Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Fiofioli > Março de 1969 > Operação Lança Afiada. O Alf Mil Paulo Raposo, da CCAÇ 2405, junto a um dos helicópteros. O número de evacuações, por insolação, desidratação, doença, ataque de abelhas e esgotamento foi enorme: mais de uma centena de casos.
Foto: © Paulo Raposo (2006). Direitos reservados
1. Texto, de nove do corrente, enviado pelo nosso camarada António José Pereira da Costa (Cor Art na reserva, na efectividade de serviço), ou António Costa, tout court, que comandou a CART 3494 (Xime, 1972/1973):
Camarada: Aqui vai um texto que escrevi a propósito das aventuras de um dos meus alferes.
Em anexo segue umas fotos do mesmo.
Depois de muitas aventuras e, principalmente desventuras, está no Telhal, numa situação psicológica que lhe permite sair, viver fora do hospício, mas em regime de república junto de outros doentes. Vi que reagiu mal à mobilização e que nunca aceitou a guerra como uma necessidade, mas sim como algo, tipo pincel, que era necessário fazer, por não haver saída. Sofria muito, mas pareceu-me sempre que recuperaria e, à chegada, chegou a ser o meu dentista.
Se puderes publicar, será uma homenagem?!
Ora informa.
Um Ab. do
António Costa
2. Mandei ao António Costa o seguinte desafio:
António: Adorei!!! Andaste a esconder, este tempo todo, o teu talento literário... Se me garantires, no mínimo, mais cinco textos, vou abrir para ti uma série (exclusiva) que pode ser qualquer coisa (irónica) como Um Capitão do QP gozando as delícias do sistema; ou: O quotidiano da guerra de um Capitão do QP...
O título és tu a escolhê-lo e deve incluir o teu nome... O que vai variando é o subtítulo... Estás nessa ?
O mito (e o papão) do Fiofioli já vinha do meu tempo... Procura na I Série do Blogue... A malta foi lá n aLança Afiada (Março de 1969)... A minha malta (CCAÇ 12) andámos lá perto mas nunca lá fomos... Esses 19 km eram fatais, a nossa artilharia não chegava lá...do Xime ou de Mansambo ou do Xitole.
Um abraço. Luís
3. As Idas ao Fiofióli
por António Costa
Não sei, mas gostaria de saber, o que quer dizer
Fiofioli. Talvez signifique algo que nada tem a ver com violência ou com guerra, numa qualquer língua primitiva dos povos da Guiné...
Durante a guerra, no Xime, ouvíamos falar de uma base muito poderosa que o inimigo teria na mata do Fiofióli e, a fazer fé na carta topográfica, a mata era banhada a Sul pelo rio Corubal e circundada por bolanhas pelo Norte, Oeste e Leste. Uma bolanha é, essencialmente, uma zona alagável, geralmente aproveitada para o cultivo do arroz. Podemos, por isso, dizer que a mata do Fiofióli era quase uma ilha que distava, em linha recta, cerca de 19 km do nosso quartel. Não tenho memória de nenhuma acção ofensiva (*) sobre esta base, o que levantaria problemas graves na aproximação que lhe fosse feita. E, contudo, ela existia, não passando, talvez de um pequeno conjunto de moranças. Às vezes a fama não corresponde à realidade...
A messe de oficiais do quartel do Xime era constituída por quatro rulotes, que serviam de quartos, imobilizadas nos vértices de um rectângulo de terreno acimentado. As rulotes, já bastante degradadas, tinham sido utilizadas pelo Amílcar Cabral, quando trabalhava para o Estado Português, integrado numa brigada para o estudo da agricultura da Guiné.
No centro do rectângulo acimentado, cravado no solo, havia um alto tronco de palmeira que servia de apoio central ao telhado de quatro águas, em colmo e rachas de cibe. Junto do tronco de palmeira estava a mesa onde almoçávamos e jantávamos, à luz de um candeeiro com três lâmpadas dentro de garrafas sem fundo e pendurado no telhado daquela espécie de gigantesca morança.
Alguém havia criado um “espaço de lazer” constituído por uma mesa baixa, de forma oval e quatro maples baixos em madeira. O conjunto estava envernizado a escuro e a madeira era, quase de certeza, de bissilon. Alguém tinha construído também um “espaço desportivo” numa pequena mesa de pernas bastante altas. Era um tabuleiro para jogar damas ou xadrez, desde que alguém trouxesse as respectivas peças, claro. O tabuleiro tinha os habituais quadrados pretos e brancos e era circundado por uma faixa verde-alface, onde se podiam depositar as peças fora de jogo. A esta distância não me lembro de outro mobiliário que, por ali houvesse.
