de 130 mm (12 km)... Reconstituição de Nuno Rubim.
Imagens : © Nuno Rubim (2008) . Direitos reservados.

1. Mensagem do João Seabra, ex-alferes miliciano da CCAV 8350 (Os Piratas de Guileje):


Assunto - Guileje: para qualquer questão complexa há sempre uma resposta simples (geralmente errada) (*)

Caro Luís Graça,

Sou, há dois anos, um visitante ocasional deste blogue, no qual nunca participei, entre outras razões, porque (ainda) tenho uma vida profissional muito intensa e agitada.

Todavia, no passado Domingo [, dia 18,] o Sr. Coronel Coutinho e Lima chamou-me a atenção para o P3737 do Sr. Tenente General António Martins de Matos ("Um erro de Casting, e Comandante do COP5") (**), bem demonstrativo de que, para qualquer questão complexa há sempre uma resposta simples (geralmente errada).

Considero-me amigo do Sr. Coronel Coutinho e Lima, como amigo fui do Luís Pinto dos Santos, falecido há três anos, alferes miliciano de artilharia, comandante do 15º Pelart do Guileje, directamente visado pelo trecho "com o seu alcance os obuses de 14 cm seriam das armas aptos para contrariar o jogo inimigo...há mesmo o depoimento de alguém afirmando que o pessoal que os operava nem sequer saía dos abrigos".

Tal como o Sr. Tenente General sinto-me na obrigação de responder.

Deixarei para próximas oportunidades, o comentário mais completo ao P3737 (e aos que suscitou), designadamente no que se refere à fábula segundo a qual "Desde 6 de Maio de manhã que as GC de Guileje não efectuavam qualquer saída do quartel…" (**).

Por hoje limitar-me-ei às afirmações segundo as quais as flagelações eram feitas com "morteiro 120, canhão s/r"... e "há a confirmação de que as bases de fogo se situariam para lá da fronteira".

Considerando os alcances destas armas (5 a 5,5 Km para o morteiro 120 e 3 a 3,5 Km para o canhão s/r B10) diria que se trata de uma impossibilidade geométrica: basta ir ao Google Earth e medir.

Assim sendo, o Sr. Tenente–General tem de refazer o seu exercício: ou muda de armas, ou desloca a fronteira em benefício da Guiné-Conacri.

A única arma que nos flagelou a partir da Guiné Conacri terá sido a peça de 130 mm (com alcance provável não inferior a 12 Km).

A este propósito, pode-se consultar o interessante estudo do Coronel Nuno Rubim constante do P3058 de 13/7/2008 (***).

A minha disponibilidade para escrever textos novos é muito limitada, daí que me vá servindo de escritos de outras oportunidades, como o que hoje vai em anexo e é uma carta, dirigida ao director do jornal Público, escrita em Julho de 2005 em resposta a uma peça do jornalista Eduardo Dâmaso, sobre a Gadamael dos dias 31/5 a 3/6/73.

O resto – como os romances do século XIX – irá em folhetim.

É minha convicção que Guileje e Gadamael foram duas fases da mesma batalha.

A propaganda do PAIGC e a verdade oficial do Comando-chefe, numa insólita conjugação de esforços, sempre tentaram separar as duas situações, como episódios independentes.

Sustento que a decisão do Coronel Coutinho e Lima – abstraindo do, por assim dizer, "argumento humanitário" – foi a única que racionalmente poderia ser tomada, e negou ao PAIGC o seu campo de batalha de eleição (Guileje), transferindo-o para Gadamael.

Versa o texto em anexo principalmente sobre a situação subsequente em Gadamael (principalmente sobre o período de 22 de Maio a 3 de Junho de 1973, data do desembarque da CCP 122), articulando-a com os seus antecedentes relativos a Guileje.

Há matérias que nele deixo em dúvida atenta a informação que dispunha em 2005, por exemplo: hoje sei que a remodelação dos dispositivos de artilharia de Guileje e Gadamael foi proposta pelo Coronel Coutinho e Lima em Janeiro, mas executada em Maio.

De qualquer modo, tenho a presunção de pensar que o texto é instrutivo.

