segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 - P5464: O Nosso Livro de Visitas (74): O blogue não deve ser a Praça da Figueira (Salvador Nogueira, BCP 12, BA 12, Bissalanca, 1969)


«Guiné > Teixeira Pinto (ou Canchungo) > CAOP 1 > Talvez a única foto que temos, no nosso blogue, embora de má qualidade, do Cor Pára Rafael Ferreira Durão. "A caminho do almoço de Natal de 1971. Da esquerda para a direita respectivamente, Cmdt do BCaç 3863 (?), Cmdt do CAOP [1] Cor Pára Rafael Durão e Ten Pára da CCP 122". (*)

Foto e legenda:  © Jorge Picado (2008). Direitos reservados


1. Mensagem de Salvador  Nogueira, antigo oficial pára-quedista (Guiné, 1969 - estivemos juntos pelo menos numa operação em que foi aprisionado o roqueteiro do PAIGC, Malan Mané, em Agosto de 1969) (**).    Esteve também em Angola (BCP 21, com o meu amigo e conterrâneo Jaime Bonifácio Marques da Silva, em 1970/1972) e Moçambique, Nacala (BCP 32, onde esteve um ano e meio). É  assíduo leitor do nosso blogue.

Teve a gentileza, há tempos de mandar um livro seu, de short stories, com o irónico título de Notícias da Guerra Pitoresca (edição de autor, 2009), e com a sibilina dedicatória: " De um ponto  [?] algures entre os heróis do mato e os post-traumáticos. Para o Luís  em troca do 'Blogueforanada'. Com um abraço do Salvador". 

Para S. Nogueira,  que passou pelos três TO da guerra colonial (Angola, Guiné, Moçambique), "a guerra não é coisa delicada; falar dela também não"... Talvez por essa razão, ele nunca tenha até hoje aceite o meu  convite para ingressar na Tabanca Grande, preferindo o estatuto, mais independente, de leitor e comentador dos nossos postes...

Amigo Luís

Peço-te que faças um esforço para que o blog (uma notável iniciativa de que decorre a minha consideração por ti) não se converta num bastião de merdas post-seja-o-que-for (desculpa a rudeza da linguagem) ou num coio de heróico-desgraçados que levaram muita porrada e por conseguinte acham ter direito a opinião firmada. A distância no espaço e no tempo não apaga o enquadramento e cada soldado que esteve em África foi-o naquele período de que saca agora recordações, permitindo-se alguns um exacerbamento ou alastramento de opinião para a qual não se adivinham dimensão ou competência, pessoal ou militar, lá! naquele tempo, com as características pessoais de então e no ambiente condicionante de que será bom não abstrair.

É bom também lembrar, tentando evitar a subestima ou escamotear a competência de cada um in locu ou hoje, o que era então cada função, cada posto, cada unidade e cada zona de acção. É também bom reencaminhar os que não têm a noção do escasso significado do testemunho pessoal, subjectivo ou grosseiro, num processo que, como tens dado a entender, se pretende com algum alcance hsitórico, para além da dimensão que possa ter no apoio social e individual a dar aos combatentes da Guiné.

Um abraço

Que se me desculpe alguma insistência, em alguns casos.

PS - O Cor Durão foi meu comandante em Angola e por vezes andava a passear comigo na parada do BCP21, à noite, quando eu estava de serviço, reflectindo sobre a nossa acção em geral e, em particular, sobre a do Batalhão de Angola.

Não me considero apto a comentar a sua conduta e postura nem a sua acção de comando. Interrogo-me como é possível que um qualquer obscuro militar, sem conhecimento alargado visível, possa permitir-se tecer considerações e emitir juízos valorativos sobre um militar muito mais graduado, muito mais experiente e muito mais habilitado.

Se a questão fulcral tem a ver com a ameaça de chapada na cara ou de murro na tromba, então é simples - a ter acontecido, o Regulamento permitia que o militar comunicasse o facto. Lembro que actos de indisciplina, rebeldia, recusa do combate ou colaboração com o inimigo, etc. em campanha eram passíveis de procedimento muito mais expressivo que o tão malfadado murro nas trombas, o qual, ainda assim, era raro.

O blog não deveria ser a praça da figueira podendo ser todavia praça pública - é uma questão de nível e de qualidade da colaboração.

2. Comentário de L.G.:

Meu caro Salvador:

Embora a gente não se conheça (físicamente falando), já trocámos suficientes mails para ficarmos com um certa  ideia, virtual,  um sobre o outro. Inclusive, devo-te um almoço no bar do meu local de trabalho, a agendar para um dia destes em que venhas a Lisboa, no interregno do teu auto-exílio ribatejano.

Em contrapartida, tu tens a ligeira vantagem de me ver exposto, na montra do blogue de que és visita regular mas não membro, por razões que eu  não descortino mas que respeito. Como leitor, mereces a consideração de qualquer leitor, a que acresce o teu estatuto de camarada da Guiné. O nosso blogue, mal ou bem, é hoje mais do que o somatório de todos os seus membros (inscritos, os que pagaram simbolicamente a jóia de inscrição, e que o alimentam e mantêm vivo, todos os dias)...