A entrada da messe era larga e eu nunca a vi fechada, embora tivesse dois portões (chamemos-lhe assim) em chapa de zinco ondulado. Pela altura que tinham, pouco mais de um metro, não sei bem qual seria a sua utilidade, mas decoravam e muito... Daí que a messe, vista daquele lado mais se assemelhasse a uma garagem com telhado de capim. Na parede oposta à entrada, havia três portas: a do centro dava acesso a uma casa-de-banho rudimentar, a da esquerda à, muito pomposamente designada, copa e a que se situava bem no canto do lado direito era a entrada para o gabinete do comandante da companhia. Este era exíguo, com o mapa do sector pregado na parede atrás da cadeira rotativa e de madeira. Tinha uma secretária pequena, feita de madeira de má qualidade e que o ocupava em grande parte. O gabinete tinha janela, mas já não me recordo se tinha porta para o exterior do “edifício” da messe.
Assisti, enquanto criança, à construção de, pelo menos, uma das rulotes. Pude confirmá-lo ao ver uma pequena chapa que atestava que havia sido construída na Auto-industrial da Amadora, situada na avenida Santos Matos. A oficina tinha uma espécie de pátio, onde ficavam arrumados os carros e onde eram feitos certos trabalhos, como foi o caso da construção da rulote. Os meus pais disseram-me que o Mercado Municipal havia funcionado no edifício e pátio da oficina.
Vi, pois, construir a rulote que, entre Junho e Novembro de 1972, me serviu de quarto. Estava muito degradada, assim como todas as outras. Já só tinha uma divisão utilizável e aquilo que fora a casa-de-banho era agora um monte de bocados de madeira e alumínio ou outro produto parecido. Utilizei o mobiliário de que o quarto ainda dispunha, já mais que gasto pelo uso e maus tratos dos outros utilizadores. Tinha a sensação de viver num lugar estranho, numa espécie de sótão pleno de restos de coisas indescritíveis em que avultavam os bocados de alumínio, de contraplacado e restos de colchões, num ambiente fortemente temperado pela humidade. Enfim, como era só para dormir, talvez não tivesse de que me queixar...
A esta distância no tempo, não consigo acrescentar outros detalhes à descrição às “rulotes do Amílcar”. Naquela altura ouvi dizer que ainda havia uma outra, abandonada em Pirada, transformada em posto de sentinela.
Na messe havia também um bar, que não passava do aproveitamento do espaço entre duas rulotes, onde fora construído um balcão em madeira e verga. Atrás do balcão, funcionava um frigorífico a petróleo, cuja mecha se apagava sempre que a artilharia fazia fogo. Recordo-me que tinha prateleiras, cuja utilidade não descortinei, por estarem sempre vazias. Não serviam para nada, mas decoravam. Já se imaginou um bar sem prateleiras?
Era naquele espaço que ficávamos, depois do jantar, a conversar acerca de tudo o que fosse surgindo. Passaram vários por ali, mas, normalmente éramos quatro ou cinco. Recordo o Gomes, o Carneiro, o Pinho da Artilharia, rapidamente substituído pelo Viegas, o Sousa e o Pereira. Enquanto lá estive, passou por lá o Correia, muito activo e animado, mas que, ao fim de poucas semanas, foi transferido, não sei para onde, após uma visita do brigadeiro adjunto-operacional.
O ambiente era triste e lúgubre. As conversas banais ou profundas, sem que para isso houvesse intenção dos participantes. Tinha de ser assim, entre tão poucas pessoas forçadas a conviver num espaço tão reduzido. Muitas vezes falávamos da guerra e da política do país. Debatíamos a guerra quer na Guiné, quer no sector que nos tinha tocado. Neste último tema não havia grandes inovações e acabávamos sempre a comentar as “últimas notícias do Batalhão”. Eram normalmente histórias cómicas, que resultavam de mal-entendidos ou situações pouco claras.
