sábado, 29 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4879: Gavetas da Memória (Carlos Geraldes) (5): A CART 676 chega a Pirada

1. Neste episódio de Gavetas da Memória de autoria de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66, assiste-se à chegada da 676 a Pirada.


Guiné-Bissau, Out64
A CART 676 chega a Pirada


Após os primeiros 5 meses de permanência em Bissau, onde a CART 676 se desdobrou nas mais variadas missões: patrulhamentos de rotina nos arredores da capital, serviço de manutenção do aquartelamento do Batalhão 600, e principalmente ter desempenhado papel importante (extenuante e perigoso) em cinco grandes operações mandadas executar pelos altos comandos militares, a norte e a sul de Bissau, nas primeiras tentativas para combater uma ameaça que já se adivinhava muito séria, finalmente a Companhia foi enviada para uma missão de quadrícula, isto é, foi ocupar uma determinada zona a nordeste do território, junto à fronteira com o Senegal, para reforçar o policiamento de uma área que se temia passar a ser, a breve trecho, campo de acção privilegiada do inimigo.
Felizmente isso não se veio logo a confirmar e, pode-se dizer que a CART 676 passou aí umas boas e merecidas férias.

Até à nossa chegada, Pirada, Bajocunda e Paúnca, estavam entregues a pelotões de soldados nativos, comandados por alferes e furriéis brancos que coitados pareciam mais uns pobres náufragos famintos quando nos vieram receber de braços abertos, felizes por verem de novo gente igual a eles. Entregues a uma inércia embrutecedora, estavam à beira, com certeza, de um qualquer colapso físico ou psíquico a avaliar pelas suas caras onde se espelhava uma desmesurada e incontida alegria por verem acabado aquele calvário.

A Companhia não se deslocou toda de uma vez. Primeiro foi o 1.º e o 2.º Grupos de Combate, e mais a secção de Comando e Serviços da própria Companhia. Seguia connosco também o alferes médico para verificar e estabelecer as condições sanitárias do aquartelamento. Enquanto o 1.º Grupo e a secção de Comando e Serviços se dirigia directamente para Pirada, o 2.º Grupo ficou logo em Paúnca onde já tinha instalações mais ou menos adequadas.

Quando entrámos em Pirada tivemos logo uma recepção entusiasta por parte da população que nunca tinham visto tanta tropa junta. Foi uma festa que os soldados quiseram logo aproveitar, abraçando as mais desprevenidas bajudas que lhes caíam nas mãos, de mistura com os restantes elementos da população, para disfarçar…

Um dos comerciantes locais, apareceu logo com um criado que sobraçava um enorme cesto de pão acabado de cozer no forno privativo do seu estabelecimento e, começou a distribuí-lo pelos soldados que o fitavam boquiabertos com a surpresa.

Pirada, naquela época, resumia-se a uma rua de terra batida que tinha a meio uma espécie se praceta, com um pequenino monumento e tudo.
Para a esquerda era o caminho para o aglomerado populacional, as palhotas.
Para a direita o caminho levava a uma pequena pista de aviação. Em cada canto desta praceta, erguiam-se quatro edifícios caiados e com telhados de telha. Eram as casas comerciais, representantes locais de outras sediadas em Bissau. Seguindo sempre em frente chegávamos à fronteira com o Senegal, ali a escassos metros. A meio caminho erguia-se a casa do Chefe de Posto e o edifício do Posto Sanitário, ao lado, um celeiro de mancarra que provisoriamente servia de quartel para um pelotão indígena. Era ali que a Companhia iria residir… 150 homens, mais ou menos, iriam ficar alojados onde anteriormente estavam pouco mais de 30…

O 1.º sargento Machado, velho militar transmontano, já muito batido naquelas andanças de trocas e baldrocas de aquartelamentos, depressa se pôs em campo para avaliar a situação.

Depressa vieram as más notícias. As instalações eram piores do que imaginávamos. As camas existentes estavam impróprias para continuarem a ser utilizadas. As enxergas, se àquilo lhes poderíamos chamar assim, eram autênticos viveiros de percevejos e bicharada. Claro que dei logo ordens para juntar tudo num monte à porta da caserna e chegar-lhe fogo, para nos livrar de tal peste.
(Para meu espanto, passados meses, recebíamos mensagens da Sargentada da Manutenção de Bissau, a exigir a devolução daquelas enxergas! Foi um caso sério para os convencer que não tinha havido outra alternativa senão queimá-las)

Instalações sanitárias não havia, nem cozinha, digna desse nome. Era tudo improvisado, à preto que, coitados lá se amanhavam com o pouquíssimo que lhes davam. Nem conseguíamos imaginar como tinham conseguido aguentar até ali. O alferes e o furriel que lá fomos encontrar com a farda em farrapos, responsáveis por aquela tropa fandanga, embaraçados, coçavam a cabeça. O que quiseram foi entregar-nos, o mais depressa possível, os pobres pertences que possuíam e, rapidamente desapareceram da nossa vista, estrada fora a caminho do Gabú.

Desanimados, mas ao mesmo tempo alegres por terem chegado até ali, sãos e salvos e, esperançados de que o amanhã seria melhor, os soldados deitaram mãos ao trabalho e, embora tivessem que dormir no chão, naquelas primeiras noites, a caserna ficou com melhores condições de conforto e higiene.
Para alojar os sargentos e os oficiais também se arranjou solução. O nosso amigo comerciante que tinha encabeçado a recepção às tropas recém-chegadas, também já tinha pensado nisso.

Como de propósito tinha mandado arranjar uma casa, situada nas traseiras de um dos estabelecimentos comerciais que, chegava para albergar os dois oficiais e alguns dos furriéis. Os que não couberam, foram alojados pelo Chefe de Posto, o senhor Barbosa, um simpático velhote que vivia sozinho e ansiava por companhia. A casa que ocupava era demasiado grande para ele e de certo modo até ficava mais resguardado a dormir debaixo do mesmo tecto que a tropa.

Ao fim da tarde do dia da chegada, tudo tinha ficado mais ou menos tratado.
Depois de um retemperador banho de bidão e de um opíparo jantar para os oficiais e sargentos, em casa do nosso anfitrião, o nosso futuro anjo da guarda, Mário Rodrigues Soares era assim que ele se chamava, sentíamo-nos num paraíso até aí inimaginável.