Com efeito, reza a apreciação do Comandante Chefe à actividade operacional do COP5 desde 22 de Maio 73: a actividade desenvolvida a partir de 22 reflecte uma acção de Comando de excepcional mérito e perfeitamente ajustada às circunstâncias.

Quer isto dizer que:

- Os Gr Comb de duas companhias de quadrícula (do tipo das que existiam na Guiné em 1973), "saíam do quartel", estabelecendo "segurança avançada";

- Consequentemente "sabia-se o que se passava fora do arame" e o IN era "mantido em respeito";

- A guarnição era apoiada por "potente artilharia" constituída por "armas aptas a contrariar o fogo inimigo";

- Não houve "erros de casting".

Estavam pois reunidas todas as condições para que – segundo a melhor doutrina – o IN fracassasse, ignominosamente, na sua tentativa de projectar sobre Gadamael os meios que tinha reunido para a operação sobre Guileje.

Quem quiser saber a minha versão do posteriormente sucedido (que pode ser, no essencial, corroborada por prova documental e testemunhal) pode consultar o pastelão em anexo [que será publicado oportunamente, L.G.].

Quem entender que tal excede o exigível a uma pessoa medianamente paciente, poderá consultar o breve (mas eloquente) depoimento do Sr. Coronel Araújo Sá, Comandante do BCP 12, a páginas 325 e 326 do livro A Retirada de Guileje.

Abraço do
João Seabra
Ex-alferes miliciano da CCAV 8350

2. Comentário de L.G.:

Saúdo o João Seabra, um Pirata de Guileje, e convido-o a integrar a nossa Tabanca Grande, tal como já o fez, há bastante tempo, ex-Fur Mil Op Esp J. Casimiro Carvalho (de que publicamos acima duas fotos em tamanho pequeno, uma com o morteiro 10,7 e outra com a peça de artilharia 11,4), e mais recentemente o Cor Art Ref Alexandre Coutinho e Lima. (Peço desculpa se estou a esquecer mais alguém ligado à CCAV 8350, e que faça parte da nosso blogue; vou pedir ao Carlos Vinhal para confirmar nos assentos regimentais; e, a propósito, já aqui publicámos uma foto do vosso ex-Cap Mil Abel Quintas, em casa do J. Casimiro Carvalho, na Maia, mas ele nunca mostrou, explícita ou formalmente, interesse em fazer parte da nossa Tabanca Grande, que de resto não tem portas nem janelas...)

Ficamos todos mais ricos e confortáveis com a tua presença. Ao fim destes anos todos, Guileje, Gadamael, Guidaje e por aí fora são nomes que ainda mexem com todos nós. Não te admires que às vezes a gente ainda ande com os nervos à flor da pele, e se exceda um pouco, na expressão (verbal) de pontos de vista, nos nossos comentários, quando se debruça sobre esses complexos dossiês que são autênticas caixas de Pandora. Eu, que não estive em Guileje (a não ser recentemente, há menos de um ano), leio quase sempre com profundo respeito (e muitas vezes com emoção) todos os textos e comentários que me chegam, sobre este tópico, A retirada de Guileje...

Obrigado pelo teu depoimento, sereno. Obrigado pela tua filosofia de abordagem dos problemas. Obrigado também pelo texto que mandaste para o Público, e que eu irei publicar, dentro de dias. (É um depoimento, creio que inédito, extenso, rico de detalhas factuais, e onde é visível o esforço de contenção dramática, por parte do autor).

Como sabes, e é das nossas regras de bom viver, aqui ninguém chama nomes a ninguém. Ninguém te vai chamar herói, ninguém te chamar cobarde. Apenas duas palavras, a de amigo e camarada, são autorizadas. (Por brincadeira, chamo herói de Gadamael ao José Casimiro Carvalho: daqui para a frente vou ter que ter mais tento na língua, para não evocar em vão o nome de tantos outros camaradas, Antómios, Josés, Joões, Manéis... que foram heróis todos os dias, e mesmo em dias difíceis como o foi certamente o 22 de Maio de 1973)...

E tratamo-nos todos por tu, claro: ganhámos esse direito, por que combatemos ao lado uns dos outros, dormimos no mesmo buraco, comemos o mesmo arroz com estilhaços de frango, tivemos o mesmo medo e a mesma coragem, bebemos a água da mesma bolanha... e tínhamos (quase) todos a mesma idade.