Entre essas histórias surgiu uma verdadeiramente insólita com o nosso comandante de batalhão. A dado momento da comissão, foi promovido, mas manteve-se em funções. Como é natural não havia possibilidades de comprar um par de galões de coronel, no interior da Guiné. Daí que, um dia ou dois depois de ter sido promovido, tivesse ido ao Xime, sem nenhum distintivo que o identificasse pelo posto. Ao vê-lo assim, perguntei-lhe se fora despromovido, crendo que a falta dos galões se devia a simples distracção. Quando me respondeu negativamente, sinceramente, não acreditei que tivesse sido promovido e, gozando interiormente com a “distracção”, limitei-me a desejar-lhe felicidades no novo posto. Porém, vim a saber que a esposa dele, diligentemente havia tentado colmatar a falta de galões do marido, cozendo junto dos de tenente-coronel, um galão de alferes. Por esses dias o chefe do Serviço de Intendência da Guiné visitou o Comando do Batalhão e, logo ao descer do avião, ao ver os extravagantes distintivos do novo posto, perguntou-lhe:
- Olha lá, oh T... agora és um coronel entre parêntesis?
Descrito o ambiente e as rulotes, passemos aos seus habitantes.
O “Manel” Gomes tinha andado comigo no liceu Passos Manuel. Dois ou três anos mais novo, era um miúdo agressivo, sempre em actividade e que não podia deixar de chamar a atenção para os seus cabelos louros encaracolados e os olhos azulíssimos. Era aquilo a que podíamos chamar um malandreco reguilote.
Passados dez anos, ali estava ele, praticamente só, no comando de mais de meia-companhia. Quando cheguei, estava a braços com os restos da emboscada na Ponta Cóli, que tinha dado vários feridos e a morte ao furriel Bento. Havia tarefas burocráticas a cumprir e prazos a respeitar e o Gomes sofria por não saber o que fazer, parecendo não ter apoio de ninguém. Suava quase permanentemente e vivia numa tensão que não abrandava. Amava profundamente a mulher e a filha e, numa pequena embalagem de plástico, levava para as operações, num bolso do camuflado, uma frase escrita no reverso do retrato das duas:
-
Abandonne-toi à ma providence et ne doutes jamais de mon amour. [Entrega-te à minha providência e nunca duvides do meu amor].
Era um jovem generoso a pedir que o guiassem. Quando retirámos da água o corpo sem vida do Sousa afogado no Geba, queria, recorrendo aos toscos conhecimentos dum primeiro ano de medicina incompletíssimamente estudado, retirar do corpo, a água que impedia que fosse metido no caixão. O Sousa acabou por ser sepultado em Bambadinca, dentro de um caixote de bacalhau, ao fim de vários dias de espera pelos ferros e luvas de autópsia que permitissem aproximar o corpo das suas dimensões normais. Vi, num programa da televisão portuguesa, o estado em que a sepultura está, passadas que foram quase quatro dezenas de anos. Com poucas defesas a nível psíquico, o Gomes sofria cada vez mais. Voltei a encontrá-lo, na terra onde ambos vivemos. Era dentista, bem afreguesado e foi o dentista da minha família até que o consultório fechou. O resto todos sabemos.
O Viegas gritava, de vez em quando, que “queria andar de eléctrico”. Era natural. Para ele “Portugal era Lisboa” (sua cidade natal) e a “capital era Boa-Hora” (o bairro onde residia e que era bem servido de eléctricos). Era um rapazinho de cidade, um produto da Lisboa daquele tempo. Frequentado o Liceu, preparava-se para iniciar a sua carreira de cidadão suburbano no país triste do tempo, entre as habituais “vitórias do Benfica” arduamente discutidas no escritório, à segunda-feira, e a monotonia da programação da televisão que dava ainda os primeiros passos. Parecia ainda uma criança, que não entendia o que lhe tinha sucedido, ao cair naquele local. O Gomes tinha dado uma ajuda para que assim fosse.
No dia da chegada do Viegas, o Gomes resolveu disfarçar-se de “apanhado do clima”. De camuflado, com o dolman desabotoado de alto a baixo arrastava os longíssimos atacadores das botas por atacar. Ao ombro trazia um periquito com quem vinha a conversar. Parou junto do Viegas e perguntou-lhe:
-Tu, estás aqui porquê? Também vens resolver o problema do balanta?
Mais que surpreendido, Viegas nem respondeu:
- Anda TóTó, não ligues ao gajo, que é maluco - disse para o periquito e virou as costas em direcção à messe de sargentos.