Passados mais de quarenta anos recordo ainda como se fosse ontem.
Viana do Castelo, Agosto de 2009
Carlos Geraldes

Pirada > Cozinha improvisada

Pirada > Os primeiros chuveiros dos Soldados

Pirada, 01DEZ64 > Eu, Cap Seco, Alf Correia e o professor António Óscar Baldé

Pirada, AGO65 > Cap Barão da Cunha, Cap Tadeu, Alf Médico Duarte e eu
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4865: Gavetas da Memória (Carlos Adrião Geraldes) (4): Abel, o nosso Cabo Maqueiro

Guiné 63/74 - P4878: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (12): O nosso Alferes Médico na vida civil...


1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira (JERO), foi Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/65), enviou-nos mais uma estória, com pormenores "deliciosos", que faz parte do seu livro "Golpes de Mao's - Memórias de Guerra", com data de 25 de Agosto de 2009, que mais uma vez muito agradecemos:


Camaradas,

Quarenta e tal anos depois... os setenta!


O nosso Alferes Médico na vida civil...


O tempo passa e... há poucos meses atrás (em 12 de Abril de 2008) estive na festa de aniversário dos 70 anos do meu Médico.

Setenta anos!!!


Noutros tempos... 70 anos eram uma idade complicada, associada à ideia de um velhinho caquéctico, trôpego, que já não dizia coisa com coisa.

Nada mais errado quando o septuagenário em causa é o Dr.Alfredo Roque Gameiro Martins Barata.

Tirando algumas rugas, os cabelos grisalhos e umas gramas a mais continua na mesma: corpo de “alferes”, mexendo-se com desembaraço, tranquilo, afável e bem disposto.

Na família tem a fama de... distraído. Na vida militar essa”fama” não colheu e se algumas dificuldades teve... terá tido mais a ver com o facto de ser uma pessoa muito bem-educada.

E, como se sabe, na vida militar encontra-se filhos de... muitas mães com quem, muitas vezes, não resulta, um tratamento do tipo “português suave”! Mas... adiante.

Como não podia deixar de ser na festa dos seus 70 anos recordámos a viagem acidentada do Rio Cacheu dos anos 65!«Ah sim, lembro-me. Foi do género da estória "da ida à guerra do Raul Solnado”».

Os filhos a seu lado olhavam-no espantados pois não conheciam essa aventura de seu Pai.

Dei-lhes a ler a “estória” do Diário da C.Caç. 675.

De espantados passaram a... pasmados.

Além de excelente Médico foi, mais tarde, “Anjo da Guarda”de muita gente – desde os tempos da Guiné até aos dias de hoje ajudou inúmeros ex-militares da sua Companhia – .

Sempre compreensivo e de extrema bondade, “apagando” propositadamente a sua importância nas ajudas que concedeu a quem o procurou.

Os “suplementos” biográficos que se seguem são da responsabilidade do seu irmão mais velho, José Pedro. «História do meu irmão mais novo, contada pelo irmão mais velho…

Ao irmão mais novo, sentado nos degraus do pátio, contava eu histórias inventadas ali.

Já nessa altura era muito distraído e perdia coisas. Gostava de guardar as caixinhas e os “jornalinhos” dos remédios, o que já apontava para uma vocação diversa da familiar, virada para os bonecos e as pinturas. Não viria a arrepender-se!

Já crescidote, observava com muita atenção uma menina loura que descia a Rua ao vir da Missa, acompanhada pelo irmão (dela, claro).

Mais tarde, distraído, mas esperto, tratou de casar com a menina loura.

Foi depois para a escola dos médicos, como era de esperar...

E saiu enfim Médico, o que significa que foi logo direitinho para África, pois!...

Iniciou a sua carreira hospitalar em África, assegurando o funcionamento do Hospital de Binta.

Nesta parte poderemos dar uma “ajuda” porque tivemos por perto...

Além dos militares que frequentavam o “Posto de Socorros" (no “Largo da Tomada da Pastilha”), havia também grande número de nativos, que apresentavam o mais variado tipo de enfermidades.

Tivemos casos de lepra (uma doença que era suposto já estar então erradicada...), elefantíase e um terrível surto de sarampo, que causou a morte a mais de seis dezenas de crianças da tabanca de Binta.

No que respeita aos nossos militares havia uma doença muito comum antes das idas para “o mato”, com sintomas muito habituais tanto ao nível de praças, como sargentos e oficiais...

Vómitos, diarreias e repentinas dores de cabeça que tinham muito a ver com uma coisa chamada "cagaço", medo e/ou receio.

Com o tempo aperfeiçoámos uma “mezinha” que atenuava a “doença”: o comprimido nº 8 do L.M.(aspirina), fornecido em diferentes embalagens, conforme a graduação do “paciente”, que ia resolvendo quase todos os problemas.

Tivemos também momentos bem dramáticos aquando da morte dos nossos militares.

Lembro-me particularmente de ter chorado abraçado ao meu Alferes Médico a morte do soldado Nascimento, quando soubemos no dia seguinte “via rádio”, que já tinha chegado cadáver ao Hospital de Bissau.

No que respeita a Binta não chegámos a ter um Hospital mas quase...


Uma das histórias clínicas mais espantosa passou-se com uma nativa que um dia se apresentou à consulta queixando-se de ter engolido uma cobra enquanto dormia!

O Dr. Barata já falava umas coisas dos dialectos locais e rapidamente percebeu que a sua doente devia padecer de lombrigas que, durante o sono, lhe teriam chegado à boca(?!).

Pensou num vomitório e na apresentação de um pequeno réptil à doente após a medicação, “cena” que ficou marcada para o dia seguinte.

Entretanto encomendou-se a captura de uma pequena cobra, o que não foi difícil de conseguir.

Tudo preparado chega-se ao dia seguinte e, conforme o plano estabelecido, é administrado à paciente o vomitório, tendo por perto a pequena cobra (já morta), para no “pós–vómito”convencer a nativa que... estava curada.