Na volta, cá te espero. Um Alfa Bravo. Luís

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Notas de L.G.:

(*) Vd. último poste desta série, A retirada de Guileje... > 23 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3778: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (17): O cerco que nunca existiu (António Martins de Matos)

(**) Vd. poste de 14 de Janeiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3737: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (11): Um erro de 'casting', o comandante do COP 5 (António Martins de Matos)

(***) Vd. poste de 13 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3058: Simpósio Internacional de Guileje: Comunicação de Nuno Rubim (4): Slides (de 10 a 18): Dos Strellas à Op Amílcar Cabral

Guiné 63/74 - P3781: O Nosso Livro de Visitas (55): Carlos Figueira, ex-Fur Mil da CCAÇ 4946, Jemberem, Cacine e Bolama (1974)

1. Mensagem de Carlos Figueira, ex-Fur Mil da CCAÇ 4946/73, Jemberem, Cacine e Bolama, 1974, com data de 20 de Janeiro de 2009:

Caro Sr.
Na pesquisa para encontrar os restos mortais do falecido piloto do Paquete "Santa Maria" que faz amanha 21 de Janeiro, 48 anos. Como o piloto era meu amigo... (Eu estive para ser a 1.ª vítima conforme pode ver no blog http://somisabe.blogspot.com/)
foi quando eu encontrei o vosso blogue que muito me satisfez (Boa ideia).

Tenho pena também de desconhecer as datas em que os ex-militares da Guiné se reunem pois estou no Funchal, Ilha da Madeira. Com pena minha eu perdi os contactos com os meus colegas graduados naturais de Portugal Continental.

A título de curiosidade - a minha Companhia chegou à Guiné em 5 de Janeiro de 1974 e regressou a 16 de Agosto do mesmo ano.

Mesmo assim, fui ferido no braço direito por estilhaços a 5 de Fevereiro e transportado para o Hospital de Bissau. Não sei bem o que se passou, mas muitos dos meus documentos militares encontram-se desaparecidos dos arquivos militares, mas tenho o essencial.

Recebam todos um grande abraço pelo projecto e desejo a todos vós um Ano cheio de saúde e de amor.

Sempre ao vosso dispor
Carlos Alberto R Figueira
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 22 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3777: O Nosso Livro de Visitas (54): Um camarada da diáspora, José Câmara, da açoriana CCAÇ 3327 (1971/73)

Guiné 63/74 - P3780: Fauna & flora (16): Avistamento de macaco-cão na zona de Dulombi/Galomaro (Luís Dias)

1. Mensagem de Luís Dias, ex-Alf Mil da CCAÇ 3491/BCAÇ 3872, Dulombi e Galomaro, 1971/74, com data de 19 de Janeiro de 2009:

Caros Editores

Caso queiram remeter esta pequena informação à investigadora Maria Joana Ferreira da Silva, sobre o macaco-cão no Dulombi, disponham.


Macaco cão. Foto de Herlander Simões


Avistamento de Macaco-Cão na Zona de Dulombi/Galomaro

A CCAÇ 3491, a que eu pertenci, esteve instalada, entre Janeiro de 1972 e Março de 1973, no Dulombi. Entre Março de 1973 e Março de 1974, a maior parte da Companhia esteve instalada em Galomaro, embora permanecessem 13 elementos e 2 Pelotões de Milícias no Dulombi e continuássemos a efectuar acções dentro da sua área (detínhamos a maior zona territorial de intervenção, em termos de Companhia). A zona tinha mais a sul os aquartelamentos do Saltinho e mais a norte Cancolim e Canjadude, e situava-se no Leste da Guiné.

Na primeira Operação em conjunto com a Companhia que fomos substituir - a CCAÇ 2700 - (1 de Fevereiro de 1972) e ao fim da tarde tomei pela primeira vez contacto com os babuínos e, pela forma peculiar com que se expressavam - latiam como cães - ficámos convencidos de que se tratava de cães do IN, pois ali era terra de ninguém e só nós ou os guerrilheiros por ali poderiam andar. É claro que a velhice e os milícias colocaram um riso malandro, fazendo crer, primeiramente, que eram os cães do PAIGC e só depois nos acalmando, dizendo que era um bando de macaco-cão.