Apercebo-me que há muita gente a ler-nos, uns que estiveram na guerra colonial (ou do UItramar, como queiras), outros que estiveram noutros TO que não a Guiné, ou que, tendo estado na Guiné,  optam pelo low profile ou não querem mesmo dar a cara (ou esperam a melhor oportuniddae para o fazer), e ainda outros (e outras), enfim, que por razões várias, afectivas, profissionais, circunstanciais ou outras,  acompanham a nossa produção bloguística...

Ao fim de quase seis anos de blogue (a festejar em Abril de 2010, se lá conseguirmos chegar), verificamos que muita gente, muita e desvairada gente nos lê, uns com alegria, outros com humor, com ironia, com afecto, com empatia (e outros nem tanto, invectivando-nos possivelemente por não fazermos o blogue dos seus, deles, sonhos, pesadelos, ideais, expectativas, causas, projectos, etc).

Também não gostaria, meu caro Salvador, que este blogue onde já "queimei"  7,5% da minha esperança média de vida (que é de 73 anos, para os homens da minha/nossa geração), se transformasse num "coio" [abrigo de malfeitores, esconderijo...] de quem quer que  seja, muito menos dos tais "heróico-desgraçados que levaram muita porrada e por conseguinte acham ter direito a opinião firmada"...

Em teoria (e, espero, na prática), aqui ninguém tem "opinião firmada" [leis-se: assinada, catedrática, definitiva...] sobre nada, no que diz respeito à guerra colonial na Guiné: causas, antecedentes, consequências,  protagonistas, heróis, vilões, grandes batalhas, datas-chave, etc.... Em rigor, ninguém deve (nem pode) impor o seu ponto de vista, muito menos a sua verdade ex-cathedra (leia-se: da cadeira de S. Pedro, da cadeira de catedrático, ou seja, valendo-se do cargo, função ou estatuto no antigamente da guerra...). Tu mesmo me chamaste a atenção, um dia,  para a aparente contradição entre o tratamento romano (tu-cá-tu-lá) entre "camaradas", mantido no blogue,  e o desfile de títulos, antigos ou actuais, militares, profissionais e académicos, com que adjectivamos os membros da Tabanca Grande, que em princípio são todos "amigos e camaradas da Guiné" (e ponto final)...

Por outro lado, sempre procurámos incentivar a criação, entre nós, de uma cultura de liberdade, verdade, rigor, frontalidade, responsabilidade... Há abusos, picardias, excessos verbais, insultos, tretas, comportamentos de bravata, fanfarronice, gente que faz bluff, gente que é menos séria (intelectualmente falando), gente que conta um conto e acrescenta um ponto, gente que não sabe discordar sem puxar pela G3, gente que se põe em bicos de pés, gente da Praça da Figueira (onde até aos anos 50 existiu o principal mercado da cidade de Lisboa...), gente da língua afiada e do argumento curto, gente que não dá a cara e se esconde atrás do baga-baga... ? 

Há, com certeza, pontualmente... Há, com certeza, mais até do que gostaríamos... Mas, ao fim destes anos eu tenho algum orgulho por o nosso blogue não se  ter tornado uma blogopeixarada... Muito menos, ainda a praça dos autos de fé, o muro das execuções sumárias, o palanque dos assassínios de carácter, a arena do combate político-ideológico, o megafone do pensamento único e do unanimismo,  a esponja da história dos vencedores, o muro de lamentações dos vencidos, e por aí fora...

Por isso é importante receber, periodicamente, sinais de aviso à navegação como os teus (e dos demais leitores)...  Sinais que são sempre bem acolhidos pelo timoneiro , espero, também pelo resto da equipagem...

Obrigado. Em contrapartida, ficas-me a dever a história do Malan Mané...  Um Alfa Bravo do paisano... Luís Graça.

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Notas de L.G.:
 
(*) 11 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3597: O meu Natal no mato (13): De Cutia (1970) ao CAOP1, em Teixeira Pinto (1971) (Jorge Picado, ex-Cap Mil)

(**) Op Nada Consta, vd. post de 30 de Julho de 2005, I Série do Blogue  > Guiné 63/74 - CXXX: A CAÇ 12 em operação conjunta com a CART 2339 e os paraquedistas (Agosto de 1969)  (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P5463: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (24): De volta à guerra, triste realidade

1. Mensagem de Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 13 de Dezembro de 2009:

Amigo Vinhal
Mais uma passagem de “Viagem…” a entremear um ciclo mais aceso de opiniões - expressas a meu ver com todo o direito, desde que com respeito por todos e pelos princípios do Blogue– com votos de que os Camaradas mais aguerridos se recordem daquelas férias que gozaram naqueles tempos conturbados, ficando um nada mais serenos.

Um grande abraço a todos vós para quem renovo VOTOS de UM BOM NATAL e um 2010 PLENO NO QUE DESEJEM
Luís Faria


De volta à guerra

As luzes cintilantes de uma Lisboa meio adormecida são testemunhas do meu trajecto e chegada ao aeroporto da Portela. Trinta e tal dias se tinham passado num ápice.

