domingo, 16 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4828: Estórias do Mário Pinto (Mário Gualter Rodrigues Pinto) (11): "Filhos de um deus menor"

1. O nosso Camarada Mário Gualter Rodrigues Pinto, que foi Fur Mil At Art da CART 2519 - "Os morcegos de Mampatá", Buba, Aldeia Formosa e Mampatá - 1969/71, enviou-nos a seguinte mensagem:

Camaradas,

Entre o meu espólio de memórias escritas encontrei mais este texto, que, com pequenos acertos, apesar de já ter uns anitos, ainda mantém INFELIZMENTE plena actualidade:

"FILHOS DE UM DEUS MENOR"

Em anos já passados, da minha juventude, nem todos os mancebos desta nossa Pátria, tinham o tratamento igual e imparcial, como deveria ser apanágio de uma sociedade correcta e fraterna para todos os cidadãos.

Dividiam-se os mancebos em classes distintas: Ricos e Remediados ou Pobres.

Os Ricos eram todos aqueles protegidos por “cunhas” (algumas delas por suborno), falsos atestados de incapacidades físicas, fraudulentas prorrogações de prazos, simulados amparos de família e outros “esquemas” engenhosos, iam ficando nas fileiras de trás ou em nenhuma delas.

Os Remediados ou Pobres eram todos os menos favorecidos, que eram chamados a formar nos quartéis, como SOLDADOS deste PAÍS, vindos das diversas aldeias, vilas e cidades, deste cantinho plantado à beira mar e lá iam, passados uns tantos meses, para a frente combater (directa ou indirectamente), dois e mais anos, em nome de um Império Colonial, já sem qualquer sentido, nem jeito, no conceito europeu de então.

O colonialismo era um tipo de política amorfa, condenada à muito tempo, por todos os restantes países Europeus, tendo sido Portugal, como bem sabeis, o último a abandonar as suas colónias, de que tão orgulhosamente se mantinha só e alguém proferia, com fervor, na época.

Mas às custas de quem?

Nas colónias em África, nas frentes de combate, só encontrávamos “os filhos de um deus menor”. Mancebos retirados ao seu habitat natural, alguns sem educação escolar básica sequer, aos quais, na sua maioria para não dizer totalidade, injectavam uma deficiente e inadequada instrução militar.

Valia-lhes, lá longe onde o sol queima mais, a esses HOMENS a grandeza da sua alma, invulgar poder de adaptação, sobrevivência e combatividade, espírito de sacrifício e generosidade pessoal, atributos estes que ajudavam a ultrapassar, com maior ou menor dificuldade, os tremendos obstáculos encontrados nos seus caminhos e calvários, dando lições e exemplos inigualáveis, nestas matérias, ao resto do mundo.

Os resultados são do conhecimento geral da população, milhares faleceram por lá e muitos outros milhares ficaram, permanentemente, deficientes física e psiquicamente.

Quando esta Nação deles precisou, disseram presente (a bem ou a mal). Quando deixaram de ser necessários, esta mesma Nação marginalizou-os! Tornaram-se incómodos, proscritos e abandonados.

E continua a marginalizar!

Foram então muitas vezes, durante os seus períodos de tropa, massacrados, espezinhados, ultrajados, esfrangalhados, feridos, estropiados, mortos… e após o seu término nestes últimos 35 anos, continuam INCRÍVEL e INADMISSIVELMENTE proscritos desta sua própria Pátria, pelos vários governos e demais políticos.

Temos vindo a ver, saber, de inúmeros casos de Camaradas nossos, que têm perecido no meio da maior penúria, abandonados às suas tristes sortes, debilitados e desamparados e, não fossem algumas organizações e instituições não governamentais de veteranos e outras de carácter benemérito, para acudir com alguma assistência primária à sua sobrevivência, a muitos outros, o DRAMA seria VERGONHOSA E ESCANDALOSAMENTE maior.

Continuam assim esquecidos os “filhos de um deus menor”, que mostraram inequivocamente, além das qualidades já referidas, a sua raça, humanidade, coragem e solidariedade invulgares, perante uma fraca e desprezível Sociedade que deles se alheou, constituindo hoje uma geração cansada e gasta pelas vicissitudes da vida.

ATÉ QUANDO A MARGINALIZAÇÃO A QUE SOMOS VOTADOS?!

Resta-nos crer com fé no futuro e firmeza nesta crença de que, um dia, surgirá uma nova geração, sóbria, justa e solidária, que ao conhecer os nossos feitos (em nome de, e por, Portugal), nos reconhecerá o devido e merecido valor e, quem sabe, ainda surja a tempo de auxiliar os necessitados que, eventualmente, ainda possam estar por aí… vivos.

Nunca se esqueçam os verdadeiros e leais portugueses (felizmente ainda há bastantes), que estamos a falar de ex- CAMARADAS-DE-ARMAS nossos.. ex-COMBATENTES DO ULTRAMAR… de PORTUGAL.

Um abraço
Mário Pinto
Fur Mil At Art

Imagem: © Magalhães Ribeiro (2009). Direitos reservados
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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

Guiné 63/74 - P4827: Gavetas da Memória (Carlos Adrião Geraldes) (2): A jibóia

1. Segunda história da série "Gavetas da Memória" de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Bissau, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66



Gavetas da Memória

A Jibóia


Ainda não há muito tempo, principalmente em dias de feira, era frequente aparecerem, pela cidade, vendedores ambulantes da famosa banha da cobra.

Munidos de uma modestíssima mala de cartão que arrumavam num canto do pequeno recinto que escolhiam para palco da sua actuação, aqueles verdadeiros mestres da arte da oratória, iniciavam quase sempre o discurso, por uma alusão a um qualquer acontecimento trivial, uma pequena observação, uma pilhéria ou até um simples piropo, algo que num repente prendesse a atenção dos passantes.

Então o nosso homem, quando se sentia observado, começava a palestra científica sobre as virtudes de um remédio milagroso de que só ele era portador e que, num gesto de pura abnegação e amor ao próximo, sentia ser sua a missão de não deixar de o proporcionar àqueles que o quisessem conhecer, desvendando um antigo segredo esquecido pela ciência moderna, mas que nas profundezas mais longínquas das matas mais obscuras da selva africana, a sua gordura era, desde os tempos mais remotos, aproveitada para a confecção de um extraordinário medicamento que tinha o maior poder curativo de que há memória em todo o mundo: a famosa banha da cobra ou mais precisamente: da jibóia, esse animal que por alguma razão era tão falado na Bíblia, simbolizando a ciência do Universo.

Ali mesmo, naquela maleta, dizia ele em tom dramático, tinha uma, bem grande, para mostrar ao excelentíssimo público, para que todos a pudessem ver e certificarem-se como era um animal manso, inofensivo, infelizmente alvo de tantas superstições e perseguições, mas que a mais moderna investigação científica provara ser uma fonte inesgotável de benefícios para o homem.

Entretanto, quando estava mesmo na eminência de abrir a dita mala, lembrava-se de qualquer outra coisa importante de que se tinha esquecido, ou fingia distrair-se com um aparte do público ou com a chegada de mais um transeunte, que não tinha obviamente ouvido a sua demonstração, e recomeçava novamente o discurso desde o início, adiando sempre Sine Die o momento da dita revelação, em que finalmente veríamos o tão impressionante e famoso bicho. Deixando a mala sempre por abrir, aumentava assim, muito habilmente, a tensão que se criava entre os já inúmeros espectadores ansiosos por verem a famosa jibóia e engrossando também o número de possíveis compradores, claro está.