Durante as operações que efectuámos na zona do Dulombi, entre esta população e o Rio Corubal, vimos muitas vezes bandos destes macacos, também chegámos a observá-los na picada (estrada) entre Dulombi e Galomaro. Quando estávamos instalados durante algum tempo atreviam-se a aproximarem-se, embora com cautelas. Havia sempre uns indivíduos maiores que ocupavam posições mais elevadas, como um morro de baga-baga ou uma árvore, parecendo ficar de vigia. Faziam por vezes um barulho ensurcedor, mas na maior parte do tempo pareciam estar sempre na brincadeira. Pareciam grupos grandes, de 40/50 indivíduos.

Quando a população do Dulombi plantava a mancarra, deixavam sempre alguém a tomar conta da plantação, seja para afastar os babuinos, seja para os dissuadir através de tiros de Mauser. Não temos conhecimento de qualquer ataque deste tipo de macacos, seja à tropa, seja à população, embora sejam aguerridos. Numa da vezes em que estávamos instalados para efectuar um descanso, um bando de babuínos surgiu e como estavam a fazer um barulho muito intenso, os meus soldados fizeram uma aposta comigo em como não era capaz de atingir um dos mais barulhentos que víamos a mexer por entre as árvores, a uma distância de perto de 80/100 metros. Como tinha a mania que tinha boa pontaria e perícia, pensei: vou apenas pregar um susto ao bicho. Rodei o diópter do aparelho de pontaria da G3 para a alça de 300m e apontei ao lado do macaco e disparei. Para minha surpresa, o animal caiu da árvore, chegando ao chão morto. Tinha-lhe acertado em cheio, apontei ao lado, mas houve qualquer desvio e o tiro foi fatal. Foi uma burrice... uma traquinice pouco ecológica e respeitadora de outros seres vivos. Raio de aposta!

Contava-se estórias de que os Fulas comiam macaco e que mesmo esse petisco havia sido provado por militares nossos, mas não sei se é verdade. No quartel não havia babuínos em cativeiro, unicamente um macaco mais pequeno que pertencia ao Escriturário da Companhia, mas que foi fuzilado por mim quando o apanhei a arrancar a cabeça dos nossos pintainhos, que criávamos para nos alimentar posteriormente.

Um abraço
Luís Dias
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3769: Fauna & flora (15): Macaco cão à mesa de Ponte Maqué e o "Buba" na Orion...(Raul Albino/M. Lema Santos)

Guiné 63/74 - P3779: As mulheres que, afinal, também foram à guerra(1): Ni, uma combatente em Bissorã (1973/74) (Henrique Cerqueira)

1. Mensagem do nosso camarada Henrique Cerqueira, ex-Fur Mil do 4.º GCOMB/3.ªComp/BCAÇ 4610/72, Biambe e Bissorã, 1972/74, com data de 18 de Janeiro de 2009:

Camarada Carlos Vinhal:
Em resposta ao teu desafio aqui vai uma narrativa referente à minha Mulher de Guerra na Guiné.
Espero que não seja um texto muito cansativo e já agora se achares necessário podes dar um jeitinho ao texto.

Um abraço
Henrique Cerqueira


NI, mulher de guerra de Henrique Cerqueira

Ni, Mansoa, 1973/74

Aproveitando o desafio do nosso camarada Carlos Vinhal, vou então fazer aqui a descrição possível de como foi a vida da minha mulher (com e ) na Guerra. Para além disso aproveito assim para lhe fazer uma merecida homenagem, porque foi necessário que ela tivesse muita coragem, abnegação, amor e também uma boa dose de aventureirismo, para tomar a atitude que tomou, ao se juntar a mim na Guiné, em pleno período de guerra e até na altura em que tudo começava a parecer caminhar para o abismo.

Quando informei o meu Comando da minha pretensão de chamar para junto de mim a minha mulher e meu filho Miguel de dois anos, fui desaconselhado.
Eu era um pouco rebelde e em todo aquele cenário de guerra a coisa que mais me custava era o afastamento da família, já que todas as outras dificuldades, bem conhecidas de todos nós, eram como de costume superadas, ora com umas pielas, ora com umas chatices com os superiores hieráticos, etc.
Para a falta da mulher e filho é que não havia nada que apaziguasse.