Pelas duas da madrugada de 13 de Julho de 1971, o Boeing da TAP percorre a pista e levanta voo levando-me nele. Nas suas asas está escrito o meu Destino : Guiné… de novo!

Comodamente instalado, tento e consigo avistar com intermitências o tremelicar das luzes terrenas e estelares.

O pensamento divaga entre a adivinhação de um futuro difuso e o passado próximo com a lembrança fresca de bons e belos momentos vividos durante trinta e tal dias (não recordo porque gozei tantos).

Para trás ficam Lisboa, Porto, Guimarães, Vizela, Vila Real, Felgueiras e outras cidades, vilas e aldeias.

Na memória ficam a paciência e os miminhos dos Pais e Irmãos . A disponibilidade e ternura cúmplices da Noiva. A alegria da Flecha, cachorra pastor alemão nos momentos de brincadeira.

Ficam também belas recordações de convívios com Amigos, piqueniques, viagens, passeios. As corridas de Vila Real onde quase fomos abalroados por um Lolla (creio) em vôo de despiste na passagem de nível, que nos polvilhou de óleo !! As viagens no Austin Sprite em que mosquitos (não os famigerados) às carradas entravam pelas juntas da capota de lona e caíam mortos no tablier e nas pernas, cobrindo-mas e às da namorada como se de uma manta se tratasse??!!! Das cachopetas (mergulhos) no rio Vizela para mostrar à plateia do parque das termas a antítese do mergulhador!! Enfim…

Tinham sido na verdade tempos de férias bem passados e em que pouco ou nada se aflorou sobre a Guiné e a guerra, o que me permitiu de certo modo esquecê-la, digamos assim.

Agora… bom, agora que ela está de novo a perfilar-se no horizonte próximo e ainda para mais em locais de experiências de certo modo desconhecidas, a mente conjectura possibilidades de adiar o reencontro com essa realidade, de modo a conseguir mais uns dias de adaptação e mentalização. Dou comigo a pensar que vou ficar em Bissau mais uma semanita ou assim, por causa de transportes e tal e tal!!

Com este pensamento sinto-me um pouco mais reconfortado e confiante e o sono passa por mim.

O Boeing faz-se à pista e aterra. Está a amanhecer e a porta abre-se.

Malas… só uma pequenita de lona vermelha aos quadrados e com zipper, daquelas que vazias se dobravam.

Aquele cheiro característico (a que chamo cheiro a formigas mortas) e aquele bafo quente e húmido, envolvem-me por inteiro logo que chego à escada.

Não havia dúvida, o Piloto não se tinha enganado. Estava noutro mundo, em que os Adidos eram a próxima paragem. Um servicito e uns diazitos mais em Bissau para a conhecer e me mentalizar de que já não estava no Puto é o que me espera, penso!

Mas o Destino é mesmo assim e no dia seguinte estávamos a embrulhar na zona do Balanguerês!!

Bissau onde me iria mentalizar, tinha ficado para as calendas!!!!
Luís Faria


Leça da Palmeira, 1971 > Luís Faria junto ao Sport Clube do Porto. Ao fundo o edifício do Instituto de Socorros a Náufragos.

Luís Faria e o Flecha

Vila Real, 1971 > Dia de corridas
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5236: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (23): Um Aspirante Xico-esperto e um grande berro

Guiné 63/74 - P5462: Não-estórias de guerra (4): O Parto, essa grande (a)ventura (Manuel Amaro)

1. Mensagem de Manuel Amaro (ex-Fur Mil Enf da CCAÇ 2615/BCAÇ 2892, Nhacra, Aldeia Formosa e Nhala, 1969 a 1971), com data de 11 de Dezembro de 2009:

Caros Editores,
Antes de entrar no período de férias natalícias, resolvi enviar mais uma não-estória.
Comecei a escrever sobre Guiledje. Mas quando vi que estava a escrever sobre a guerra, desisti.
Depois comecei a escrever sobre o branqueamento daquilo, mas falta-me informação. Não dá.
Acabei por escrever o texto que anexo.

Um Abraço
Manuel Amaro


Não-estórias de guerra IV

O Parto


Creio que quase todos os médicos que estiveram no interior da Guiné (dito mato), tiveram a experiência do parto. Alguns Enfermeiros também.

Quando cheguei a Buba em Junho de 1970, falhei por pouco. O Dr. Sérgio Ribeiro tinha-me deixado uma lista de acções imediatas, entre as quais o apoio específico a um par de gémeos com dois dias de vida. Cheguei atrasado, mas ainda colaborei na recuperação daquela feliz, mas muito debilitada mãe e no desenvolvimento dos dois rebentos.

No final da guerra, em 1974 já estavam com quase quatro anos. Alguém se deve recordar deles.

Em Junho de 1971, em Nhala, quase a chegar ao fim da comissão, faltava-me essa grande aventura. O parto. Assistir? Colaborar? Efectuar? O que fosse, seria!...

Mas em Nhala as mulheres grandes tratavam do assunto, no maior dos silêncios, sem qualquer problema.