Escusado será dizer que em nenhuma ocasião cheguei a ver a tal jibóia, se é que ela alguma vez existiu de facto. Apenas me foi dado vislumbrar as latinhas do maravilhoso unguento que ele rapidamente fazia correr de mão em mão pela assistência, acabando sempre por haver bastantes compradores, proporcionando-lhe um bom negócio mais uma vez. Era uma simples pomada à base de vaselina e menta, que refrescava a pele e deva uma sensação de alívio em quase todas as situações. Idêntica à que hoje se pode encontrar nas lojas dos chineses, com o pomposo título de pomada feita de pó de dente ou garra, sei lá, de tigre.

Dantes, era tudo tão fácil, tão simples e tão ingénuo… tal como ainda agora, não será?

Mesquita de Paúnca

Foto: © Carlos Geraldes (2009). Direitos reservados


Mas foi em África, numa manhã de sol intenso, em plena estação seca, que finalmente vi uma verdadeira jibóia. Felizmente já estava morta, ali esticada a meus pés, onde um grupo de destemidos rapazes da aldeia a tinha colocado como se de uma oferenda para a minha pessoa se tratasse.

Surpreso sem saber o que responder naquela situação, tentei perceber o que se tinha passado. Conforme relataram, naquela manhã, quando desbastavam o capim que invadia os campos perto das palhotas, notaram uma agitação estranha nuns cabritos presos ali perto. Deram logo o alarme, pois a experiência dizia-lhes que certamente andava ali cobra por perto. Batendo o capinzal ficaram espavoridos com o tamanho da bicha. Tinha quase três metros de comprimento.

Mas decididos a acabar com tamanha ameaça, munidos de paus e pedras, rodearam-na por rodos os lados e acabaram por matá-la. Depois como não sabiam o que fazer, resolveram que o melhor seria levá-la ao “alfero” para ele a esfolar e ficar com a pele.

- Esfolá-la, eu?

- Sim, sim! - diziam eles todos orgulhosos da façanha.

- O nosso alfero é que sabe! O nosso alfero tem manga de ronco! O nosso alfero tem faca di mato! - diziam apontando repetidamente para uma pequena faca de escuteiro comprada na Metrópole e que, estupidamente, ainda trazia à cinta, enfiada numa bainha de couro. Não me servia para nada, nem para descascar uma manga, pois nunca a tinha afiado como devia ser. Apenas a usava para me ornamentar, para ter ronco, à laia de um qualquer Tarzan de pacotilha, mas que pelos vistos impressionava verdadeiramente os meus súbditos, naquele aldeamento perdido no meio de uma África, longe de figurar nos meus mais adolescentes sonhos de aventuras.

- Bem, pensei eu, que hei-de fazer? - e olhava para todos os lados à espera de encontrar uma solução que me libertasse daquele embaraço. Mas os soldados e os furriéis que já se tinham juntado à nossa volta curiosos com a novidade, sorriam de malandros na expectativa de verem como eu me iria desenrascar daquela situação inesperada e encolhiam os ombros como se não houvesse mais nada a fazer senão satisfazer aquela pretensão dos valentes nativos que além de uma boa recompensa esperavam também ver o que alfero iria fazer com a oferta deles.

- Não posso dar parte de fraco, tenho que fazer das tripas coração… - pensava eu angustiado.

E pela primeira vez, vencendo uma repulsa congénita e o natural receio que todos nós herdámos dos nossos ancestrais antepassados, desde que fomos expulsos do Paraíso, pus a mão numa cobra, numa verdadeira jibóia, animal de dimensões monstruosas, capaz talvez de engolir um boi.

Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763 (1965/66), Os Lassas > "Foto que me foi concedida pelo Manuel Brita, condutor das Fox, e que esteve em Cufar no tempo do António Graça de Abreu" [1973/74].

Foto (e legenda): © Mário Fitas (2008). Direitos reservados.


Enquanto os mais valentes lhe seguravam na cabeça, comecei então o trabalho de tentar remover a pele ao animal. Foi uma trabalheira danada. O que me valeu é que pelos vistos ali ninguém entendia muito do assunto e a minha notória inexperiência nem foi assim muito evidente.

Até os próprios negros, sempre ingenuamente impressionáveis, comentaram a coragem do nosso alfero que, de faca de mato na mão, enfrentou o inimigo sem qualquer hesitação!

Ao fim de um bom par de horas, lá conseguimos tirar a pele ao bicho, mas de modo tão tosco que, mesmo tendo ficado em salmoura uns poucos de meses, acabou por se estragar e não serviu para nada. Nem para um par de sapatos deu.

E ainda bem, pois dizem que a pele de cobra dá azar.

Só Deus sabe o nojo provocado pelo cheiro que aquela carnificina me deixou nas mãos que, mesmo depois de as esfregar bem esfregadas com sabonete Lifebuoy de alcatrão, ainda assim mantiveram aquele fedor por longo tempo. Felizmente as jibóias não apareceram mais por aquele lugarejo, onde definitivamente não eram bem-vindas, livrando-me também do repugnante cargo de esfolador que, certamente, me estaria destinado dali para a frente.

Mas porque é que me foram escolher a mim? Não haveria na aldeia nenhum nativo que soubesse fazer tal coisa com muito melhor destreza?

Não, o que certamente se passou foi que, simplesmente quiseram honrar-me com o privilégio de ser eu a despojar o bicho da sua pele, um bem de certo modo precioso, como sinónimo de poder, de autoridade. Era importante para eles que eu desse valor à sua oferta e eu mesmo tratasse de preparar o arranque da pele, o que eu, mesmo muito atabalhoadamente consegui fazer, sem dar a entender que tal coisa me repugnava e me era completamente estranha. Fiquei com a impressão que deve ter sido também a primeira vez que lhes foi dado contemplar um branco, um chefe da tropa, a fazer tal trabalho.
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Nota de CV:

Vd. primeiro poste da série de 9 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4804: Gavetas da Memória (Carlos Adrião Geraldes) (1): "Os Elefantes"

Guiné 63/74 - P4826: Memórias de outros tempos (2): As épocas das chuvas (Jorge Teixeira/Portojo, ex-Fur Mil do Pelotão de Canhões S/R 2054,Catió, 1968/70)


1. Mensagem de Jorge Teixeira (Portojo), ex-Fur Mil do Pelotão de Canhões S/R 2054, Catió, 1968/70, com data de 29 de Julho de 2009:


A época das Chuvas


Apanhei duas inteirinhas, mas provavelmente como toda a malta.

Oficialmente, ela deveria começar em meados de Maio e ir até meados de Novembro.

Eram um horror em várias razões. Quando atravessávamos as bolanhas, a parte superior ao fim de 4 ou 5 homens as terem passado, os restantes para se equilibrarem naquele lodo passavam tormentos, especialmente à noite. E quantos demos o trambolhão para dentro de água, que em alguns casos poderiam ser fatais, por afogamento. Sei do que falo.