O pior foi mesmo o que se seguiu. O vomitório, durante alguns longos minutos, provocou vómitos sim mas a todo o pessoal do Serviço de Saúde menos à doente que... nunca mais vomitava.

Finalmente lá aconteceu e a cena da cobra resultou inteiramente.

Também um parto feito na tabanca, com a parturiente de joelhos, virada para Meca teve alguns contornos de surrealismo...

Na semi-obscuridade da morança (cabana), onde corriam galinhas e cabras, estavam vários familiares expectantes e uma velha parteira-feiticeira, que veio a cortar com um facalhão de “cozinha” o cordão umbilical...

Ainda me lembro do extraordinário sentido de humor do Dr. Barata referindo-se à sua “colega” parteira quando perguntou pelo bisturi para cortar o cordão umbilical!

Voltando aos “suplementos” biográficos do seu irmão mais velho, José Pedro.


Ainda em Binta... «Imagino que, absorto nas suas responsabilidades, distraído como é, não se tenha apercebido bem de certos inconvenientes e certos incómodos do momento, a ponto de ter convidado a senhora loura a passar umas férias, alojando-se no luxuoso Resort & SPA “The Derelict Madeiro’s House”, (de estilo colonial) – aproveitando a época baixa do turismo da Guiné, na região do Cacheu.

A senhora branca e loura causou grande sensação em Binta, tornando-se mesmo uma «atracção turística».

Mais uma achega da nossa parte: A chegada a Binta de Manuela Martins Barata foi, além de uma “atracção turística”, uma prova de afecto e coragem que não está ao alcance de qualquer pessoa.

Esteve ao alcance de uma jovem Senhora, que deixou Lisboa para ir ter com ao seu marido aos confins do mundo!!!


Além do desconforto das instalações do “Resort” é preciso uma coragem que, na altura, nos espantou a todos. E que teve efeitos benéficos na vida da Companhia, que rapidamente se habituou à senhora branca e loura, que nos trouxe de novo a possibilidade de ter, por perto, uma “procuradora” das nossas mães e noivas que tínhamos deixado na Metrópole.

E a senhora branca e loura esteve em Binta sete meses, o que é uma proeza extraordinária.

Voltando aos “dados” do irmão mais velho, José Pedro.

«... Mas ele não se distraiu, não se esquecendo de a trazer de volta... (da Guiné)... e providenciou depois para me dar dois magníficos sobrinhos (Passei a ter oito! Nada mau!...)

Começou a entrar depois na Sociedade Internacional de Gentes de Artes e Saberes fora do alcance comum, que se encontra em reuniões obscuras e limitadas a iniciados (Simpósios, Congressos e coisas dessas, para disfarçar...); gente dedicada a práticas esotéricas e misteriosas, reservadas e ocultas.


É uma gente que se reúne frequentemente em cavernas fechadas, longe das vistas do comum onde, sob luzes cruas e intensas e trocando em voz baixa palavras crípticas, todas de cara tapada e vestindo burkas verdes, se dedica a rituais secretos ominosos.

Pelo menos é o que parece, aos não iniciados, que não em acessos àquelas celebrações inquietantes! (“Al-Quaeda”? Seitas tenebrosas?).

O meu irmão diz que não: que é apenas “cirurgia”, e como ele é seriozinho eu, enfim, acredito...

Entretanto, nos intervalos dedica-se a ouvir música ou a visitar países distantes nos 5 continentes, paraísos exóticos e longínquos, e até indo mesmo ao Algarve.

Com isto tudo, agora que ele faz 70 anos, acho que chegou a altura de ser ele a contar histórias ao irmão mais velho!

Nota – Este documento deverá ser actualizado logo que ele fizer 80 anos.»

Subscrevemos e... morra quem se negue!

Um abraço,
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675



Gravuras: José Pedro Roque Gameiro Martins Barata (2009). Direitos reservados.
Fotos: José Eduardo Oliveira (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:


Guiné 63/74 - P4877: Estórias do Fernando Chapouto (FERNANDO SILVÉRIO CHAPOUTO) (1): As minhas memórias da Guiné 1965/67 – O embarque no Niassa

1. Do nosso Camarada Fernando Chapouto, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCAÇ 1426 (1965/67), Geba, Camamudo, Banjara e Cantacunda, publicamos neste poste a primeira parte das suas memórias, referente ao embarque da sua Companhia no navio Niassa e à sua tranquila 1ª patrulha:

Camaradas,

Embarquei no dia 18 de Agosto de 1965, junto com a minha Companhia, com destino à Guine no navio Niassa, em Lisboa.

Foto no Cais da Rocha Conde de Óbidos, onde se pode ver, ao fundo, a ponte sobre o Rio Tejo, então ainda em fase de construção.

Nesta foto lá ia eu, em pleno mar alto, a jogar ténis de mesa

Chegamos a Bissau no dia 24 do mesmo mês, de madrugada ainda a dormir.

Quando acordei, levantei-me e fui espreitar pela janela.

O barco estava parado, em frente ao cais de Pidjiguiti, e apenas vi nativos.

Fixei-os bem (só negros) e, de repente, pareceu-me que a “alma” me caiu aos pés, mas logo pensei na missão a cumprir e que nada tinha a temer já que acreditava, com a minha fé, que o meu destino só a Deus pertence.

Durante a manhã desembarcamos e fomos para o quartel de Santa Luzia, junto ao Quartel-General.

No primeiro dia no quartel de Santa Luzia andei com o camuflado

Mais tarde mudei de farda e estreei a de piriquito (a minha Companhia foi uma das primeiras a usá-la na Guiné)

Permanecemos naquele aquartelamento até meados de Outubro, como companhia de intervenção.

Durante este período efectuamos vários patrulhamentos e operações.

PRIMEIRA PATRULHA DE RECONHECIMENTO

Ao quarto ou quinto dia, o comandante de pelotão chamou-me e disse-me que, no dia seguinte, ia fazer um patrulhamento a uma tabanca para os lados do aeroporto, com a minha secção.

Um patrulhamento por um piriquito que tão mal conhecia a zona!?

Perguntei: - Uma secção?

- Não há problemas, aqui em volta não há nada e a viatura já está tratada.