Até que um dia… (em tudo há sempre um dia diferente dos outros). Chegou a hora do parto da Binta, mulher do António Baldé.

A mulher do António não era de Nhala. Tinha vindo de Bolama com o António, quando ele lá esteve a fazer a recruta.

O António não era milícia, era mesmo militar. E era ajudante dos enfermeiros.

E essas condições fizeram com que a Binta tivesse sido muito acompanhada por nós durante a gravidez, que era a primeira. Mas sempre pensei que no momento do parto, as mulheres grandes resolvessem a situação.

Qual quê!?

Uma noite (estas coisas acontecem sempre de noite), estava eu na messe, com mais uns camaradas, tentando esvaziar o frigorífico do Ferreira, chega o António, esbaforido, estanca na porta e chama... furriel… furriel…

Levanto-me, saio e ele com dificuldade desabafa…

- Minino não quer sair… vem comigo.

Arrancámos os dois em passo acelerado e pelo caminho fui perguntando pelas mulheres grandes. O que estavam fazendo. O que tinham dito…
O António, não raciocinava… Só dizia que eu tinha que ajudar…

Entrei na morança e lá estava a Binta, na posição de cócoras ou de quatro, sobre uma esteira, gemendo e tremendo, rodeada por três mulheres grandes, as parteiras de Nhala. Creio que estaria despida, porque ainda vi colocarem-lhe um pano por cima, enquanto eu entrava na morança.

As mulheres grandes ficaram sossegadas, não reagiram à minha presença, o que me levou a concluir que podia trabalhar sem empecilhos.

Assim que ouviu a minha voz, a Binta parou de tremer e passou a gemer menos vezes e mais baixinho.

O bebé (não gosto de dizer ou escrever, o feto), estava vivo e cheio de genica.
Os suores não eram frios.

Não houve reacção à mudança da Binta, da posição original para a tradicional posição de parto. Deitada, de costas, com os joelhos levantados…

Até convenci duas mulheres grandes a sentarem-se, uma de cada lado da Binta e darem-lhe as mãos, para ela ter algum apoio onde se agarrar e fazer força.

O toque das minhas mãos na cabeça, na face e na barriga da parturiente, funcionavam como um tranquilizante…
Passada a fase de reinstalação, com alguma acalmia, voltaram as dores intensas.

Mas agora, a Binta, comodamente (?) instalada, agarrada às duas mulheres, com os joelhos apoiados nos meus braços, podia fazer força à vontade e assim, mais facilmente colocar no mundo, aquele matulão, ensanguentado e chorão.

E cumpriu a missão.
Foi uma festa.

O António Baldé, pai do rebento, que não tinha sido autorizado a entrar durante o parto, aguardava cá fora.
Abraçámo-nos, gritou, chorou de alegria e fez-me soltar uma lágrima.

Finalmente tinha cumprido todos os meus objectivos operacionais

No regresso à messe, onde ainda estavam os resistentes do “Dimple”, fui trauteando: - “Meia-noite é meia vida/Meia vida por viver/Guitarra triste esquecida/Que ninguém sabe entender…”, um poema de Álvaro Duarte Simões, cantado por Amália e outros intérpretes do fado.

Durante o luto que cumpri durante mais de 20 anos, depois daquela guerra, tentei esquecer tudo aquilo, mas os convívios, primeiro ao nível do BCAÇ 2892, depois no ambiente mais familiar da CCAÇ 2615 e agora no âmbito do blogue, tudo isto chega em turbilhão.

E eu funciono como um entreposto de informação. Tudo o que chega, é distribuído, partilhado com a comunidade.

Sophia de Mello Breyner, se estivesse aqui, diria que ao escrever estas não-estórias, estou a fazer a minha catarse. Talvez. Não tenho a certeza. Mas, do que é que eu tenho a certeza?

Hoje, apenas por hoje, estou certo que ao escrever as minhas não-estórias, eu estou a libertar-me. E, tal como Sophia, posso dizer que…: - “bem, eu liberto-me como posso”.

Manuel Amaro
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5346: Não-estórias de guerra (3): A minha Escola (Manuel Amaro)

Guiné 63/74 - P5461: Blogoterapia (135): Foi bonita a festa do Manuel Maia, na Tabanca de Matosinhos (Manuel Reis)





FESTA DO MANUEL MAIA




Foi bonita a festa que todos os camaradas presentes ofereceram ao Manuel Maia [, por ocasião do lançamento do seu livro, História de Portugal em Sextilhas]. Ele bem a mereceu.


As querelas e picardias que por vezes exprimimos no blogue foram para as calendas gregas. Algo de muito forte, uma solidariedade forjada na guerra e no sofrimento, nos une nestes [momentos].


Nós o grupo designado pelo "Cozido à portuguesa",  sabiamente baptizado pelo Mexia Alves, tivémos um belo dia, preenchido pela sã convivência, onde a alegria e a boa disposição foram a nota dominante. O condutor, camarada Juvenal, a quem competia a responsabilidade de nos entregar nos locais certos e não beber, cumpriu exemplarmente a sua missão.