Um dia, na minha primeira época, perguntei ao ainda ten. João Bacar Jaló, como era possível chover tanto. Se era costume aquela chuva toda. Disse-me ele, estamos ainda em seca. Precisamos de muita mais. Claro que mesmo habituado à chuva do Porto, aquilo parecia-me o dilúvio. Dias seguidos de chuva...
Normalmente antes da chuva começar a cair, chegavam os sons daquelas trovoadas terríveis. Nunca sabíamos se elas vinham dos céus ou da terra.
Na segunda época, no primeiro dia de chuva, que por acaso foi à noite, o meu amigo, companheiro de quarto e sargento do Pelotão Daimler 2045 -de que não me lembro o nome - correu para o descoberto a receber a chuva com todo o carinho e aos berros, que era para fazer bem à "lica". Se bem se lembram, alguns de nós criávamos no corpo uns borbulhas, que depois davam em manchas que nunca saíram do cabedal, -sei do que falo - e que eram pior que mordidela de mosquito ou daquelas baga-baga que apanhávamos quando roçávamos algum arbusto, pois coçávamo-nos até fazer sangue. Ele era achacado a essa doença da pele e recebeu a informação que com as chuvas a coisa passaria.
Acompanhei-o mas com um receio. Fui-me dirigindo para o meu posto de defesa, pois estava a cair uma trovoada daquelas lindas. Acreditem que na unidade quase ninguém deu fé. Pudera, eram Piras com apenas 3 meses de Guiné...Era o seu baptismo de chuvas e ainda não distinguiam as trovoadas umas das outras...
Também nos extasiávamos com as maravilhas da natureza. Quando acontecia estarmos no meio de uma bolanha e víamos ao longe o remoinho do tornado, a quantidade de relâmpagos e raios que apareciam de todas as direcções, uma luminosidade que deslumbrava, o barulho ensurdecedor das trovoadas que se vinham aproximando. E pior que tudo, tentar que o pessoal não corresse para se abrigar na mata mais próxima. Ufa, e quando ela começava a cair, 2 minutos depois estafamos piores que bacalhau demolhado. Porque esse precisava de pelo menos 3 dias e uma rezas de molho, não para dessalgar mas sim para que se ficasse pelo menos mole para se poder desfiar. Porque em posta ninguém o conseguia comer.
Um abraço,
Jorge Teixeira/Portojo
Fur Mil At Art
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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

18 de Abril de 2009  > Guiné 63/74 - P4206: Memórias de outros tempos (1): Fur Mil Aguinaldo Pinheiro, o morto-vivo do BART 1913 (Jorge Teixeira - Portojo)

sábado, 15 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4825: Fichas de unidade (4): História do CART 6251/73 (José Martins)

1. O nosso Camarada-de-armas Aníbal Amaral da CART 6251/73, Cumeré e Mansabá (1974), dirigiu ao Luís Graça o seguinte apelo em 30JUL2009:

Caro Luís Graça,

Recorro ao camarada (deixe-me tratá-lo assim), para lhe pedir o que agora, e não me questione porquê, começa a ser importante para mim. Rever camaradas da minha Companhia, confraternizar e reviver os momentos que passamos juntos naquela terra, que embora pobre quando comparada com Angola ou Moçambique, tinha algo de mágico que não podemos esquecer.

Tenho agora 56 anos e há já alguns meses que tento encontrar os meus camaradas de Companhia.

Até hoje todos os esforços foram em vão.

Frequentei na recruta o CSM nas Caldas da Rainha, tirei a especialidade de transmissões de Infantaria, em Tavira, e em Abril de 1974 embarquei no Niassa integrado na Cart 6251/73, saídos da RAP V. N. Gaia. Foi noticiada a nossa saída de Lisboa, no Niassa, por causa do engenho que explodiu a bordo aquando da partida. Chegamos a Bissau a 15/04/74. Depois de algumas semanas no Cumeré, fomos para Mansabá, substituir uma Companhia de Caçadores que agora não recordo, mas que tenho presente tinha já ultrapassado o tempo dito “normal” de comissão.

Até regressarmos, em Outubro 1974 de novo no Niassa, entregamos inúmeros aquartelamentos às tropas do PAIGC.

Na procura dos meus camaradas, já me indicaram a Cart 6251 mas de 72 – Os Galos de Catió. Mas não era essa a minha Companhia. Se bem recordo, Catió era de facto o nosso destino, mas quando chegamos a Bissau, Catió já estava nas mãos do IN.

O meu nº. mecanográfico era 028313/73. Se me puder fornecer alguma sugestão para tentar chegar à fala com camaradas desta m/Companhia, fico-lhe muito grato. Adorava puder rever aquela malta.

Aníbal Amaral
Ex-Furriel Mil. de Transmissões de Infantaria,
E-mail: anibalamaral1952@gmail.com

2. Como já vem sendo habitual nestas solicitações, o nosso primeiro passo para tentar ajudar este nosso Camarada, foi solicitar ao José Martins - nosso prestável e eficaz “municiador” de Fichas das Unidades -, os dados que forem possíveis reunir, sobre a CART 6251/73, de modo a que outros elementos desta companhia, possam, ao eventualmente lerem este poste, desde logo, identifiquem-se com a mesma e poderem contactar o Aníbal Amaral.

3. Breve apresentação do nosso Camarada José Martins:

(ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5 - Os Gatos Pretos -, Canjadude, 1968/70)
Matéria consultada para a sua pesquisa:
Resenha Histórica Militar das Campanhas de Africa
Volume 7º - Tomo II – Fichas das Unidades.

4. Agradecendo, desde já, a sua amigável e prestável colaboração ao José Martins, que, em casos anteriores muito tem ajudado a obter bons resultados, apresentamos seguir os resultados da sua melhor pesquisa, devidamente adaptada e condensada:

Companhia de Artilharia nº 6251/73

A Companhia de Artilharia nº 6251/73 foi mobilizada no Regimento de Artilharia Pesada nº 2, na Serra do Pilar, em Vila nova de Gaia.

Em 11 de Abril de 1974 embarca em Lisboa, rumo à Guiné, chegando a Bissau em 17 desse mesmo mês.

Foi para o Centro de Instrução Militar, em Cumeré, onde iniciou a Instrução de Aperfeiçoamento Operacional a 21 de Abril de 1974. A instrução é interrompida, tendo a subunidade seguido para Mansabá, assumindo a responsabilidade do subsector substituindo a Companhia de Artilharia nº 3567, passando a integrar o dispositivo de manobra do Batalhão de Caçadores nº 4610/72 e posteriormente do Batalhão de Cavalaria nº 8320/73.

Depois de efectuar a entrega do aquartelamento de Mansabá ao PAIGC, em 03 de Setembro de 1974, esteve temporariamente em Nhacra, donde seguiu para o subsector de Safim, onde rendeu em 10 de Setembro de 1974 a Companhia de Cavalaria nº 8355/73, ficando integrada no dispositivo do COMBIS – Comando de Bissau, deslocando forças para o destacamento de Capunga.

Procede à entrega, ao PAIGC, do aquartelamento de Safim em 12 de Setembro de 1974, recolhendo a subunidade a Capunga, que entrega em 27 de Setembro de 1974, ficando a aguardar embarque até 03 de Outubro de 1974, data em que regressa.

© José Marcelino Martins – 13 de Maio de 2009

Um abraço,
José Martins

5. Resta-nos aguardar que o pessoal desta CART, ao tomar conhecimento desta mensagem contacte o Aníbal Amaral, para o e-mail indicado, ou recorra à nossa sempre disponível ajuda.
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Notas de M.R.:

Vd. último poste da série em:

Guiné 63/74 - P4824: (Ex)citações (39): "Ainda estás pouco lixado, pá?"

1. Mensagem de J. Mexia Alves (*), ex-Alf Mil da CART 3492 (Xitole / Ponte dos Fulas), Pel Caç Nat 52 (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa), com data de 14 de Agosto de 2009:

Caros camarigos editores

Aqui vai um textozinho assim como que de Verão, que os meus camarigos farão o favor de julgar da pertinência de publicação.

Como sempre agradeço que me acusem a recepção do mesmo.

Um abraço camarigo do
Joaquim Mexia Alves


As práticas do tipo: “Ainda estás pouco lixado, pá”!

Algures aqui na Tabanca, li recentemente um texto que me fez lembrar uma prática em voga na Guiné e que eu sempre considerei um erro, mas que era infelizmente muito usada por vários comandantes.

Consistia essa dita prática, quase como se fosse uma NEP, em mandar o pessoal mais difícil, mais punido, mais insurrecto, para os sítios mais difíceis e complicados, os chamados buracos.