Fui dormir. De manhã, a seguir ao pequeno-almoço, chamei os meus soldados para se equiparem transmitindo-lhes que íamos sair.

Eu já estava pronto e como me disseram que não havia nada a temer, fui equipado com a máquina fotográfica. Arranjamos um guia e lá fomos visitar as tabancas referenciadas na carta.

Felizmente correu tudo bem. Falou-se com os chefes das tabancas e tiraram-se umas fotografias com as bajudas, após o que regressamos ao quartel.

Ali tive de fazer um relatório do que se passou. Como não era escritor, nem possuidor do dom de fácil e boa prosa, pedi ajuda ao Fur Mil Vaqueiro.

O relatório lá acabou por sair, seguindo o caminho habitual.

Conclui que, para começar as minhas actividades operacionais, não estava nada mau.

Foto da minha secção na 1ª patrulha nos arredores de Bissau. Da esquerda para direita: Soldados Matos e Guerreiro, Eu, 1º Cabo Alfredo, um soldado nativo (que nos serviu de guia) e o Soldado Leonel (fins de Agosto de 1965)

Foto das bajudas mexendo o milho (1ª patrulha nos arredores de Bissau)

Aqui as vêm-se as bajudas pilando o arroz numa Tabanca (1ª patrulha nos arredores de Bissau)

Mal eu adivinhava que o pior ainda estava para surgir.

Um forte abraço do,
Fernando Chapouto
Fur Mil Op Esp/Ranger da CCaç 1426

Fotos e legendas: © Fernando Chapouto Direitos reservados.
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Notas de MR:

Este é o primeiro poste desta série.

Vd. último poste do autor em:

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4876: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (VIII): Estadia em Contuboel e Sonaco com a Otília (JAN-AGO 1966)

Continuação do Diário de Guerra, de Cristovão de Aguiar (VIII)

Contuboel, 12 de Janeiro de 1966

Ontem o nosso batalhão, Sete de Espadas, so­freu dez mortos numa emboscada. Tinha ficado com o meu pelotão na base, para montar a segurança e dar apoio logístico, quando, pouco depois de terem par­tido para uma operação no mato do Caresse, terra-de-ninguém e de muita pancada, se ou­viram grandes rebentamentos na direcção que tinham tomado. Uma hora e pouco mais tarde, chegou uma viatura com os mortos a trouxe-mouxe sobre o es­trado da carroça­ria. Ti­nham morrido ali como tordos, de­pois de os guerrilheiros te­rem lan­çado algumas gra­na­das defensivas para o interior da GMC. Fiquei encar­regado de transportar aquela carne humana para Fa­jon­quito, sede de uma compa­nhia tam­bém pertencente ao nosso bata­lhão.


Fajonquito, 13 de Janeiro de 1966

Enquanto o capelão procedia às exéquias fú­nebres e rezava missa campal por alma dos dez mortos irreconhecíveis, safei-me, re­voltado, para um canto solitário, longe de toda aquela cruel comédia desumana. E pe­guei da esferográfica e do meu caderninho e fui escrevinhando:

O VISIONÁRIO

Rasguem-se as corti­nas do sacrário,
Onde ficou Jesus aprisionado
Tal como há dois mil anos no Cal­vário
Pregado num madeiro, ensanguentado...

Era Sua Pala­vra pão sagrado
E o gentio que escutava o Visionário
De tal arte ficou maravi­lhado
Que O elegeu seu re­volucionário...

Depois, o tirano, opressor do povo,
Julgando apagar esse Sol novo
Mandou matar o vate desordeiro...

Crucificaram-no então no Calvário:
- Está agora a ferros num sacrário,
Não vá Ele tornar-se guerrilheiro...


Bissau, 17 de Janeiro de 1966

Vim ao aeroporto de Bissalanca esperar a Otília, que vem passar uns meses comigo nesta guerra. Se calhar, foi uma loucura da mi­nha parte. Sem dúvida que foi. E egoísmo. Chame-se-lhe o que se quiser, mas, an­tes de morrer, gostava de deixar descendência. Ficámos instalados no Grande Hotel de Bis­sau, que só tem grandeza no nome.


Contuboel, 19 de Janeiro de 1966

Acabámos de chegar de Bissau, eu e minha Mulher. A nossa casa é um espaço vago, quarto e corredor, que me cedeu o Chefe de Posto e que fica contíguo ao edifício. Não há água nem electricidade. Alumiano-nos a petro­max. A água virá todos os dias do quartel, que fica a meia dúzia de pas­sos, para um barril que coloquei na extremidade do corredor oposta à porta de en­trada, onde, com um reposteiro, fiz um pequeno compartimento que vai servir de cozinha. Antes de minha Mulher chegar, arranjei o nosso quarto o melhor que pude: consegui uma cama de casal, pus cortinas nas janelas, cujo pano comprei no comércio do libanês e que um alfaiate indígena depois talhou, acertou e coseu, mandei fazer uma mesa de boa ma­deira africana. Este é que é verdadeiramente o chamado amor e uma ca­bana.


Contuboel, 14 de Fevereiro de 1966

A Otília está grávida, pelo menos tem to­dos os sintomas de uma mulher nesse estado: enjoos, vómitos. Se for mesmo ver­dade, isto significa que, se me for desta para melhor com um qualquer tiro desgo­vernado, já deixo rastro atrás de mim. Um filho engendrado na guerra!


Contuboel, 16 de Março de 1966

Fomos hoje a Fajonquito, povoação a mais de vinte quilómetros de distância, onde também se encontra uma Companhia de Ca­çado­res. A Otília foi comigo, a fim de consultar o médico, meu companheiro da República Corsários das Ilhas, em Coimbra, e muito nosso amigo. A Otília queixa-se das pernas, parecem picadas de mosquitos, mas não são. O Ormonde de Aguiar, assim se chama o meu velho companheiro de Coimbra, disse que se tratava de uma qualquer doença de pele e deu-lhe uns medicamentos para o efeito.


Contuboel, 7 de Abril de 1966

Quando vou para o mato por dois ou três dias, a Otília não tem medo de ficar sozinha em casa. É mesmo uma mulher de armas! Fica bem guardada pelas sentinelas que os cipaios fazem dia e noite ao Posto Ad­ministra­tivo, além de ter o quartel à mão de semear. O medicamento que o Or­monde lhe recei­tou fez muito bom efeito: já não tem nada nas pernas.