O Vasco, um bom palrador, impediu que houvesse tempos mortos.



O Mexia Alves com a sua arte de bem contar, mostrou ao Comandante e Sub-Comandante do Regimento de Artilharia do Porto uma pequena parte dos seus conhecimentos, do fora castrense, os quais não ficaram indiferentes. Estupefacto, o Comandante esboçou (não concretizou) um convite para o Mexia Alves reintegrar a sua unidade. Mexia Alves, perante tão descarado atrevimento, demarcou-se de imediato. Um ex-combantente da Guiné só aceitaria o Comando da Unidade e no posto de General!


Sei que o Mexia não me leva a mal esta brincadeira, mas os camaradas não julguem que isto é apenas pura ficção.


O encontro referido existiu na Área de serviço de Antuã, onde fomos mudar a água às azeitonas, e ficou o convite para aparecermos na Unidade.


Foi um dia diferente, muito divertido, que nos estimula a repetir e que bem sabe, nesta altura do campeonato!


Um abraço camarigo, do tamanho da Tabanca de Matosinhos, para todos os camaradas.


Manuel Reis.


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Nota de L.G.:




(*) O Manuel Reis foi Alf Mil da CCAV 8350, (Guileje, 1972/74). Vd. postes de 

12 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4175: Os Bu...rakos em que vivemos (5): Guileje bem se podia considerar um hotel de 5***** (Manuel Reis)



domingo, 13 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 - P5460: Agenda cultural (51): Concerto de solidariedade pela banda Bela Nafa, 18 de Dezembro, Instituto Franco-Português (Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos com data de 7 de Dezembro: Malta, Procurou-me Braima Galissá, o exímio tocador de Korá. Ele agora tem uma banda, a Bela Nafa e vão dar um concerto de solidariedade a partir das 20 horas de 18 de Dezembro, no Instituto Franco-Português, na Avenida Luís Bívar, n.º 91, perto do Saldanha. O concerto tem por objectivo a angariação de fundos para a compra de material hospitalar destinado à nova maternidade do Gabú. O ingresso são 10 euros

Lisboa > Museu da Farmácia > 11 de Novembro de 2008 > Lançamento do livro Diário da Guiné, 1969-1970: O Tigre Vadio > Um dos maiores representantes, na diáspora, da cultura guineense actual, o mestre, tocador de Kora e cantor (didjiu) Braima Galissá, mandinga do Gabu. (Recorde-se que o didjiu era, no passado, o tocador e cantor que ia, de tabanca em tabana contando estórias e transmitindo as últimas notícias)…Foram os seus tetravós que inventaram este instrumento único que é o Kora. Na festa do Beja Santos, ele tocou, cantou e encantou. Foto e legenda: © Luís Graça (2008). Direitos reservados. __________ Nota de CV: Vd. último poste de 10 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5441: Agenda cultural (50): Apresentação do livro História de Portugal em Sextilhas, de Manuel Maia, na Tabanca de Matosinhos

Guiné 63/74 - P5459: Tabanca de Matosinhos (14): Jantar de Natal no Restaurante do Café das Artes, dia 12 de Dezembro de 2009 (Carlos Vinhal)

1. Ontem, dia 12 de Dezembro aconteceu mais um jantar de Natal da Tabanca de Matosinhos. Porque a sala de jantar do Milho Rei já se está a tornar pequena, o local do convívio foi transferido para o Restaurante do Café das Artes, ali para os lados do Campo Alegre, já na cidade invicta.

Desta vez houve um 3 em 1, porque antes do jantar, cerca das 19,30 horas, procedeu-se à reunião da Assembleia Geral da "Tabanca Pequena - Grupo de Amigos da Guiné-Bissau - Apoio e Cooperação ao Desenvolvimento Africano", sob a presidência da Comissão instaladora, para se proceder à eleição dos primeiros Corpos Gerentes, através de voto secreto depositado em urna. Feita a contagem de votos e elaborados os respectivos autos, pelas 21 horas os eleitos tomaram posse perante o Presidente da Assembleia Geral.

2. Ao jantar propriamente dito compareceram muitos camaradas e respectivas famílias que praticamente encheram a sala. Segundo pude apurar junto do Álvaro Basto, o grande administrador destas actividades, compareceram 80 pessoas das 82 que se tinham inscrito.

Nunca é demais realçar o bom ambiente de camaradagem vivido, a presença de inúmeras senhoras, e até algumas crianças, que deram um ar mais familiar ao evento.

Não se pode esquecer nunca o grande ausente fisicamente, mas sempre presente na lembrança da maioria, o Luís Graça a quem se deve estas reuniões, pois sem ele e este seu blogue sobre a Guiné, jamais teríamos estes momentos de convívio que já atingiu um cunho familiar, onde quase toda a gente se conhece. As pessoas deslocam-se propositadamente de várias localidades do país, algumas têm de percorrer uns bons quilómetros, para participarem e conviverem em volta de um ideal, o amor à Guiné do nosso tempo e à Guiné-Bissau de hoje.