Assim, aqueles que esses comandantes não conseguiam ou não queriam disciplinar nas suas Companhias ou sedes de Batalhão, enviavam-nos para os que já sofriam as estopinhas em lugares isolados e degradados, como um castigo, que acabava muitas vezes por castigar os que já estavam castigados pelas condições em que viviam.

Isso aconteceu-me no Mato Cão uma ou duas vezes, por exemplo.

Ou seja, não chegava um gajo já estar nas piores condições, mas ainda se mandavam para lá os problemas difíceis de tratar, assim como se aqueles destacamentos ou quartéis fossem uma colónia penitenciária.

Lembro-me que assim que chegaram ao Mato Cão, tive com os insurrectos, uma conversa franca e objectiva, com umas ameaças a preceito, e acabei por não ter mais problemas.

Mas a verdade, quer queiramos quer não, é que o castigo que era dado a esse pessoal, acabava muitas vezes por se transformar em dores de cabeça para aqueles que já as tinham que chegassem.

E os senhores comandantes ficavam mais descansadinhos nos seus sítios, e os outros… que se lixassem!!!
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 5 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4781: Também quero homenagear os nossos picadores (J. Mexia Alves)

Vd. último poste da série de 11 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4813: (Ex)citações (38): Resposta a J. Mexia Alves (A.J. Pereira da Costa)

Guiné 63/74 - P4823: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (18): Dias em Binar - 3

1. Mensagem de Luís Faria, ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72, com data de 11 de Agosto de 2009:

Amigo Vinhal

Após uma temporada em que me não me foi possível escrevinhar nada, segue agora mais uma “Viagem …” que publicarás se assim o entenderes.

Dei uma vista de olhos pelo blogue, que me pareceu reflectir o tempo em que estamos…em Férias!

Para todos os que as desfrutam… que lhes sejam retemperadoras de espírito e rejuvenescedoras de saúde.

Um abraço
Luís Faria


Dias em Binar - 3
Esta pequena povoação situava-se, como já tive ocasião de escrever, a uma dúzia de quilómetros de Bula, na estrada para Bissorã.

Assim, na proximidade a Norte havia as perigosas matas a que por inclusão chamo de Choquemone (Jundum, Dungor, Choquemone, Madelife) e mais a Norte o Infaíde. Mais para Nordeste seriam as de Biambe (?).

Vem isto ao caso de o Jorge Picado, em comentário ao Poste 4619 ter ficado surpreendido por eu dizer ser um lugar tranquilo onde tínhamos passado uma espécie de férias, estando nas proximidades do Biambe IN.

Na verdade estávamos bastante próximos das matas a que chamo Choquemone (logo a norte de Binar), região de Cacheu. As do Biambe julgo que eram mais para Nordeste, já no Oio, mais próximas de Bissorã.

Como já disse, toda aquela zona de matas para Norte era muito perigosa, e como tal muito patrulhada e onde se sucediam Operações por variados agrupamentos de tropa, inclusive Especial .

Não devemos esquecer o extenso campo de minas na lateral da estrada para S. Vicente, conjugado com as emboscadas e patrulhamentos feitos 24 sobre 24 horas nos pontos de passagem, o que condicionava e muito as movimentações IN naquelas paragens.

Também havia no aldeamento, a tropa Africana (CCaç 17), que teria a sua actividade normal de patrulhamentos e operações na zona.

Talvez também por estas razões, durante aquele mês e meio não tenhamos tido problemas, para além do já descrito ataque de RPG e morteiros na pista de aviação, onde tínhamos postos permanentes de vigilância.


O “Instalazza”

Nesta pista, coube-me experimentar e fazer o respectivo relatório da utilidade de uma nova arma (granada) “Instalazza" (?), com fins, ao que o Capitão me informou, a ser eventualmente usada pelas nossas tropas. O meu parecer foi favorável e pelo menos a nossa Companhia passou a usá-la por sistema.

Se lembram, era uma espécie de pequeno míssil com uma coroa circular dentada na frente, com aletas direccionais estabilizadoras na extremidade oposta e era lançado pela G3, do mesmo modo que o velhinho, perigoso mas útil e devastador dilagrama.

Após muitos lançamentos verifiquei, no meu entender, que era uma arma simples, fiável e que podia ser utilizada num leque alargado de situações já que podia ser usada em tiro horizontal directo a distâncias suficientes em emboscadas, a par e por vezes, apesar da menor carga explosiva, até com vantagem sobre os lança-roquetes e bazucas, dado não ter necessidade de municiador, para além de não fazer cone de propulsão no lançamento, que se não houvesse atenção podia causar queimaduras aos próximos, menos atentos e até incêndio no capim.

Podia funcionar como um mini RPG, (arma que eu mais temia!) quando dirigida às árvores e arbustos, dado ao que me parece recordar, os estilhaços serem direccionados na perpendicular ao eixo.

Em tiro indirecto, funcionava como o morteiro, com menor poder explosivo, mas com a vantagem de eventualmente não desaparecer na bolanha, pois podia ser disparada ao ombro, da coxa e até em tiro instintivo, sem quaisquer problemas. O coice era relativamente pequeno.

Tinha um senão, como o dilagrama que não substituía: a possibilidade, por falta de atenção ou precipitação, de o disparar com bala não própria. Mesmo nesse caso os estragos no pessoal seriam menores já que os estilhaços eram direccionados e não em todas as direcções, como no dilagrama.

Assim, como disse, o meu parecer foi favorável e pelo menos a nossa Companhia passou a usá-la por sistema e ao que me lembro, não tive conhecimento de acidentes com esta arma, ao contrário dos dilagramas, bazucas e até lança-roquetes.


O Turra

Uma manhã, a quebrar o marasmo rotineiro, somos presenteados com um dos turras ao vivo, que andavam a gamar na noite, lá por Pache.

Alertado pela população, o Fur Castro e alguma gericada, (como ele dizia), do 1.º Grupo, conseguiu apanhá-lo, tendo-o pelos vistos amarrado ao poste da Bandeira, onde passou a resto da noite sob vigilância, a par de algum interrogatório amador e talvez de umas amigáveis solhas, digo eu, para afugentar o mosquitame!!

Levado para Binar, por lá ficou à espera de transporte, não recordo se para Bula ou Bissau, para interrogatório apropriado, penso.

Na sala contígua à messe, sentado num banco e amarrado, lá esteve o homem durante um par de horas, provocando a curiosidade da rapaziada em ver de perto e ao vivo um turra, como se de um ser diferente de outro qualquer Planeta se tratasse.

Ao que recordo não aparentava medo ou receio até, antes demonstrando no olhar, laivos de altivez!

O Pessoal aproximava-se, mirava-o e remirava-o, ia mandando umas bocas e fazendo as considerações que achavam sobre a proveniência, a belicosidade, o físico, o olhar… enfim!

Os graduados claro, também entraram na festa e à vez ou ao monte, era ver quem mais e melhor o interrogava, com maior ou menor meiguice verbal, fazendo-lhe as perguntas mais díspares. Também não havia de faltar a foto tirada pelo Fur TRMS Lourenço (Metralhinha) com a sua Asai-Pentax (?), pois interrogatório sem documentação fotográfica para a posteridade (?) não era razoável nem lógico!!?

É nesta altura que me aproximo para também testar os meus dotes de inquiridor.

Adoptando um ar e tom incisivos, para não dizer agressivos, começo o interrogatório e ao fim de meia dúzia de respostas… saio disparado, pouco tendo faltado para ter passado a inquisidor!! A minha cabeça era um turbilhão de perguntas e imagens. Tinha de contar até cem ou mil para voltar ao meu estado normal! Normalmente costumava até dez, ser suficiente!!