O “piriquito” (nome que se dava, na Guiné, aos militares recém-chegados) Viegas não sabia o que fazer. Disse-nos, depois de refeito, que chegou a admitir que o Gomes estava mesmo “apanhado pelo clima” e interrogava-se como iria lidar com alguém naquele estado de espírito. Foram realmente uns minutos infernais, com o Gomes a entrar e a sair da messe e a interrogá-lo sobre o “problema do balanta”. Esta expressão era utilizada por um industrial de Bafatá, com quem conversávamos, às vezes quando vinha ao cais do Xime, despachar madeira. Era a sua explicação para a guerra, naquela área da Guiné. Segundo ele, no dia em que se compreendesse o povo balanta e o seu modo de pensar, a guerra terminaria. Não sei se o dizia sentindo-o ou se pensava estar a ensinar-nos qualquer coisa. Captámos-lhe a expressão, que tantas vezes usava, e adoptámo-la quase como “bordão” nas conversas diárias.
O Sousa era mais velho, talvez o mais velho de todos nós. Com físico de lutador, do alto do seu metro e oitenta tinha um aspecto grave, falava baixo e parecia envelhecido e marcado pela vida. Talvez por isso, não exercia uma crítica muito aberta ao meio que o rodeava, mas via-se claramente que não “fora feito para aquilo”. Um dia perguntei-lhe o que fazia ali sendo licenciado em engenharia têxtil pela Universidade de Leeds. Quais seriam as razões que o teriam feito voltar para Portugal com uma habilitação tão válida? Compreendi, então o seu ar sério, a sua falta de alegria própria da idade e, ao mesmo tempo, um certo estoicismo com que se conduzia. Tinha um irmão deficiente mental e preparava-se para passar a gerir a fábrica que a família tinha na Covilhã, quando voltasse a Portugal. Estava a atravessar o deserto, desde que fora incorporado em Mafra. Já licenciado, tinha sido considerado apto para comandante de companhia e, na Guiné, fazia um estágio de quatro meses. Seria promovido a tenente, à chegada a Lisboa, e embarcaria como capitão graduado, à frente de uma companhia. Esta era uma situação que dava o indício da falta de meios humanos com que o Exército se debatia e da maneira atamancada como a administração estava a resolvê-la.
Conheci mal o Carneiro, com quem estive pouco tempo. Tenho ideia de que foi transferido para uma companhia de tropa africana. Depois do 25 de Abril, encontrei-o junto ao Palácio da Independência, onde funcionava a Associação de Deficientes das Forças Armadas. Fiquei a saber que foi atingido, num olho, por um estilhaço minúsculo que lhe limitou a visão.
Também não conheci bem o Pereira de quem guardo uma imagem de maturidade, quer na vida, quer na tropa. Julgo que foi tardiamente mobilizado, mas a que motivos isso se deveu, não sei.
À noite, depois do jantar, sentávamo-nos a conversar e bebíamos aguardente Antiqua, cuja garrafa tinha a forma de um esguio funil de vidro. Quando uma garrafa se esgotava, metíamo-la numa vasilha com água e retirávamos-lhe o rótulo que colávamos na parede exterior da rulote do Gomes. Assim, íamos fazendo um painel com mosaicos negros com letras douradas. Era uma forma de decoração barata e... própria de um local de convívio. Às vezes havia música. Era sempre a mesma, mas era música. Viegas anunciava:
- Agora, senhoras e senhores vamos ouvir o conhecido “Gomes dos Autos” na popular canção: Quem eu Quero não me Quer.”
O Gomes dedilhava a viola e lá ia cantando. Era a única canção que sabia tocar completamente. “Arranhava” outra, mas quase nunca chegava ao fim. Era em inglês e isso complicava a tarefa. E começava “Nights in White Satin...”
Outras vezes ouvíamos o “Pê-Fê-Á Noctuuuurno”, feito pelo locutor 1º cabo João Paulo Dinis. Era a edição nocturna do Programa das Forças Armadas, que terminava cerca da meia-noite. A partir daí, a rádio só recebia parasitas ou, esporadicamente, alguma longínqua estação africana, a emitir numa língua que não entendíamos. Durante o dia ainda conseguíamos ouvir a rádio do Senegal que tinha um programa cujo genérico era a Françoise Hardy a cantar “Je Veux qu’ils reviennent”, mas de noite era melhor poupar as pilhas do rádio.