Ultrapassadas as desmotivações, há que passar à acção para concretizar o nosso desejo (meu e da minha mulher). Após as combinações telefónicas e escritas, marca-se a data para o encontro que virá a acontecer em finais de Setembro de 1973.

Há aqui que acrescentar, que esta decisão envolve um camarada e amigo meu que foi o Alferes Santos que estava também na CCAÇ 13 em Bissorã, e que já tinha estado comigo no Biambe, porque ambos pertencíamos ao BCAÇ 4610/72. De certo modo tínhamos em comum a maluqueira instalada nos nossos cérebros e pelos vistos ele foi mais maluco que eu, porque veio de férias à Metrópole, de propósito, para casar e como Núpcias ofereceu à sua novíssima esposa uma bela estadia em Bissorã, recheada de aventuras, tais como paludismo, mosquitos, osgas e até Guerra ao Vivo, mais à frente eu explico.

Mas voltando à minha Mulher de Guerra. Antes de historiar, vou começar por apresentá-la, pois que se publicares esta história, acho justo que conste o seu nome assim como o de meu filho. É que queira ou não, a minha MULHER DE GUERRA para além de todo o apoio sentimental que me proporcionou, fez história comigo porque passou por ter de enfrentar penosas viagens, instalações precárias, alimentação deficiente, mosquitos e dois ataques directos à nossa povoação, um dos quais com mísseis.
Ficou no entanto altamente enriquecida com o contacto que teve com as populações da Guiné e suas etnias, como libaneses e caboverdianos. Formámos uma amizade razoável com uma família libanesa e com o casal Administrador de Bissorã que eram de Cabo Verde.

O que mais me marcou tem a ver com os factos por mim já narrados no nosso Blogue, quando nos foi pedido que contássemos uma História de Natal e nessa eu tive o apoio incondicional da minha Mulher de Guerra. Quando tomei a decisão já narrada eu esperava que fosse enviado (recambiado) para a fronteira de castigo pelo atrevimento que tive de enfrentar o poder instalado, mas vá lá que os rapazes não foram mauzinhos e perdoaram cá o menino que nunca teve o espírito militar de que o meu respeitável Comandante me acusou, em direito de resposta, ao dito artigo de Natal.

A minha mulher manteve-se junto de mim, e mais uma vez faz história, ao sofrer um ataque no dia 31 de Dezembro de 1973 enquanto eu estava de prevenção, já que tínhamos ameaça de porrada o que veio a acontecer e ela cumpriu integralmente com as instruções por mim administradas. Enfiou-se no abrigo com o nosso filho mais o casal Santos e Zinha, enquanto eu andava como uma barata tonta a tentar organizar uma saída com o meu Grupo de Combate. Não esquecer da história de Natal, é que nesta altura cá o rapaz estava mal visto, só que continuava sendo um dos graduados daquele grupo que por acaso até estava de prevenção para um possível ataque. Enfim coisas que vida arranja, não é?

Mas íamos na barata tonta, ou seja baratas tontas, pois que passado o susto inicial era ver heróis a correr até ao arame, até Panhares foram ao arame. No entanto o meu Grupo saiu para o mato se bem que reforçado por mais pessoal da CCAÇ 13. Isto foi só um parêntesis, não resisti a uma provocaçãozinha, é que ainda dói.

A minha MULHER DE GUERRA ainda viveu mais umas histórias giras, tais como mais um ataque de mísseis e uma guerrita entre mim e o Comandante de Batalhão, por causa de um Furriel Guinéu que tinha o mau gosto de ser racista, isto já depois do 25 de Abril. A verdade é que ela também viveu lá essa data histórica e até teve o previlégio de, no dia em que eu tive o primeiro encontro com o PAIGC, durante uma picagem para o Olossato, em dia de reabastecimento, assistir a este encontro. Mais uma vez era cá o rapaz o protagonista e único graduado no primeiro contacto, após Abril e fim da guerra, teria mesmo de ser o menino mal visto. Está sempre em todas, olha se tivesse espírito militar!!!!)