Tempo depois, mais calmo, quis voltar para tentar clarificar alguns onde? como? porquês? e obter certezas, o que infelizmente já não foi possível, pois o desgraçado teve que seguir viagem, deixando-me ainda hoje com teorias sem confirmação!

Pelos vistos o rapaz conhecia-me de Ponta Matar e já me tinha tido em mira…duas vezes!!!

A todos um abraço
Luís Faria
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Notas de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4657: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (17): Dias em Binar -2

Guiné 63/74 - P4822: Tabanca Grande (171): Joaquim Gomes Soares, ex-1.º Cabo da CCAÇ 2317/BCAÇ 2835, Gandembel e Ponte Balana (1968/69)

1. Mensagem de Joaquim Gomes Soares, ex-1.º Cabo da CCAÇ 2317/BCAÇ2835, com data de 9 de Agosto de 2009:

Mais um sobrevivente de Gandembel/Ponte Balana, Joaquim Gomes Soares, 1.º Cabo do 4.º Pelotão da CCAÇ 2317/BCAÇ 2835.

Fico muito contente de poder entrar neste blogue de Luís Graça & Camaradas da Guiné.

Como deves reparar sou o 4.º tertuliano da CCAÇ 2317 a fazer parte deste grande grupo de ex-combatentes da Guiné e de Gandembel. Depois do Idálio Reis, agora também o Manuel Oliveira, o qual aproveito esta oportunidade para os saudar.

Tenho poucos conhecimentos de informática mas este pouco que sei foi o bastante para poder pesquisar e encontrar temas relacionados com a Guiné neste blogue e em boa hora poder divulgar muito do que há para dizer de Gandembel.

Os nossos tertulianos Idálio Reis e Manuel Oliveira já o disseram aqui, eu sou o que ao longo de 26 anos organiza o almoço de convívio da CCAÇ 2317 com a ajuda muito especial do ex-alferes Reis.

Por hoje chega, aproveito para enviar a todos os responsáveis desta tertúlia muito especialmente ao seu fundador Luís Graça um abraço, assim como a todos os meus irmãos da 2317.

Para me contactarem, deixo aqui os meus dados:

E-MAIL: joaquim.gomes.soares@hotmail.com

Telefones: 225 361 952 e 936 831 517


2. Caro camarada Joaquim Soares

Ainda bem que vieste reforçar o efectivo da CCAÇ 2317. Sê bem-vindo a esta caserna virtual que fica à tua disposição receber e publicar as tuas histórias e as tuas fotografias.

Se o ex-Alf Mil Idálio Reis dedicou já muitas páginas escritas e fotos à vossa Companhia, publicadas neste Blogue, tu poderás contribuir para aumentar ainda mais o conhecimento da história da 2317.

Como princípio da tua colaboração no Blogue, vou publicar as fotos que mandaste na tua mensagem de apresentação.


O simbolo do respeito

A hora da chegada e da despedida

A ponte Balana antes de cair

O capitão Barroso Moura (O fugitivo)

Depois de Gandembel

Mais um dos treinos para o festival

Manuseamento do morteiro 120

Material apreendido

Para qualquer dos lados que fossemos era mau

Quando a ponte-Balána caíu

Treino para o festival da canção de Gandembel

Fotos e legendas: © Joaquim Soares (2009). Direitos reservados
Fotos editadas por CV

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4787: Tabanca Grande (170): Carlos Adrião Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Bissau, Pirada, Bajocunda e Paúnca (1964/66)

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4821: Cartas (Carlos Geraldes) (1): Apresentação e Prólogo

1. Vamos apresentar nesta série algumas cartas que Carlos Geraldes (ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66), escreveu ao longo da sua comissão. Uma espécie de diário com todas as emoções do momento, de boa disposição, situações menos agradáveis, enfim, tudo aquilo por que todos mais ou menos passámos e que alguns conseguiram registar quase no momento.

A série terá duas partes, a primeira coincidente com a permanência da Unidade em Bissau, entre Maio e Outubro de 1964 e uma segunda com a permanência da CART 676 no mato.

Em pararalelo continuaremos com a série "Gavetas da Memória".


Apresentação:

Nas décadas de 60 e 70, em Portugal do séc. XX, houve a Guerra Colonial.
Primeiro em Angola, depois na Guiné e Moçambique.

O Império tinha acabado. Os povos subjugados reclamavam a independência.
Os nossos governantes, cegos como toupeiras, obrigavam o povo a mais um sacrifício inútil, enviando milhares e milhares de jovens para um destino inglório, premiado muitas vezes com a morte ou com alguma incapacidade atroz para o resto da vida.

Pertenci também a uma dessas levas. Em 1964, interrompendo uma carreira universitária de pouco êxito, fui enviado para a Guiné, como oficial miliciano, depois de treinado à pressa para uma actuação militar anti-guerrilha, que iria desbaratar um inimigo que não respeitava os nossos valores ancestrais (de roubo, violação e massacre?).

Como todos os outros tratei de me defender o melhor que podia, e regressar são e salvo para casa, para junto dos meus, procurando ser sempre, no entanto, o mais justo e compreensivo possível, para com aqueles que, supostamente, teria de combater e derrotar.

Durante dois anos, mais precisamente 23 meses (ou 90 semanas), fui escrevendo cartas e aerogramas para os familiares, que agora, passados quarenta anos, vim ainda reencontrar, miraculosamente intactos. Escolhi 62 dessas missivas contendo relatos que não dissessem respeito apenas aos casos familiares mais particulares, às saudades por exemplo, mas que contivessem algo mais, relatos breves de uma experiência de vida. Apesar do perigo da Censura, que na época pairava ameaçadora sobre as nossas cabeças, eu ia arriscando nessas cartas, em contar, mais ou menos veladamente, o que ia acontecendo e observando nos terrenos da guerra.
Além do mais, o sortilégio de Africa está também aí, retratado de alguma maneira.

Ficou sempre gravado profundamente na minha vivência. Marca que nunca mais se desvanecerá da minha memória. Por isso achei que era quase uma inconsciência, uma leviandade até, deixar esquecer estas, embora ingénuas, transcrições de um mundo que atravessou a minha vida, e talvez também, a de muitos outros jovens que, naquela época, viveram e sofreram a Guerra Colonial. Não pretendo fazer literatura, apenas quero deixar, com uns rabiscos toscos, um relato mais ou menos fiel do que naquela época vi, vivi e senti, perturbado por vezes, talvez, por uma falta de maturidade, própria de quem ainda é jovem demais, para poder ajuizar correctamente situações tão intensas, num cenário tão gigantesco

No entanto gostaria de fazer algumas ressalvas:

Alguns poderão pensar que estas Cartas dão uma visão demasiado branda do que foi de facto a guerra na Guiné. Mas a explicação é sucinta: nas cartas e aerogramas, que ia enviando de lá, era quase inevitável escamotear, adoçar, a realidade nua e crua para poupar a família de medos e angústias desnecessárias e prematuras. O perigo, o medo, o pavor da morte súbita, existia mesmo em cada momento ali vivido, a milhares de quilómetros de casa, mas para quê fazer com que a família, também o sentisse? Assim, de imediato, talvez fosse melhor disfarçar, tentar dar uma ideia que se tratava de mais uma drôle de guerre, umas férias forçadas é certo, mas que acabariam por vir a ser apenas recordações de um período memorável da nossa juventude.

Além disso as Cartas são também o reflexo da vivência de um privilegiado, um oficial miliciano que embora sofrendo as agruras da guerra como qualquer militar, sofreu-as certamente com outra suavidade do que a de um simples soldado, este sim, obrigado a conviver quase sempre com a mais abjecta das condições humanas. Embora as carências sentidas fossem muito distintas, tanto físicas como intelectuais, isso não invalida que a dimensão moral deste testemunho não seja, na verdade, muito menos pertinente, embora também, não menos importante.