Contuboel, 23 de Abril de 1966

Faz hoje um ano que desembarcámos em Bis­sau. Não me esqueci de des­carregar a cruz na casa do calendário. Esta é já a tricen­tésima, sexagésima sexta, se me não engano. Esta­mos já a dobrar o cabo tormentó­rio. A partir de agora, começa o tempo a de­s­cer. É a altura de se principiar a ter muito cuidado com a vida, que a morte gosta de pregar partidas nestas ocasiões lembra­das.


Sonaco, 30 de Julho de 1966

O meu pelotão foi finalmente destacado para aqui, que, no meio deste inferno, é um lugar sofrível. A Otília prefere aqui estar. Temos uma espécie de casa de paredes de adobes e coberta de colmo, mesmo ao lado do quartel, mais fresca do que a de Contuboel. Da porta de trás da casa, dou as minhas ordens ao pessoal da cozinha sobre a ementa do dia. Temos aqui uma pista térrea onde poisa uma Dornier com facilidade. É lá que treino a minha con­dução no jipe que per­tence ao destacamento.


Sonaco, 9 de Agosto de 1966

A Otília fez hoje anos e por isso houve rancho me­lhorado. Dormimos com as janelas das traseiras abertas por via do calor e do peso da humidade. Para evitar que os mosquitos e outra bicheza, aqui aos milhares, mordam a gente, mantemos aceso um repelente do qual se evola uns fuminhos cujo odor intenso os afugenta. O pior são os gatos que vêm ao cheiro da comida e fa­zem, por vezes, uma estreloiçada de me pôr maluco. Ando com os nervos em franja, por isso qualquer barulho, por mais pequeno que seja, põe-me transtornado. Uma noite destas fui acor­dado e apanhei tal susto que peguei logo da espingarda, encostada à parede, à ilharga da cama do meu lado, acordei a Otília, disse-lhe que ia disparar, que se não assustasse, poisei o cotovelo esquerdo na sua já proeminente barriga, apoiei o cano da arma na mão canhota meio em concha, encostei a coronha ao ombro direito, fiz pontaria e dis­parei, uma, duas vezes. Matei um gato e os ou­tros desape­garam-se. A Otília não me disse sequer uma palavra mais azeda e tinha toda a ra­zão para o fazer. Virou-se para o ou­tro lado e principiou logo a dormir.
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Notas de CV:

Cristóvão de Aguiar foi Alf Mil da CCAÇ 800, Contuboel, 1965/67

Vd. último poste da série de 25 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4860: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (VII): Estadia em Contuboel e Dunane (OUT-DEZ 1965)

Guiné 63/74 - P4875: Cartas (Carlos Geraldes) (4): 2.ª Fase - Outubro a Dezembro de 1964

1. Quarto poste da série Cartas, e primeiro da 2.ª Fase - Mato, de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66.


2.ª Fase: O Mato

Pirada, 15 Out 1964
Cá me encontro na terra prometida. Corresponde em tudo ao que imaginava. É um lugar maravilhoso!
O aquartelamento está por enquanto em más condições e os soldados ainda não têm sequer camas para dormir, mas tudo se há-de arranjar.
Estou cá eu e o Cardoso, os meus furriéis e o meu Grupo de Combate. Os oficiais estão praticamente aboletados em casa de um comerciante daqui, um tipo formidável que nos enche de whiskies, gins tónicos e belas jantaradas.
Mas comecemos pelo princípio…

Saímos de Bissau em duas lanchas de desembarque, pois o Castro também veio connosco, estando desde já instalado em Paúnca, uma aldeia perto daqui.
Pernoitámos em Bambadinca, onde fomos muito bem recebidos pela tropa local que nos encheu de cerveja. Por volta das duas da tarde de domingo, chegámos a Bafatá, onde tivemos grande recepção com um almoço oferecido pelo Comandante de Batalhão (do qual ficamos agora a depender). Nesse mesmo dia partimos para Nova Lamego (Gabú) em camiões, onde chegámos às 19H00. Fomos recebidos pelo Tenente que comanda a Companhia lá estacionada e pela esposa que, é também a professora primária daquela pequena vila. Depois de termos jantado com eles, fomos até um clubezito organizado pelos comerciantes cá da terra. Mais um bocado de cavaqueira e mais uns whiskies terminando tudo num sono reparador em belíssimas camas postas à nossa disposição.

Nova Lamego é uma vila bastante simpática. Tem luz eléctrica, biblioteca e em breve, o tal clube inaugurará uma sala de cinema.

Segunda-feira de manhã partimos para Pirada, onde depois de uma natural balbúrdia com a mudança das coisas do pelotão de tropa nativa que, íamos render, nos instalámos finalmente na nossa nova casa.
O quartel, ou melhor, a caserna para os soldados, era um antigo celeiro de mancarra (amendoim), sumariamente transformado, com uma cerca de arame farpado em toda a volta e uns abrigos feitos com cimento, um em cada canto, para defesa e vigilância.
A aldeia consta de uma meia dúzia de casas de pedra e cal cobertas com telhas de barro. As primeiras que aparecem são para os diversos entrepostos comerciais colocados na berma da única estrada. Depois surge uma escola com uma sala de aula exactamente com o mesmo traçado das nossas escolas primárias estilo Estado Novo. Seguem-se dois edifícios, um com as acomodações para o Chefe de Posto, a autoridade civil indispensável numa zona fronteiriça como esta, e outro para um até surpreendente Posto Sanitário. A toda a volta e, a perder de vista, um aglomerado confuso de cubatas e pequenas barracas cobertas de colmo onde se aloja uma numerosa população curiosa e ao mesmo tempo receosa à nossa chegada. A estrada, e único arruamento digno desse nome que divide a povoação ao meio, segue depois, como um carreiro, para norte, na direcção do Senegal que começa a poucos metros dali, assinalado por um pequeno marco fronteiriço.