A minha mulher foi depois comigo até ao ponto de encontro para confraternizar com o pessoal do PAIGC nesse memorável dia. Semanas mais tarde foi comigo passar um Domingo ao Biambe com os meus antigos Camaradas, mas isso dará outra história.

Bom, isto está mesmo a ficar longo e ainda não apresentei a minha MULHER DE GUERRA por tanto lá vai:

Nome de Guerra - NI
Nome próprio - MARIA DULCINEA ROCHA
Filho - MIGUEL NUNO, que tinha dois anos na altura

Embarcaram na TAP em finais de Setembro de 1973 até Bissau, de seguida seguiram comigo no interior de uma ambulância do Exército até Bissorã. Regressaram à Metrópole em 29 de Junho de 1974 tendo eu regressado em finais de Julho de 1974.

Carlos Vinhal tiveste um pouco de culpa por lançares este desafio, é que vieste lembrar algo que recordo com muito agrado e até dá vontade de escrever tintim por tintim, daí tanta escrita.

Envio algumas fotos da minha MULHER DE GUERRA em acção no Teatro de Guerra em Bissorã, Guiné, ano de 1973/1974.

Um abraço Carlos e restantes Tertulianos
Henrique Cerqueira

A Ni e a Zinha em treino de luta corpo a corpo... só para a fotografia

A Ni na ponte da outra banda em Bissorã

A Ni era dotada para a guerra. Ao fundo a minha macaca Gasolina de seu nome

A Ni e o Miguel fizeram muitas amizades com as pessoas da Guiné. Nesta foto, com o Homem Grande de Bossorã

O meu filho de guerra Miguel Nun0

Nesta foto: Sanhã, Zinha, Ni com a G3, fiel amigo Inhatna Biofa e o Miguel Nuno com um amiguinho

Henrique, filho Miguel Nuno, esposa NI, Zinha e marido Alf Santos

Fotos e legendas: © Henrique Cerqueira (2009). Direitos reservados



PS: Peço desculpa por numa das fotos aparecerem o Alferes Santos e sua Mulher ZINHA sem eu ter autorização para mostrar publicamente as suas imagens. Acontece que perdi o contacto deles e de certo modo pretendo prestar-lhes aqui a minha homenagem pelos tempos que passámos juntos. Para os dois um grande abraço.

Henrique Cerqueira
Ex-Fur Mil
3.ª Comp.ª/BCAÇ 4610/72
Biambe até Novembro de 1972
CCAÇ13 até Julho de 1974

Nota: Amigo Carlos não tenho grande jeito para a escrita se possível e for do interesse dá um jeitinho nisto. É que narrar é fácil (às vezes difícil), mas compor texto já é mais difícil. Uma vês mais grato pelo espaço ao nosso dispor.
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Notas de CV:

Vd. poste de 16 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3748: As nossas mulheres (4): Recortes de imprensa de uma noiva (Luís Faria)

Guiné 63/74 - P3778: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (17): O cerco que nunca existiu (António Martins de Matos)

Guiné-Bissau > Bissau > Hotel Palace > Simpósio Internacional de Guileje (1 a 7 de Março de 2008) > O Cor Art Ref Nuno Rubim, entre o Cor Cav Ref Carlos Matos Gomes e o Gringo de Guileje, o ex-Fur Mil Zé Carioca, da CCAÇ 3477 (Guileje, Nov 1971/Dez 1972), explicando pormenores da sua obra-prima que foi o diorama de Guileje...

O Nuno Rubim é um profundo conhecedor de Guileje. Recorde-se que ele comandou duas das unidades que passaram por Guileje: a CCAÇ 726 (Out 1964/Jul 1966) e a CCAÇ 1424 (Jan 1966/Dez 1966). É conhecido e acarinhada ainda hoje como o Capitão Fula.

Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados


1. Por sugestão minha, e na sequência da sua intervenção anterior (*), o António Martins de Matos, antigo Tenente Pil Av de Fiat G-91, na Guiné, no período de 1972/74 (e hoje Ten Gen da FAP na reserva), leu a comunicação do Nuno Rubim, Cor Art Ref, ao Simpósio Internacional de Guileje (Bissau, 1-7 de Março de 2008), "A batalha de Guiledje: uma tentativa de reconstituição histórica em dioramas", que publicámos no nosso blogue, em quatro partes, no dia 13 de Julho de 2008 (**).