Depois a nossa compreensão, dos factos e das coisas, é também embotada pela distância no tempo. O que agora lemos, foi o que eu senti e escrevi à quarenta anos atrás, num mundo totalmente diferente, um mundo em que não havia computadores pessoais, telemóveis e muitas outras coisas tão banais nos dias de hoje. O entendimento do mundo era muito diferente, não havia o que agora chamamos de conceito da aldeia global.

Tudo era medido, analisado e compreendido à nossa pequena escala, à escala do nosso corpo, da nossa casa, da nossa família, da nossa rua, da nossa pequena cidadezinha de província, do nosso país semi-rural e quase analfabeto.

Mas, mesmo assim, aqui fica como um testemunho, ou apenas um relato, talvez ingénuo, mas realista, do fim da aventura africana, que na década de 60, ficou gravada a sangue e fogo na nossa memória, nos modelou o carácter e nos fez crescer mais depressa.

Viana do Castelo, 2005
Carlos A. Geraldes

P.S. Evidentemente que todos os nomes das personagens (europeias) são pseudónimos.


Prólogo

(Excerto de uma carta escrita, durante uma longa marcha efectuada pelos contrafortes da Serra de Sintra, nos exercícios finais do Curso de Oficiais Milicianos realizado de Agosto a Dezembro na Escola Prática de Infantaria de Mafra)

Silveira, 12 Dez 1963Aproveito agora para vos escrever.
Esta carta esteve para ser começada em Manchôa, Torres Vedras, mas aconteceu que o tempo que calculei para esperar pela emboscada foi muito menor e tive de largar a escrita precipitadamente, para agarrar na espingarda.

A guerra tem andado boa, apesar de eu andar estafado dos pés. Já estamos no fim de quinta-feira e quase tudo me parece impossível. O tempo voa!

A nossa primeira etapa foi até Encarnação, uma vila ao norte de Mafra. Acampámos num pinhal e choveu durante toda a noite. As tendas, improvisadas com quatro panos de tenda do equipamento individual, mal davam para nos abrigarem. Ficámos com os pés de fora! E como dormimos com as botas calçadas, para que estas não ficassem ensopadas com a chuva, remediámos a situação embrulhando-as com mantas. Mesmo assim quase não se pregou olho toda a noite a segurar na tenda para que esta não fugisse com a fúria do vento e da chuva.

Levantámo-nos de madrugada e depois de uma trôpega fila para uma caneca de café a ferver temperado com um golo de aguardente, fizemo-nos de novo ao caminho. Só parámos às cinco e meia da tarde, perto de Torres Vedras, nas termas dos Cucos, onde ficámos acantonados, distribuídos por alguns pavilhões vazios.

Apesar de agora ficarmos deitados em esteiras espalhadas pelo chão, a coisa foi muito melhor que na noite anterior. No dia seguinte, mais descansados, fizeram-nos percorrer montes e vales por mais de 30 quilómetros. Nunca chafurdei em tanta lama junta! As botas metem água por todos os lados e até já mudei de meias uma vez. Creio que ainda hoje voltarei a mudar. Passaremos a noite em Silveira em alojamentos que ainda não conheço, arranjados pelo abade da freguesia.
(Um magnífico palheiro cheio de palha seca e quentinha que nos transportou ao Paraíso…)

Presentemente estou a escrever-vos sentado atrás de um canavial, onde estou com outros camaradas, a preparar uma emboscada ao pelotão que nos tem seguido até aqui. Só existem duas balas (de madeira, claro!) para realizar o simulacro e vou ser eu quem vai dar um dos tiros.
Por todo o lado, em que temos passado, é uma festa para a miudagem que, até fogem da escola para nos ver, meter conversa e correr atrás de nós.
E se não fosse uma água-pé que, pelo caminho, uns camponeses nos ofereceram, creio que não teríamos chegado até aqui tão animados
Amanhã teremos um percurso menor e portanto um maior descanso.


(O tempo decorrido entre esta carta e a anterior, foi passado principalmente no Quartel do antigo RAP 2 em V.N. de Gaia, onde fui colocado após a conclusão do curso de oficiais milicianos, com a patente de Aspirante a Oficial. Aí dei instrução a um pelotão de recrutas, integrado numa Companhia Independente destinada a embarcar para… Moçambique, Namaacha, destino que depois não se cumpriu para grande aflição nossa. Os altos mandatários da Nação começavam já a manobrar febrilmente os peões sobre o tabuleiro de jogo, sem que se vislumbrassem resultados concretos. A juventude de um povo servia de carne para canhão…)

A bordo do “Uíge” – 12 Maio 1964
Em Lisboa não vi ninguém da família e, por conseguinte, não vi também ninguém de quem me despedir.
Chegámos a Lisboa de comboio por volta das oito horas da manhã. Meteram-nos logo em camionetas e levaram-nos para o cais de embarque em Alcântara. O barco é o "Uíge" como já sabem e vai servir apenas para o transporte das tropas. Mais de mil soldados, contando connosco, tudo com destino… à Guiné.

Sim, vamos para a Guiné e isso era a outra coisa que tinha para vos dizer e que, tinha mantido em segredo. Afinal já não vamos para Moçambique como estava prometido de início. À última hora mobilizaram-nos para a Guiné, como aditamento aos soldados enviados agora para lá.

A viagem de navio vai demorar seis dias, sem escala em qualquer porto de mar. Só de vez em quando é que passa por nós outra embarcação lá muito ao longe.
Os oficiais vão todos instalados nos camarotes de 1.ª classe. Eu e o Cardoso ocupamos um, com quarto de banho privativo, ar condicionado, ventoinha, etc., todos os requintes de conforto, mesmo junto ao camarote do comandante do navio. As refeições são excelentes e constituem, por assim dizer, uma ansiada quebra na rotina diária. À noite há cinema ao ar livre, pois o navio é tão pequeno que nem sequer tem uma sala de cinema. Os filmes são, quase todos, comédias ligeiras e dois deles, já os tinha visto há dois ou três anos.

O gira-discos não funciona porque, com a pressa, nem me lembrei de comprar as pilhas. Mas não faz mal porque há altifalantes espalhados por todo o convés sempre a vomitar música estridente.

Nos dois primeiros dias enjoei um bocado, mas agora ando perfeitamente à vontade. Gosto imenso da vida no mar. Sabendo ocupar o tempo não há vida melhor. Logo que desembarque enviar-vos-ei esta carta, para que não estejam mais aflitos. Estou bem, não me falta nada e, principalmente, estou cheio de boa disposição. De todos nós, sou até o mais bem-disposto. Veremos depois.
Digam ao Zé que ele havia de gostar de fazer esta viagem e conhecer estas paragens. Ainda hoje vi peixes voadores formidáveis.

CG
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Nota de CV:

Vd. poste de apresentação de 6 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4787: Tabanca Grande (170): Carlos Adrião Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Bissau, Pirada, Bajocunda e Paúnca (1964/66)

Guiné 63/74 - P4820: Notas de leitura (15): As memórias do inferno de Abel Rei (Parte II) (Luís Graça)



Guiné > Região do Oio > Bissá e Porto Gole > CART 1661 1967/68) > Imagens do destacamento de Bissá, no tempo em que lá esteve o Abel Rei, com o o 3º Gr Comb... Na foto de baixoi, tirada em Porto Gole, o Abel Rei está escrever algumas linhas do seu diário, mais transformado em livro.

Foto: © Abel Rei (2002). Direitos reservados


Abel de Jesus Carreira Rei – Entre o Paraíso e o Inferno: De Fá a Bissá: Memórias da Guiné, 1967/1968. Prefácio do Ten Gen Júlio Faria de Oliveira. Edição de autor. 2002. 171 pp. (Execução gráfica: Tipografia Lousanense, Lousã. 2002).