O nosso camarada Manuel Carmelita, fotógrafo oficial da Tabanca de Matosinhos, enviou-me umas dezenas de fotografias, das quais destaquei ao acaso estas:

Um grupo de bonitas senhoras

Panorâmica da sala com 80 convivas

Marques Lopes acompanhado de sua família

O camarada António Barroso

David Guimarães e sua esposa Lígia

O sempre presente António Baptista, Paulo Santiago e António Pimentel

Álvaro Basto, a par de José Teixeira, grande impulsionador das actividades da Tabanca de Matosinhos, ladeado pela esposa Fernanda e pelo pai, senhor Rolando. Por trás o camarada Lobo.

Vasco Ferreira e esposa Margarida

António Carvalho e o seu bonito rebento.

António Pimentel e o nosso médico, Francisco Silva.

Camarada Peixoto, o feliz contemplado com o quadro a óleo de autoria de Jaime Machado.

José Teixeira procede à distribuição das prendas de Natal, coadjuvado pela sua simpática filhota.

Fotos de Manuel Carmelita


Que venha o Natal de 2010 onde seremos muitos mais que oito dezenas.
Como diria Fernando Gouveia, até para o ano camaradas.
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Nota de CV:

Vd. poste de 20 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5306: Tabanca de Matosinhos (13): Jantar de Natal de 2009 no dia 12 de Dezembro no Restaurante do Café das Artes, Porto (Álvaro Basto)

Guiné 63/74 - P5458: Estórias avulsas (20): Formigas vermelhas e formigas castanhas (Armandino Alves)



1. Em 13 de Dezembro de 2009, recebemos um texto do nosso Camarada Armandino Alves, que foi 1.º Cabo Auxilitar de Enfermagem na CCAÇ 1589 (Beli, Fá Mandinga e Madina do Boé, 1966/68) e que passamos a transcrever:


Formigas vermelhas e formigas castanhas

Camaradas,

Eu não sei o que aconteceu depois de eu ter regressado da Guiné. Mas há uma coisa a que eu acho muita graça. Já li muitos postes sobre operações realizadas após eu ter vindo de lá. Já li o que foi escrito sobre os ataques de abelhas (que eu também sofri), mas nunca ouvi falar em ataques de… formigas.

Rainha e obreiras (in Wikipédia, enciclopédia livre)


Entre os vários tipos de formigas, existiam, no meu tempo, dois tipos delas caracterizadas pelas suas cores, umas vermelhas que se encontravam no Pilão, em Bissau, e que, atacando em conjunto, matavam uma galinha em poucos minutos segundo diziam os naturais locais.


Outras eram de cor castanha e encontrávamo-las no mato, quando andávamos em operações ou patrulhas nocturnas, pois elas só apareciam de noite. Se tínhamos o azar de fazer uma paragem junto de um dos seus formigueiros, era um ver se te avias. Toca a despir o camuflado para as arrancar do corpo, pois elas possuíam umas garras em forma de tenaz que se enterravam na carne e, quando as tirávamos, a cabeça ficava lá presa. Cabeça essa, que depois caía, pois, como é óbvio, tinha sido decepada do corpo.

Para evitar que elas trepassem pelas nossas pernas acima, é que os intervenientes nestas operações, eram previamente avisados para apertarem bem os cordões existentes no fundo das pernas das calças do camuflado, por cima dos plainitos, ou por cima dos bordos das botas de lona.

Em Béli, elas atacavam os nossos abrigos aos milhares e a única maneira de nos defendermos, era fugir cá para fora e esperar o regresso delas aos seus ninhos, o que se dava mal nascia o dia.

Nós esperávamos por elas com um bidão de gasóleo, espalhávamo-lo por cima dos seus corposs e lançávamos-lhes o fogo.

Só assim é que as conseguíamos matá-las.

Mas pelos vistos devemos tê-las matado todas, pois, até hoje, não ouvi mais ninguém falar nelas.

Como me parece que de 1966/68, sou o único sobrevivente em acção, não devo ter mais nenhum Camarada que me ajude a comprovar esta "formigada".

Um Abraço,
Armandino Alves
1º Cabo Aux Enf CCAÇ 1589
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Nota de M.R.:

Vd. último poste da série em:

13 de Dezembro de 2009 >

Guiné 63/74 - P5457: Estórias avulsas (63): O regresso (José Marques Ferreira)

Guiné 63/74 - P5457: Histórias de José Marques Ferreira (12): O regresso



1. O nosso Camarada José Marques Ferreira, que foi Sold. Apontador de Armas Pesadas da CCAÇ 462, Ingoré - 1963/65 -, enviou-nos com data de 11 de Dezembro de 2009, a seguinte mensagem:


A todos os camaradas desta tertúlia;

Aqui vai mais um dos meus modestos contributos para o blogue, que a inspiração e a boa forma encefálica ainda me permite.Nesta época, como digo abaixo, quero desejar a todos (mas a todos mesmo), que passem mais um dos bons momentos que possamos ter na vida: um Santo e Feliz Natal. Até um dia destes…

O regresso

Por acaso tenho presente todas as datas da minha prestação do serviço militar obrigatório. Mesmo quem as não as lembre, tem nas suas cadernetas militares de que são titulares, referidos esses tempos e os relatos de todo o seu percurso na tropa, como é do conhecimento geral.