Adicionalmente, transmiti ao António Martins de Matos as seguintes informações que me foram dadas pelo Nuno Rubim, que é membro da nossa tertúlia, e que eu considero o maior conhecedor de Guileje:

(i) O Cor Art Ref Nuno Rubim é um reputado especialista em história da artilharia portuguesa, tem um currículo invejável, tem uma boa formação académica na área de história e possui, além disso, um vastíssimo conhecimento do antigo TO da Guiné e da actual Guiné-Bissau: esteve lá em duas comissões, é casado com uma guineense, passou por Guileje (duas companhias), pelos comandos, em 1964/66 e depois pelo QG, no tempo do Spínola, nos serviços de informação;

(ii) O Nuno Rubim tem acesso privilegiado a fontes de informação de arquivo e fontes pessoais (incluindo antigos dirigentes e combatentes do PAIGC). É, neste momento, o maior estudioso da guerra da Guiné: vai abrir, dentro em breve, um sítio na Net para divulgar as dezenas de Gigabites de informação sobre a guerra da Guiné (centenas de fotografias e documentos);

(iii) Em conversas com ele (funciona informalmente como nosso assessor militar em diversas matérias de que é especialista), garantiu-me que toda a artilharia do PAIGC (excepto as peças 130) estava dentro do nosso antigo território. Por outro lado, deu-me a informação de que até 1972 os Strellas já tinham abatido 52 aeronaves norte-americanas na guerra do Vietname, pelo que o Strella não era uma arma absolutamente nova quando apareceu na Guiné em Abril de 1973;

(iv) O então major de artilharia estava nessa altura a cumprir a sua segunda comissão na Guiné, colocado em Bissau, no QG, a executar uma missão ultra-secreta, e recorda-se bem dos contactos de emergência que foram feitos pela FAP com os nossos amigos americanos e aliados da NATO;

(v) Foi depois daí que a FAP passou a voar, com outro modus operandi, com as máquinas pintadas de verde azeitona (camuflagem), etc.;

(vi) Quanto aos bombardeamentos, antigos guerrilheiros do PAIGC que estiveram em Guileje, na sequência da Op Amílcar Cabral, disseram-lhe em Bissau (na altura do Simpósio Internacional de Guileje, 1-7 de Março de 2008) que as bombas, largadas pela FAP, cairam longe do alvo e e sem efeitos de maior...

(vii) Recordo-me ainda do Nuno Rubim ter escrito (e falado) a chamar a atenção para o facto de só um obus 14 estar operacional, em Guileje, e o que tiro estava regulado para a peça 11,4 - o que não é mesma coisa...

Pedi ao António Martins de Matos (que viu a guerra de Guileje, "de cima", como ele fez questão de sublinhar, na qualidade de Ten Pilav, e que veio aqui contestara ideia de "cerco do PAIGC" a Guileje) para comentar também alguns desses pontos, com o duplo objectivo de: (a) contribuir para um melhor conhecimento dos acontecimentos relacionados com a retirada de Guileje; e (b) ajudar os nossos leitores a organizar a sua informação (leitores, como eu, que, na generalidade, são leigos em muitas destas matérias, desde a artilharia à aviação).

Dei depois conhecimento prévio ao Nuno da resposta do António. O Nuno acedeu, a título excepcional, responder no blogue, em público, aos comentários do António. Resposta essa que publicaremos numa próxima oportunidade. (LG)

2. Ainda Guileje e as missões (***)
por António Martins de Matos (ex-Ten Pilav, Bissalanca, 1972/74)

[Revisão e fixação de texto: L.G.]


Caro amigo

Li a comunicação do Nuno Rubim (**) e não concordo com as suas (dele) conclusões.