Notas de leitura > II Parte (*)

por Luís Graça

A morte do Capitão de 2.ª Linha, o balanta Abna Na Onça, em Bissá

Entretanto, alguns dias depois da ocupação de Bissá, em 7/4/67, que passou a ser um destacamento, guarnecido por um pelotão (-) da CART 1661 e uma companhia (-) da Polícia Administrativa de Porto Gole, o dia 15 de Abril de 1967 seria um “dia trágico”: um ataque do PAIGC a Bissá, de duas horas, na noite de 14 para 15 de Abril de 1967, fizera sete mortos e cinco feridos . Na sequência deste desastre, o destacamento foi abandonado…

Pela primeira vez o autor não esconde que lhe vieram “as lágrimas aos olhos” (p. 69). A tragédia abatera-se sobre Bissá e Porto Gole:

“Houve choro de todos, com gritos e desmaios das mulheres, como que adivinhando o que aconteceu, entraram de rompante, dentro do destacamento, numa altura em que procedíamos à pesagem de peixe frecso, chegado do rio… Tinha morrido um capitão de 2ª linha, mais seis nativos, todos da Polícia Administrativa, e todos eles com as famílias cá na Tabanca de Porto Gole. Morria o homem em quem se tinham fortes esperanças para acabar com a guerrilha inimiga na zona – o capitão Abna Na Onça por ser corajoso e respeitado por negros e brancos”.

E sobre a importância deste aliado, balanta, das autoridades portuguesas, acrescenta o Abel Rei: “Um homem que, desde o início da guerra, vinha enfrentando, com máxima inteligência, aqueles que o fizeram sofrer, matando-lhe toda a família; perseguindo [o Inimigo], matando, capturando armas. Este foi o seu fim, só porque estava do nosso lado". (15/4/67, Porto Gole, pp. 69/70).

Em 20 de Abril de 1967, uma força, comandada pelo próprio Cap da CART 1661, e composta pelo 1º Gr Comb e pelo Pel Caç Nat 53, partiram para Bissá, com a intenção de reocupar o destacamento, que na altura pertencia ao sector do BCAÇ 1888 (Bambadinca).


No Inferno de Bissá

Em 13 de Maio de 1967, o Abel (integrado no seu Gr Comb, o 3º) é destacado para Bissá (onde permanece 15 dias).

É “um destacamento composto por oito casernas-abrigos, vedado com arame farpado e iluminado com (…) petromaxes” (14/5/67, Bissá, p. 84)…

E acrescenta o autor:

“Está cercado por tabancas cujos habitantes são de raça balanta, das quais foram queimadas as mais próxmas para melhor defesa do mesmo. Fica rodeado de bolanhas (terrenos planos cobertos de capim) a nascente, sul e poente, e matas pelo norte – o ponto mais perigoso, e pelo qual os turras têm possibilidades de nos atacar. Há imensas árvores, e de grande porte, que foram deixadas mesmo dentro do aquartelamento”…

A força ali destacada era composta por um grupo de combate da CART 1661 e duas secções de polícia administrativa. 

“Está cá uma secção de sapadores que, além de vedarem o destacamento e armadilharem o s pontos mais estratégicos, fizeram um forno para cozer o pão, e estão a fazer um refeitório e cozinha” (pp. 84/85).

A fonte de abastecimento de água é um charco: 

“Pelas cinco horas, vou habitualmente tomar banho, a uma poça com água da cor de barro, acinzentada, mas que constitui a nossa única base para limpeza, e também onde vamos buscar água para beber” (17/5/67, Bissá, p. 87).

Há uma hostilidade passiva por parte da população local, agravada pela atitude de suspeição dos militares portugueses em relação aos balantas: 

(…) “Fui apanhar alguns mangos, e dar os bons dias a quatro bajudas (…) que andavam a carregar com feixes de palha à cabeça, mas que se limitaram a olhar-me com curiosidade, não respondendo nada!”… 

Comentário (ingénuo) do autor: 

“Não entendo como é que a nossa cultura, que há meio milhar de anos se espalhou por estas terras, nunca os ensinou a falar a nossa língua?!” (18/5/67, Bissá, p. 88).

No dia seguinte, numa coluna de duas viaturas a Porto Gole, para ir buscar o correio e levar um “soldado castigado” para a sede do comando da companhia, o Abel e os seus camaradas encontram treze bajudas e dois homens: 

“Estavam munidos de catanas e machados” (…) e “quando nos viram, largaram logo a fugir (sendo o mais natural que tivessem ido fazer algum ‘serviço’ aos turras). Fizemos um cerco, e apanhámos o ‘bom pessoal’ (termo usado em relação aos civis nativos, que jogam com os dois lados) – que disse andar à lenha! (…).

Em Setembro de 1967, o Abel voltou para Bissá com o seu Gr Comb. No dia 3 há um primeiro contacto com o IN que faz uma flagelação a um tabanca das proximidades, Funcor, em pleno dia, às 14h… Os de Bissá respondem com morteiro 81/ mm; o PAIGC riposta com morteiro 60/mm (p. 105). A 6 de Setembro, uma força da guerrilha (estimada, com evidente exagero, em 180 elementos, segundo a história da unidade, citada pelo Abel), entra na tabanca de Bissá e flagela o destacamento. Há uma baixa mortal, confirmada, entre os atacantes, sendo enterrado dentro do arame farpado:

“Foi a primeira vez que vi de perto, um turra fardado (embora morto!). Tratava-se de um homem forte e tipo da raça balanta” (6/9/67, Bissá, pp. 105/106). Estava equipado com uma espingarda semi-automática Simonov M21, devendo por isso ser um milícia popular do PAIGC e não propriamente um guerrilheiro das FARP (reorganizadas no final de 1967)… A 8 de Setembro há uma nova flagelação a Bissá, com morteiro 82 e armas automáticas… Aumentam as dificuldades de abastecimento do destacamento, devido à chuva, às minas e às emboscadas…

Setembro e Outubro de 1967 vão ser dois meses negros para a CART 1661. O primeiros morto da companhia devido a explosão de anti-carro, ocorre a 16 de Setembro de 1967, com oito meses de comissão, quando uma coluna auto seguia de Porto Gole para o cruzamento da estrada para Mansoa onde se iria encontrar com forças de Bissá, para entrega de géneros alimentícios.

“Balanço: quatro mortos, sendo dois brancos e dois pretos, e mais treze feridos graves; uma viatura em pedaços; e diversos materiais estragados!” (…) (16/5/67, Bissá, p. 110).

Os mortos, todos do Pel Caç Nat 54 (com excepção do condutor), foram o Fur Mil Álvaro Maria Valentim Antunes, casado, natural de Portalegre, comandante da coluna, e os soldados guineenses Mamadu Jamnca e Adulai Sissé. O condutor era o Sold da CART 1661, Manuel Pinto de Castro.

Esta ocorrência é referida pelo José Brandão, no seu livro Cronolohia da Guerra Colonial: Angola, Guiné, Miçambique, 1961-1974 (Lisboa: Prefácio, 2008, p. 165): 16/9/1967: “Morrem em combate na Guiné 4 militares do Pelotão de Caçadores 54”.