Eu fui incorporado em 28 de Janeiro de 1963. Embarquei em Lisboa em 14 de Julho de 1963, no navio Sofala com destino ao C.T.I.G. (Comando Territorial Independente da Guiné), fazendo parte da CCaç 462, tendo desembarcado em Bissau em 21 de Julho. Em 7 de Agosto de 1965, embarquei em Bissau no navio Niassa de regresso a Lisboa, em 14 de Agosto.
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Depois desta, tenho outras pequenas histórias destas viagens, que não faz mal nenhum partilhar e convosco o farei. Começo pela última (o regresso), embora tenha na forja a da partida para a Guiné, sobre a qual, a 40 e tal nos de distância, apetece-me (agora) comentar. Digo entre parêntesis «agora», porque antes não podia, e se o fizesse cruel destino me esperararia.

Como já disse aqui várias vezes, chegamos à Guiné e ficamos (todos) "alojados" numa escola primária em Bissau (Escola Teixeira Pinto), próximo do Pilão, junto do depósito de água. Ali permanecemos uma semana. Após esse período, organizou-se uma coluna auto e lá fomos em direcção ao mato. Armados de G3 novas em folha, creio que as primeiras armas automáticas a serem utilizadas na Guiné, com destino a Ingoré.

Foi um tormento para lá chegar, menos de 100 Kms de distância! Hoje já não acontece isso, pela existência das pontes de João Landim e de S. Vicente.

O resto da Companhia foi distribuída por Sedengal, S. Domingos, Susana e Varela. Uma área enorme. Não vou agora falar de cada uma destas localidades. Uma região sempre junto da fronteira com o Senegal.

Nesta região, com algumas alterações pelo meio, aqui permanecemos durante dezasseis meses, «Na pousada do sossego!»

Na altura em que se começava, com aquele tempo, a pensar na contagem decrescente para o regresso, enfiaram-nos na zona de Bula, onde a Companhia que substituímos ficou reduzida a quase metade entre mortos, feridos, hospitalizados, evacuados, etc.
Imaginem o quanto sofreu aquela gente, cuja companhia já não lembro qual era, mas da qual tenho aqui próximo (no concelho) um camarada. Era condutor e chegou a andar pelo ar com uma mina na sua GMC, na estrada Bula-Binar-Bissorã.

Todos se interrogavam o porquê, com aquela «idade» de Guiné, terem-nos metido num local daqueles, quando até aí nunca tivemos de dar tiros contra o que quer que fosse.

Pouco tempo lá estivemos. De Bula, fomos ocupar a área compreendida entre Có, Ponate, Jolmete e Pelundo, onde não havia nada que permitisse um mínimo de condições de habitabilidade humana. Tivemos de construir tudo a partir do zero.

Passados uns meses, lá fomos novamente de tralha às costas para Mansoa. Para aqui já eu não me desloquei, porque era um período de permanência, para a espera de regresso a casa.

Como tinha sido 'aproveitado' para «administrador» da Companhia e como já referi em anteriores postes, essa administração era feita a partir de Bissau e então aqui permaneci até ao dia da chegada do Niassa. Inclusivamente estive com o alferes da área administrativa a fechar as contas do BCAÇ 507, que entretanto tinha terminado a comissão de serviço.

Fiz a lista identificativa do pessoal a embarcar (que ainda guardo), assinada pelo capitão Luís Manuel das Neves e Silva, que substituiu o Cap. Mil. Jorge Saraiva Parracho entretanto regressado à Metrópole. Entregue nos vizinhos da Amura (QG) e como estava na secretaria, mantinha-me sempre de ouvido alerta para saber quando chegava o barco e quando poderíamos embarcar.

Um dia chega chegou uma circular a anunciar o tão ansiado facto. Fui o primeiro a lê-la e fiquei assustado, porque não via na lista a identificação da minha Unidade Militar. Tive um assomo de lucidez e virei a página. Porra, no verso lá estava a CCAÇ 462... Era a última da lista... que alívio!

Recebida a ordem de embarque, fui o primeiro da Companhia a entrar no navio, após o almoço. Durante a tarde começaram a chegar os meus camaradas de Mansoa. E quando todos foram para a farra, em Bissau, comemorar a felicidade de regressar e gastar os últimos "pesos" que tinham no bolso, desafiaram-me a ir com eles também. Respondi negativamente, porque dali, de dentro do Niassa, já ninguém me tirava.

Efectivamente foi assim. Já dormi no navio nessa noite e até à saída no dia 7 de Agosto de 1965, ali permaneci. Quer dizer que terei entrado no navio Niassa, que me transportou até Lisboa, no dia 6 de Agosto de 1965.