Apenas alguns pontos:

(i) Os alcances das armas do PAIGC não estão correctos, podendo ser bastante superiores ao indicado;

(ii) Não se percebe se a Ordem de Operações que está na sua apresentação, foi ou não a indicada para o ataque ao Guilege em Maio73; a ser, está escrito “reconhecer a melhor posição junto à fronteira para colocar os morteiros de 120”;

(iii) A ordem de operações do PAIGC indica 3 pelotões de artilharia, a 3 canhões cada e 30 granadas, o que dá no total 270 granadas, 1000 kilos a serem transportados por 20 carregadores, o que estará correcto, partindo do princípio que estes são do tipo “forte e bem constituído”;

(iv) Conforme o plano, o dispositivo era 1 pelotão para Guileje, outro para Ganturé e outro para Gadamael. Ora, com estas contas, o Guileje tinha que se “haver” com 90 granadas. No entanto, é referido noutros documentos que o Guileje foi bombardeado com cerca de 1000 granadas;

(v) Poder-se-á especular que as restantes 900 munições seriam de morteiro, só que essa granadas pesariam qualquer coisa como 13 toneladas (já seriam precisos 260 carregadores dos tais fortes e bem constituídos).

(vi Das duas três, ou os ataques foram do “estrangeiro” [Guiné-Conacri], onde o PAIGC teve tempo suficiente para ir armazenando as suas munições, ou os bombardeamentos foram significativamente mais pequenos.

A meu ver, estes tópicos fazem com que a teoria do Nuno Rubim caia por terra;

O facto do militar guineense ter dito “que foi mesmo mesmo assim” só vem reforçar a minha teoria de que o cerco do Guileje não existiu e tudo foi composto à posteriori.

Atrevo-me até a especular que, se o Guileje estivesse cercado nunca teria sido abandonado, pois teria havido contacto com a nossa tropa e o pessoal teria regressado ao quartel “em passo de corrida”.

No que refere à pintura dos aviões, de referir que entre 1972 e 1974 os FIAT G-91 não tinham camuflagem, eram cinzentos, e os DO-27 eram, imagine-se, cinzento prateado com pontas vermelhas, as cores com que se pintavam os aviões de instrução.

Foi só em Março de 1974 que apareceu o primeiro (e único) FIAT G-91 pintado de verde azeitona.

Em relação ao Strella a ao apoio dado pelos americanos, ele resumiu-se única e exclusivamente na entrega de documentação com as suas características.

Com base nesse documento e após o estudo do mesmo (durante um dia não houve actividade aérea), foi a FAP que definiu e pôs em prática o seu novo modus operandi.

De referir que o Strella apenas teve êxito enquanto foi considerado uma arma desconhecida. Após o conhecimento das suas características e ao contrário do que muitos pensam, continuaram a ser as anti-aéreas as armas que mais incomodavam os aviadores.

Por fim e em relação ao Vietnam, o Strella apareceu em 1972, e, no documento que te envio [ficheiro em formato.pdf], poderás verificar as baixas americanas ao longo dos anos e por tipo.

Um abraço
António Martins Matos

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Notas de L.G.:

(*) Vd. postes de:

14 de Janeiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3737: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (11): Um erro de 'casting', o comandante do COP 5 (António Martins de Matos)

17 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3752: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (13): A missão de apoio aéreo de 21 de Maio de 1973 (António Martins Matos)

(**) Vd. postes de:

13 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3054: Simpósio Internacional de Guileje: Comunicação de Nuno Rubim (1): Como dar a volta aos Strella ?

13 de Julho de 2008 >Guiné 63/74 - P3055: Simpósio Internacional de Guileje: Comunicação de Nuno Rubim (2): Slides (1 a 4): O sector sul

13 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3056: Simpósio Internacional de Guileje: Comunicação de Nuno Rubim (3): Slides (de 5 a 9): Comparando os armamentos

13 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3058: Simpósio Internacional de Guileje: Comunicação de Nuno Rubim (4): Slides (de 10 a 18): Dos Strellas à Op Amílcar Cabral


(***) Vd. os três últimos (mais recentes) postes da série A retirada de Guileje...

20 de Janeiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3764: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (16): As CCAV 8350 e 8351: Tão perto e tão longe (Vasco da Gama)

19 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3760: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (15): A minha homenagem aos que viveram a Guerra da Guiné. (J. Mexia Alves)

17 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3754: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (14): Pode não ser-se herói e dar provas de coragem (José Manuel Dinis)