Começámos logo por ser apresentados ao comerciante mais importante cá da terra, o Sr. Mário Soares, um grande amigalhaço de toda a tropa que por aqui tem permanecido. Acompanhado de um empregado que segurava um enorme cesto cheio de pão fresco acabado de sair do forno. Ali mesmo no meio da estrada, começou a distribui-lo pelos soldados que o recebiam boquiabertos de espanto. Não poderia haver melhor recepção de boas vindas. Um verdadeiro luxo.
(Daqui em diante, sempre que mencionar esta personagem, designá-lo-ei pelo pseudónimo, M. Santos, para não suscitar quaisquer parecenças, com a figura pública actual que todos conhecem)

Como ele já sabia com antecedência, do dia da nossa chegada, muito oportunamente, tinha mandado reparar uma casa que estava desabitada e em ruínas, mesmo defronte do seu estabelecimento e que vai servir às mil maravilhas para alojar pelo menos, os oficiais e alguns sargentos. Ficou logo combinado o possível aluguer.
(Com a rendição de um pequeno pelotão nativo que era até ali toda a guarnição de Pirada, por uma Companhia de mais de 200 homens, os problemas de alojamento eram inevitáveis, pois para um oficial e um furriel que comandavam o pelotão nativo era fácil a sua instalação numa das casas comerciais, agora para cinco oficias e mais de vinte furriéis e sargentos a coisa já se tornava mais complicada.)
Momentos depois de nos termos instalado provisoriamente, tomado um banho e feito a barba, apareceu uma avioneta que aterrou numa pista de aviação existente mesmo por detrás da nossa nova casa. Inesperadamente surgiu então o Capitão da nossa Companhia que, conseguira à última hora, aquele meio de transporte para poder vir até cá e poder dar uma primeira vista de olhos. Concordando logo com o aluguer da casa, decidiu que ali passaria a ser também a Messe dos Oficiais. Como trouxera com ele, um Engenheiro Militar, tratou-se de ver o que era preciso fazer para aumentar o aquartelamento e ficarmos suficientemente bem instalados. Por enquanto os sargentos ficarão a dormir, um em casa do Chefe de Posto, um velhote muito simpático e conversador, outros aqui na nossa casa e ainda outro no Posto Sanitário.
Quanto à nossa casa é esplêndida. Tem um grande quintal, com um poço no meio e uma larga extensão cimentada debaixo de um enorme alpendre, encostado à casa, sob o qual tomaremos as nossas refeições, quando tivermos aqui a nossa Messe. A casa é fresquíssima e dorme-se aqui muito bem, pois não tem mosquitos! Faltam apenas os móveis, mas temos cá um carpinteiro indígena muito habilidoso que já nos está a fornecer mesas e cadeiras. Camas temos duas de casal, uma em madeira, outra em ferro, emprestadas pelo M. Santos. Os sargentos estão a dormir em camas de ferro militares, que trouxemos.
A casa está toda arranjada de novo. Tem as paredes caiadas de amarelo e as portas e as janelas pintadas de vermelho. As colunas do alpendre também são em vermelho e a armação do poço em azul. Temos várias árvores no quintal que dão umas grandes flores vermelhas muito exóticas. As águas que utilizamos para os banhos vêm do poço. Num quarto ao lado da casa de banho, fora do edifício principal da casa, fica instalado o nosso impedido que fará de vigia e ao mesmo tempo os pequenos trabalhos necessários, tais como cuidar para que o bidão de água para o banho esteja sempre cheio. A casa de banho tem retrete e posteriormente terá um lavatório e um chuveiro, pois já tem um ralo no chão para escoar a água.

Contactámos com a população daqui e creio que estamos a causar boa impressão. A carne de 1.ª é a 150$00 o quilo e as bananas, de excelente qualidade, custam 10$00 cada grupo de 4. As galinhas variam entre 10$00 e 15$00 cada e os cabritos 50$00.
Quanto à luz eléctrica, por enquanto não está montada, embora tenhamos um gerador trifásico de 220 Volts, movido por um motor a diesel. Só estamos à espera de arranjar fio para fazer a instalação por toda a aldeia. Contamos que lá para Janeiro se possam pôr de lado os Petromax e se pense até na possibilidade de sessões de cinema com uma máquina de projectar do Sr. M. Santos.
É uma excelente pessoa. Muito gordo, de bigodinho à brasileiro, mas sempre de boa disposição, irradiando simpatia na forma franca e directa com que trata toda a gente branca ou preta.
É o nosso Anjo da Guarda. Todos os dias manda cá o criado dele, o Demba, com uma garrafa de água filtrada e um termos com cubos de gelo, para que nunca nos falte água fresca no quarto. É um indivíduo que, mesmo aqui, longe da nossa civilização, não descura todos os pormenores de conforto para criar à sua volta um ambiente requintado e de um bom gosto que se julgaria inacreditável encontrar por estas paragens. Vive como um nababo indiano rodeado por uma família tranquila (a esposa e duas filhas) e que, pelo menos, aparenta a mais completa felicidade.
Um verdadeiro achado que vim encontrar aqui neste fim do mundo mas, estou bem em crer, quase princípio do Paraíso.

Já começou a afluir gente vinda de todo o lado, até do Senegal, para se tratar no nosso posto clínico, pois a novidade de termos um médico na Companhia, depressa se espalhou. Aliás, a dois passos daqui, estão os nossos principais informadores, nas pessoas do chefe da polícia e outros funcionários administrativos da aldeia senegalesa nossa vizinha, com quem o nosso amigo M. Santos mantém fortes relações de interesses mútuos. São eles os primeiros a comunicar a presença de grupos armados que habitualmente passam por esta zona a caminho da região centro da Guiné, o Oio. Está até combinada uma jantarada em que eles serão nossos convidados.
O régulo de Pirada é um velhote todo bem-posto e que gosta imenso de conversar. É alferes de segunda linha, posto que lhe foi atribuído pela Administração Civil, mas que na verdade não passa de um título quase carnavalesco. Mesmo assim tem bastante autoridade e estamos sempre a recorrer aos seus préstimos e conselhos.