O Sousa e eu recolhíamo-nos relativamente cedo. Terminados os temas de conversa, íamos para os nossos quartos. Normalmente o Gomes e o Viegas ficavam mais um bocadinho a conversar e para um último cálice. Durante algum tempo ainda os ouvia a conversar. Mas havia noites em que a conversa se prolongava numa catorreira repetitiva. Era uma conversa monótona, tanto pelo tema, como pelo ritmo e altura da voz. As conversas dos (cada vez mais) bêbedos duram muito e aquelas podiam chegar a uma noite inteira.
No dia seguinte, quando lhes perguntava a que horas se tinham deitado a resposta era sempre a mesma:
- Tarde! Esta noite fomos ao Fiofióli!
Vim a saber, um dia, que às vezes conversavam e bebiam até o Sol nascer. Depois iam ao padeiro da companhia que, por volta das seis da manhã, já tinha o pão a sair do forno. Era um pão de boa qualidade, como era habitual nas unidades do mato. Os dois conversadores, bem conservados em álcool, comiam pão às fatias bem barradas com manteiga e café quente. Depois, iam então descansar de mais um golpe de mão à Mata do Fiofióli.
Talvez fosse a maneira de resistir que, instintivamente, tivessem descoberto, num sítio onde o inimigo não seria a nossa maior razão de queixa... Mas isso são outras histórias.
____________
Notas de L.G.:
(*) Vd. postes de:
15 de Outubro de 2005 >
Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli
9 de Novembro de 2005 >
Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas
9 de Novembro de 2005 >
Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli
14 Novembro 2005 >
Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal (Luís Graça)
(...) Publica-se a quarta e última do extenso relatório da Op Lança Afiada, que decorreu entre 8 e 18 de Março de 1969, na região compreendida entre a linha Xime-Xitole e a margem direita do Rio Corubal, até então considerada como um "santuário do IN".
A operação, comandada pelo coronel Hélio Felgas (o
patrão do Agrupamento 2947, mais tarde comando operacional de Bafatá, COP 7, se não me engano), coadjuvado por dois tenentes-coronéis, Jaime Banazol (liderando o Agrupamento Táctico Sul, com mais de 500 homens que partiram do Xitole e de Mansambo) e Manuel Pinto Bastos (comandante do BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70), que encabeçava o Agrupamento Tático Norte (com cerca de 750 homens, que partiram do Xime). Ao todo 1300, entre soldados metropolitanos, milícias e carregadores...
Foi uma das últimas grandes "operações de limpeza", realizadas no primeiro ano de Spínola, enquanto Governador Geral e Comandante-Chefe (que fez questão de estar presente, junto das NT, no Dia D + 9, ou seja, 17 de Março de 1969, partilhando inclusive o transporte naval que levou os nossos esgotadíssimos camaradas da Ponta Luís Dias à Ponta do Inglês, no regresso ao Xime.
Apesar dos elevados meios humanos e materiais envolvidos, a correlação de forças não se modificou e, depois de um rápido processo e reorganização, a guerrilha voltava a obrigar as NT a acantonarem-se nos seus aquartelamentos onde flutuava a bandeira verde-rubra (Bambadinca, Xime, Mansambo e Xitole) e destacamentos dispersos. A população civil, sob a administração do PAIGC, foi a grande vítima desta megalómana e descoordenada operação.
Os soldados portugueses serviram, por sua vez, de cobaia num teste de resistência, a que o autor do relatório, sem despudor, chama processo de "selecção natural" (sic)... Num total de 700 e tal homens metropolitanos (o resto eram milícias e carregadores, habituados às duras condições do terreno), conclui-se que um sétimo fora mal seleccionado para o TO da Guiné, já que no decorrer da operação teve de ser evacuado, de helicóptero, por "insolação, ataque de abelhas e doença" (sic).
É o próprio relatório a reconhecer que, nesta época (tempo seco), as temperaturas andarvam entre os 39 e os 44 graus, à sombra, e entre os 55 e os 70º ao sol, e que nesas condições, (i) a guerra tinha que parar das 10 da manhã às 16h da tarde, precisando um soldado metropolitano de 8 a 10 litros de água (!)...
Nesta operação em que os guerrilheiros e a população por eles controlada passaram simplesmente para o outro lado do Rio Corubal (com os cães, os porcos, as galinhas...) (não havia paras, comandos nem fuzos do outro lado...), o verdadeiro inimigo das NT foi, de facto, a desidratação, além dos problemas alimentares: o tipo de rações que deram aos nossos soldados (a ração dita normal) era tão má que provocava uma sede horrível: ao segundo dia, já não se comia; ao terceiro, começava a haver problemas...