No dia seguinte ao tentar recuperar a viatura sinistrada, as forças de Porto Gole sofrem um emboscada…

A 2 de Outubro Bissá volta a ser atacada, durante três horas… Eram 9h3o quando rebentou a primeira roquetada… O Abel escrevia dentro da enfermaria, “onde durmo, e estava a ouvir rádio”…A história da unidade fala em 150 elementos IN, os quais raptaram seis elementos da população e destruíram várias moranças…

A 5 de Outubro, uma viatura saída de Porto Gole em direcção a Bissá faz accionar outra mina A/C. Balanço: 1 morto e 26 feridos. A 6, uma nova mina (desta vez incendiária!) com emboscada (por um grupo calculado em 80 elementos), junto ao local do rebentamento da mina anterior, faz 10 mortos e mais de duas dezenas de feridos, “com queimaduras, todos evacuados para a Metrópole”…

Diz-nos o Abel, em nota de rodapé, que “para estas evacuações, foi preciso um avião especial de emergência que, ao chegar a Lisboa, fez correr a notícia de que Bissau tinha sido bombardeada, simultaneamente ‘boatado’ pelo inimigo)” (p. 114).

Nesse dia, Abel estava em Bissá, fazendo contas à vida de ‘cabo vagomestre’, sem comer para dar ao pessoal… mas no dia 8/10/67 fez o balanço desta “série negra” que fez de Bissá “o pior aquartelamento” (p. 166) da Guiné, nessa época.

“Tanto na mina como na emboscada, foi precisa imediata colaboração da aviação, que desta vez chegou de pronto, vindo dois bombardeiros que ajudaram os helicópteros a localizar o acidente” (8/10/67, Bissá, p. 115).

O José Brandão, na sua Cronologia da Guerra Colonial, limita-se a referir que no dia 5/10/1967 “morrem em combate na Guiné 2 militares da CART 1661”, o 1 Cabo José Andrade Couto Pinto, natural de Santo André, Bustelo, e o Sold Manuel, natural de Lixa, Fornos. E que no dia seguinte morrem mais cinco: 1º Cabo Abel Carvalho Martins (Montalegre), 1º Cabo Antónoo Ribeiro Machado Sousa (Mato, Ataíde), Sold Artur Rodrigues Alves (Sabuzedo, Mourilhe), Sold João Pimentel Fernandes (Boi Morto, Oriz, São Miguel), Sold José Coelho do Nascimento (Cepelos)…

O Abel Rei fala em 7 mortos. A história da unidade fala em 10 mortos, algumas das mortes tendo provavelmente ocorrido já no hospital… Até na contabilidade das nossas baixas mortais na guerra colonail, há critérios divergentes…

O rol de desgraças não se fica por aqui: 

“(…) em Bissá, se não temos mortos, os vivos não têm que comer. Há mais de oito dias que não temos vinho, cerveja ou outros líquidos que se bebam”… Por seu turno, “o comer acabou: estando-se a comer, ora carne de vaca, ora bacalhau com pão e… água!” (p. 115/116). A 1 de Novembro de 1967, come-se peixe miúdo, “pescado nas poças da bolanha” (p. 117).

Em conlusão, Bissá “cá sabi”… A 11 de Novembro, o Abel regressa a Porto Gole, sendo rendido o seu Gr Comb. “Lá ficaram as piores recordaçõs e… um pedaço de cada um” (p. 118).


‘Apanhado pelo clima’

Com menos de 3 meses de Guiné, o autor interroga-se se não estará já “apanhado pelo clima” (25/4/67, p. 75). Os fantasmas do álcool voltam a aparecer no seu diário: “ de há uns dias para cá, tem sido bebedeira certa; não sendo ninguém prejudicado com isso, talvez só eu!”…

A 30 de Março de 1967, o Abel comemorado, como devia ser, o seu 22º aniversário de nascimento: “À noite, e depois de várias misturas, emborrachei-me” (…) (p. 59).

Porto Gole não tem ainda electricidade: em 4/4/67, o Abel passa a ficar encarregue da manutenção e reparação dos ‘petromaxes’ em serviço na tabanca. Como se não bastasse já a ‘chatice’ de ser cabo, passa também a desempenhar as funções de ‘vagomestre’ (competindo-lhe adquirir e distribuir os géneros no rancho) (12/4/67).

Não esconde a conflitualidade entre camaradas, em especial dentro da sua secção, com destaque para o relacionamento com o seu furriel: 

“Quem nos obriga a andar cá, não olha às ‘qualidades’ dos que comandam, e somos nós os que sofremos consequências. Esse meu registo, gostaria um dia passar uma ‘esponja’ sobre tudo isto!” (9/4/67, p. 65).

Em Bissá, as relações com o seu alferes, um antigo seminarista, também foram tensas: é obrigado a trabalhar de pá e pica, sob um sol escaldante (15/5/1967, Bissá, pp. 85/86).

(Continua)
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Nota de L.G.:

(*) 12 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4815: Notas de leitura (14): As memórias do inferno de Abel Rei (Parte I) (Luís Graça)

Guiné 63/74 – P4819: Estórias do Zé Teixeira (38): Mataram o futuro (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

1. O nosso camarada José Teixeira, ex-1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70, enviou-nos mais uma estória em 8 de Agosto de 2009:

MATARAM O FUTURO

No dia 24 de Julho de 1968, uma mina A.C. (Anti-Carro) roubou a vida a um camarada que ia em cima da viatura de rádio a comunicar com a base em Buba. Foi o meu primeiro encontro no mato com o IN e o primeiro camarada que vi morrer sem lhe poder valer.

Nunca soube o seu nome. Apenas sei que pertencia à Companhia dos Lenços Azuis, que estava estacionada em Aldeia Formosa e nos foi buscar a Buba para de seguida partilharmos aventuras em comum durante mais de meio ano.

Do Meu Diário
Julho 1968/Buba, 26

… O primeiro ataque foi de abelhas. Eram tantas que mais pareciam uma pequena nuvem. Era ver quem mais corria a fugir da sua picada. Eu fiquei quedo como um penedo a conselho de um soldado da milícia que estava a meu lado, me arrastou para o meio de uns arbustos me mandou cruzar os braços e ficar muito quietinho.

Ele foi a “mão de Deus” que me protegeu das picadas das abelhas. Assustado e perturbado pelo zumbido à minha volta e pela cor que o meu corpo foi tomando na medida em que se fixavam à minha roupa, na cara e na cabeça.

Neste estado pude apreciar a confusão de uma fuga precipitada, um tanto hilariante de toda a gente, que protegia a coluna de viaturas naquela área. Se o IN tivesse atacado nesse momento seria um desastre total, tal foi a desorganização gerada.

Depois... veio aquela mina roubar mais uma vida e pôr duas em perigo...

Inimigo cobarde!... frente a frente não consegue atingir os seus objectivos e ataca à traição, num pequeno descuido dos picadores.

Que culpa terá aquele jovem que me morreu nas minhas mãos, que os homens não se amem?

Que culpa tenho eu?

A sua vontade de fugir à morte impressionou-me e ainda hoje parece que estou a ouvir os seus últimos e já ténues gritos de vida.

MATARAM O FUTURO

O destino, no tempo o marcou.
Aquela hora!
A mina escondida!
Aquela viatura!
A quinta que passava,
E a mina que deflagrou
Uma vida cheia de vida,
A morte a levou.
Destino cruel.
Demasiado duro.
Deixou de ser a esperança, no futuro.
Para sempre partiu,
Aquele jovem.
Cheio de saudades de um tempo,
De quem nem sequer se despediu.
Um tempo, para com garra viver,
Mas…
Ficou sem tempo, para o conhecer.
Já não vejo!
Já não vejo!
Vou morrer!
Com ténue voz.
Balbuciou.
Tremendo grito.
Eu quero viver!
E…
Ali se ficou.
Até morrer.
Sede. Muita sede.
Aquela vontade danada de viver,
E um corpo a arrefecer!
Vida.
Quase sem vida.
E eu…
Sem lhe poder valer.
Tremendo momento.
Num mundo mais pobre,
Num futuro em sofrimento.

Aldeia Formosa, 1968 – Agosto, 28

Um abraço,
Zé Teixeira
1º Cabo Aux Enf