Sinchã Samba Taco, 03 Nov 1964
Eu e mais dois soldados do meu pelotão, o 1.º Cabo Maqueiro Melo (o Preto) e o 1.º Cabo Atirador Bonifácio (o Vilarinho) resolvemos acompanhar o Sr. Barbosa, o Chefe de Posto, que nos convidou para, durante dois dias, testemunharmos o recenseamento das populações, que ele vai ter de fazer na região de Propana, aqui a sul de Pirada. Tal ocasião veio servir às mil maravilhas para assim conhecermos em pormenor toda esta região e também para sermos apresentados de um modo mais informal e menos bélico a toda esta gente que é sempre admirável em hospitalidade e cortesia. É uma das maneiras de fazer a chamada psico, o aliciamento psicológico e indolor das populações para a nossa causa.

Em todas as tabancas, o cabo maqueiro, ajudado pelo Vilarinho, não tinha mãos a medir, fazendo pequenos curativos, aplicando pomadas, distribuindo analgésicos, deixando toda a gente extremamente agradecida. Os miúdos, a princípio, estavam uns bocados desconfiados e berravam como desalmados quando, por exemplo, lhes queriam meter um termómetro na boca, mas depois reinava a alegria.
Em todo o lado nos oferecem galinhas e cabritos. O Land-Rover do Chefe de Posto parece agora um galinheiro. Em todas as tabancas tenho de apertar as mãos a toda a gente que se acotovela para se aproximar de mim.

Nesta noite dormi numa palhota muitíssimo asseada, com uma bela cama de ferro com colchão de rede, lençóis e tudo. Os fulas, apesar de viverem em palhotas, têm sempre as casas muito limpas, mais do que qualquer uma das nossas casas do Alto Minho. Esta tabanca onde estou agora é bastante grande. Tem umas boas dezenas de palhotas e as pessoas são quase todas de feições muito finas. Dir-se-iam brancos se não fosse o tom escuro da pele. Os traços do rosto, nariz e lábios são bastante semelhantes aos nossos.
À noite juntaram-se todos diante da porta da nossa palhota e estivemos um bocado à fresca conversando com o xerife ou seja, o régulo de toda esta região. É um indivíduo com bastante cultura. Tem o equivalente ao nosso 5.º ano do Liceu em estudos árabes.
(Actualmente as nossas escolas estão divididas em: Básicas, até ao 9.º ano de escolaridade e Secundárias, até ao 12.º ano. Em Novembro de 1964, data em que foi escrita esta carta o 5.º ano do Liceu, correspondia ao que hoje é o 9.º ano de escolaridade)
As bajudas (raparigas solteiras) e as mulheres grandes (casadas ou viúvas) vieram todas apertar-nos as mãos, dar-nos as mantenhas (cumprimentos), sentando-se também à nossa volta. Só vos digo que havia algumas que fariam corar de inveja muita morena aí da Metrópole.
Mas nada de maus pensamentos, pois deitámo-nos cedo, eu e o Chefe de Posto numa mesma palhota e os outros dois soldados numa outra aqui ao lado.
De manhã trouxeram-nos água em grandes cabaços e fizemos a toalete nas traseiras da casa, um autêntico quintal cercado com carentim, uma espécie de vedação feita com cana de bambu entrançada, que até tinha, num canto, uma retrete habilmente dissimulada por uns arbustos, tudo impecavelmente limpo.

Hoje continuou-se com o recenseamento. Enquanto o Chefe de Posto vai chamando pelos homens, eu sento-me num banco que prontamente me vieram trazer e vou observando esta gente. Algumas mulheres grandes revezam-se para terem o privilégio de abanar, com grandes lenços, o ar à minha volta, afastando as moscas e mantendo a temperatura mais agradável. Sinto-me um autêntico bwana, o verdadeiro Grande Caçador Branco.
Amanhã regresso a Pirada. Foram uns dias bem passados a comer galinhas à cafreal ao almoço e caldeirada de cabrito ao jantar. Os pequenos-almoços constavam invariavelmente de ovos mexidos com salsichas à boa maneira anglófona. O Sr. Barbosa até levou com ele um cozinheiro privativo.

Quanto aos pequenos tratamentos e curativos que fizemos por entre a população, calculo que foram mais de 500. Como depois todos se sentiam, quase sempre, muito melhor, vinham inevitavelmente trazer-nos mais uma galinha, uma saca de laranjas ou de ovos, repetindo constantemente: Djarama, djarama!, (Obrigado, muito obrigado!).
É um povo extraordinariamente afável e cativante.
Mal cheguei a Pirada já sentia vontade e voltar atrás para ir novamente brincar com as crianças tão sorridentes sempre a rodear-nos, umas mais afoitas que outras, estendendo-nos as mãos, oferecendo limões e laranjas.

Madina do Boé, 21 Nov 1964
Espero que não andem preocupados com a minha falta de notícias, mas acontece que agora é um bocado difícil escrever-vos pois, desde segunda-feira (dia 17) que me encontro fora de Pirada. Fui enviado com o meu Grupo de Combate para Nova Lamego (Gabú) e de lá para aqui, por haver fortes suspeitas que o inimigo quer atravessar a fronteira com a Rep. da Guiné, para depois se instalar nesta zona. Encontro-me na região do Boé, junto àquele ângulo mais côncavo da fronteira da Guiné-Bissau com a Rep. da Guiné. Não era a mim que me competia vir, mas porque a tropa para aqui destinada estava ainda em Bissau, viemos nós, mais dois pelotões de Nova Lamego. Espero não me demorar mais que uma semana, até porque afinal os boatos parecem não ter fundamento. Já patrulhámos quase toda a fronteira virada a Sul sem quaisquer resultados.

Estamos todos alojados numa escola primária e os soldados, de manhã, têm de tirar as armas, as mochilas e as camas improvisadas para que as crianças fiquem com a sala de aulas livre para as lições dadas por um professor também negro.
Dormimos no chão há já uma data de dias e eu, por acaso, ainda não me queixo de dores no corpo, embora aqueles mais magrinhos se comecem a queixar da dureza do colchão. Fomos no outro dia fazer uma patrulha até à fronteira e bebi água de uma ribeira que ficava já na República da Guiné.