Tratou-se de uma operação onde se foi a lugares míticos, como a mata do Fiofioli, junto ao Corubal, mas ninguém encontrou médicos e enfermeiras cubanas... Hospitais de campanha, sim, mas já abandonados, uns meses antes. Destruiram-se muitas toneladas de arroz, mataram-se milhares de animais, queimou-se tudo o que era tabanca... Em contrapartida, houve 24 flagelações do IN, mas os guerrilheiros seguiram as regras da guerrilha: retirar quando o inimigo, ataca: atacar, quando o inimigo retira... O autor do relatório, irritado, queria que os tipos do PAIGC se apresentasse de peito feito às balas e dessem luta...
O mais caricato e divertido desta operação é que o pessoal deitou fora as rações de combate e desatou a comer leitão assado no espeto!
Este é um cínico relato da dura condição da guerra da Guiné, vista pelo lado dos tugas. Por outro lado, há críticas veladas, do autor do relatório, ao Comandante-Chefe, ao Quartel General e à Força Aérea (que se teria comportado como uma verdadadeira prima dona...).
Há coisas, pouco abonatórias para as NT, que se passaram neste operação e que eu deixo à atenção e consideração dos tertulianos e demais visitantes deste blogue. Cada um de vós que faça a sua leitura desapaixonada... Aqueles de nós, que foram operacionais, rever-se-ão mais facilmente no cenário que foi o da Op Lança Afiada... Sobre o desempenho dos actores, já não vale a pena assestar as bateria da crítica... Felizmente que a guerra acabou!
War is over, baby!
Seria interessante ouvir, entretanto, o depoimento de camaradas do BCAÇ 2852 que participaram na Op Lança Afiada. Infelizmente, ainda não temos [não tínhamos em Novembro de 2005] ninguém dessa unidade, na nossa tertúlia.
Para uma correcta localização das povoações ao longo da margem direita do Rio Courbnal, consulte-se o mapa, dos Serviços Cartográficos do Exército, relativo ao Xime, disponibilizado, mais uma vez, pelo nosso amigo e camarada Humberto Reis, ex-furriel miliciano da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71). O mapa do Xime deve ser complementado por outros como Fulacunda, Xitole e Bambadinca, também disponíveis on line.
Deixem-me só lembrar que, dois meses depois desta operação, o PAIGC retribuiu a visita das NT e apareceu às portas de Bambadinca em força: mais de 100 homens, três canhões sem recuo, montes de LGFoguetes, morteiros... Esse ataque ficou célebre: os tipos de Bambadinca foram apanhados com as calças na mão, faziam quartos de sentinela sem armas; enfim, um regabofe... Claro que no dia seguinte o Caco Baldé deu porrada de bota a baixo, nos oficiais todos, do tenente-coronel (o célebre Pimbas) até ao capitão da CCS...
Um caso exemplar, divertido e hilariante, da guerra da Guiné... A sorte dos gajos de Bambadinca foi os canhões s/r terem-se enterrado no solo e a canhoada cair na bolanha... Quando nós, periquitos da CCAÇ 2590 (futura CCAÇ 12), lá passámos, uma semana depois, vindos de Bissau e do Xime a caminho da nossa estância de férias (Contuboel, um mês e meio de paraíso... seguido depois de18 meses de inferno...quando fomos justamente colocados no Sector L1), os nossos camaradas da CCS do BCAÇ 2852 ainda estavam sem pinga de sangue...
"Podíamos ter morrido todos", dizia-me 1º cabo cripto Agnelo Ferreira, da minha terra, Lourinhã... Fomos depois nós , para lá, com os nossos nharros, e em 18 meses nem um tirinho: que o respeitinho (mútuo) era muito bonito... Porrada, porrada, era só quando a gente se atrevia a meter o bedelho na terra deles, que já estava "libertada"... Eu faria o mesmo, na minha terra...
Na história do BCAÇ 2852, o ataque a Bambadinca é dado em três linhas, em estilo telegráfico:
"Em 28 [de Maio de 1969], às 00H25, um Gr In de mais de 100 elementos flagelou com 3 Can s/r, Mort 82, LGF, ML, MP e PM, durante cerca de 40 minutos, o aquartelamento de Bambadinca, causando 2 feridos ligeiros". (L.G.).
Vd. também , 6 de Julho de 2006 >Guiné 63/74 - P941: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (13): Operação ao Fiofioli