Ah! É verdade, já me esquecia de contar o que aconteceu no domingo passado, em Pirada.
Um grupo de notáveis senegaleses, entre eles o Chefe da Guarda-Fiscal, o Chefe da Polícia e vários professores primários de uma povoação vizinha, fronteiriça com Pirada, apareceram para realizar um desafio de futebol entre as duas comunidades. Por acaso ganhámos 2-0, mas os tipos jogavam bem.
No final houve uma grande almoçarada e ao fim da tarde fomos todos levar os nossos convidados de regresso a casa nas camionetas da tropa. Fiquei assim a conhecer mais terra estrangeira e a sua gente. Apesar do corte de relações diplomáticas entre os nossos dois países, as autoridades destas povoações aqui perto da fronteira fazem o possível para manter a melhor forma de convivência pois, como também vivem numa quase penúria de tudo, longe dos grandes centros de decisão vêm abastecer-se do que precisam aqui a Pirada e vice-versa.
Foi um grande dia de festa, deixando toda a gente satisfeita, creio eu. Como na grande maioria são muçulmanos e portanto não bebiam vinho, gastámos litros e litros de laranjada para lhes matar a sede mas, não se olhou a despesas. À noite houve manga de batuque. Veio gente de toda a parte tal como acontece aí na Metrópole, quando há uma romaria. Era tanta gente que cheguei a ter algum receio, em termos de segurança, pois era impossível controlar todas aquelas pessoas, mas felizmente eram apenas pacíficos camponeses, e lá continuámos na bela paz do Senhor.

Voltando aqui a Madina do Boé, acabou hoje a nossa estadia por cá. Recebi esta tarde ordem para regressar a Pirada. O mais caricato é que me parece não haver meios para o fazer. Teremos de atravessar um larguíssimo rio (o Corubal) e o único processo era uma velha jangada, mas esta foi ao fundo ontem à noite, quando tentaram colocar-lhe em cima uma viatura demasiado carregada. Agora terei de esperar que a ponham de novo a flutuar ou então terão de me vir buscar de avião, o que seria muito mais divertido.

A guerra aqui no Boé não passou de boatos. Até os comandos vieram para aqui cheios de ideias e de truques, dizendo que faziam e aconteciam e depois não encontraram ninguém. Até metiam dó de tão desconsolados que andavam.
(No entanto estava bem enganado, pois logo na segunda-feira seguinte, após o meu regresso, o grupo de comandos caiu numa violenta emboscada, tendo sofrido numerosas baixas. Começou então um verdadeiro inferno para a diminuta guarnição do aquartelamento que não teve outra alternativa senão retirar. Os guerrilheiros tomaram conta da situação e fizeram de Madina do Boé o primeiro território independente da Guiné-Bissau. E eu, mais uma vez, escapava intacto, mas por pouco.)

Pirada, 01 Dez. 1964
Professores primários formados aqui, são autêntico ouro! Fartaram-se de fazer escolas à pressa, por toda a parte, mas esqueceram-se dos professores, até porque toda a gente sabe que para aqui ninguém gosta de vir.
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Tivemos mesmo de comprar as cadeiras, pois não tínhamos mobília nenhuma. A tropa que cá estava não nos deixou nada, pois também eram uns pobres desgraçados que mais parecia terem sido desterrados para este fim de mundo.
Um alferes e três sargentos brancos, todos os outros eram tropa indígena. E, como cá, a tropa indígena é paga pelo governo da província, viviam das economias que podiam ir fazendo com o dinheiro do rancho…

Nós, agora estamos quase instalados. Estivemos mais de um mês com toda a gente a dormir no chão, pois nem camas havia, nem carro para as ir buscar a Nova Lamego.
Presentemente, temos em Pirada três camiões grandes (GMCs), duas pequenas camionetas (Unimogs) e dois jeeps.
Já nos deslocamos com relativa facilidade e rapidez, tanto para Nova Lamego como para Bafatá sempre que nos falta qualquer coisa.

Bafatá é uma vilória bastante razoável. Tem um clube que até dá cinema todos os dias. A energia eléctrica é fornecida por um gerador a diesel, um bocado velho e a luz está constantemente a ir abaixo. Mas é melhor que nada. Fui lá este fim-de-semana com o M. Santos e a família, e não deixei escapar a oportunidade de farejar um pouco de civilização.
Hoje também posso dizer:

- Olhem, sabem? No sábado fui ao cinema! Agora não são só vocês que me dizem isso em todas as cartas que me escrevem.

Por acaso até era um filme do Jerry Lewis, que já tinha visto, “Jerry, Primeiro Turista do Espaço”.

Jantámos em casa de um comerciante amigo do M. Santos e, no domingo, almoçámos em casa do Secretário da Administração, outro amigo dele e que, conforme vim a descobrir, depois, é de Viana! Falámos sobre a nossa terra, recordando os tempos em que andou no Liceu, que nessa altura seria ainda, evidentemente, o Liceu Velho.

A situação da guerra continua sensivelmente na mesma. Entrámos na época seca e começou a moda das minas nas estradas. Não nas estradas aqui do Norte, felizmente, mas sim nas do Sul. Não há dúvida que sou um tipo com sorte. Poderia estar agora em Catió ou Bedanda, mas não, encontro-me em Pirada, confortavelmente instalado, descansadinho da vida, onde, à noite, podemos dar um passeio pelas redondezas até casa de alguém conhecido, comer um pouco de amendoim torrado, beber umas cervejas geladas, ouvir um batuque qualquer e voltar tranquilamente para casa, de pilha eléctrica na mão só para não tropeçar e cair nalgum buraco. Fazemos patrulhamentos de rotina que mais parecem passeios dominicais de carro.

Estamos quase no Natal. Como o tempo passa e como o passado nos vai desaparecendo da memória! Tenho receio de parecer um verdadeiro estranho quando regressar.
Pensamos fazer uma festa de Natal para os soldados. Pelo menos o bacalhau com couves não há-de faltar. Sim, porque conseguimos fazer uma horta, atrás do quartel, que promete muitas e belas couves para o Natal. Aqui tudo se dá, desde que seja bem regado e bem tratado. Quase todos os dias comemos às refeições uma bela salada de alface e tomate.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 25 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4861: Cartas (Carlos Geraldes) (3): 1.ª Fase - Agosto e Setembro de 1964