Navio Niassa


Para todos um abraço,
J.M. Ferreira
Sold Ap Armas Pes
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Nota de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em:


Guiné 63/74 - P5456: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (1): Esta noite fomos ao Fiofioli

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Fiofioli > Março de 1969 > Operação Lança Afiada. O Alf Mil Paulo Raposo, da CCAÇ 2405, junto a um dos helicópteros. O número de evacuações, por insolação, desidratação, doença, ataque de abelhas e esgotamento foi enorme: mais de uma centena de casos.

Foto: © Paulo Raposo (2006). Direitos reservados


1. Texto, de nove do corrente, enviado pelo nosso camarada António José Pereira da Costa (Cor Art na reserva, na efectividade de serviço), ou António Costa, tout court, que comandou a CART 3494 (Xime, 1972/1973):

Camarada: Aqui vai um texto que escrevi a propósito das aventuras de um dos meus alferes.

Em anexo segue umas fotos do mesmo.

Depois de muitas aventuras e, principalmente desventuras, está no Telhal, numa situação psicológica que lhe permite sair, viver fora do hospício, mas em regime de república junto de outros doentes. Vi que reagiu mal à mobilização e que nunca aceitou a guerra como uma necessidade, mas sim como algo, tipo pincel, que era necessário fazer, por não haver saída. Sofria muito, mas pareceu-me sempre que recuperaria e, à chegada, chegou a ser o meu dentista.

Se puderes publicar, será uma homenagem?!

Ora informa.
Um Ab. do
António Costa


2. Mandei ao António Costa o seguinte desafio:

António: Adorei!!! Andaste a esconder, este tempo todo, o teu talento literário... Se me garantires, no mínimo, mais cinco textos, vou abrir para ti uma série (exclusiva) que pode ser qualquer coisa (irónica) como Um Capitão do QP gozando as delícias do sistema; ou: O quotidiano da guerra de um Capitão do QP...

O título és tu a escolhê-lo e deve incluir o teu nome... O que vai variando é o subtítulo... Estás nessa ?

O mito (e o papão) do Fiofioli já vinha do meu tempo... Procura na I Série do Blogue... A malta foi lá n aLança Afiada (Março de 1969)... A minha malta (CCAÇ 12) andámos lá perto mas nunca lá fomos... Esses 19 km eram fatais, a nossa artilharia não chegava lá...do Xime ou de Mansambo ou do Xitole.

Um abraço. Luís

3. As Idas ao Fiofióli
por António Costa

Não sei, mas gostaria de saber, o que quer dizer Fiofioli. Talvez signifique algo que nada tem a ver com violência ou com guerra, numa qualquer língua primitiva dos povos da Guiné...

Durante a guerra, no Xime, ouvíamos falar de uma base muito poderosa que o inimigo teria na mata do Fiofióli e, a fazer fé na carta topográfica, a mata era banhada a Sul pelo rio Corubal e circundada por bolanhas pelo Norte, Oeste e Leste. Uma bolanha é, essencialmente, uma zona alagável, geralmente aproveitada para o cultivo do arroz. Podemos, por isso, dizer que a mata do Fiofióli era quase uma ilha que distava, em linha recta, cerca de 19 km do nosso quartel. Não tenho memória de nenhuma acção ofensiva (*) sobre esta base, o que levantaria problemas graves na aproximação que lhe fosse feita. E, contudo, ela existia, não passando, talvez de um pequeno conjunto de moranças. Às vezes a fama não corresponde à realidade...

A messe de oficiais do quartel do Xime era constituída por quatro rulotes, que serviam de quartos, imobilizadas nos vértices de um rectângulo de terreno acimentado. As rulotes, já bastante degradadas, tinham sido utilizadas pelo Amílcar Cabral, quando trabalhava para o Estado Português, integrado numa brigada para o estudo da agricultura da Guiné.

No centro do rectângulo acimentado, cravado no solo, havia um alto tronco de palmeira que servia de apoio central ao telhado de quatro águas, em colmo e rachas de cibe. Junto do tronco de palmeira estava a mesa onde almoçávamos e jantávamos, à luz de um candeeiro com três lâmpadas dentro de garrafas sem fundo e pendurado no telhado daquela espécie de gigantesca morança.

Alguém havia criado um “espaço de lazer” constituído por uma mesa baixa, de forma oval e quatro maples baixos em madeira. O conjunto estava envernizado a escuro e a madeira era, quase de certeza, de bissilon. Alguém tinha construído também um “espaço desportivo” numa pequena mesa de pernas bastante altas. Era um tabuleiro para jogar damas ou xadrez, desde que alguém trouxesse as respectivas peças, claro. O tabuleiro tinha os habituais quadrados pretos e brancos e era circundado por uma faixa verde-alface, onde se podiam depositar as peças fora de jogo. A esta distância não me lembro de outro mobiliário que, por ali houvesse.

A entrada da messe era larga e eu nunca a vi fechada, embora tivesse dois portões (chamemos-lhe assim) em chapa de zinco ondulado. Pela altura que tinham, pouco mais de um metro, não sei bem qual seria a sua utilidade, mas decoravam e muito... Daí que a messe, vista daquele lado mais se assemelhasse a uma garagem com telhado de capim. Na parede oposta à entrada, havia três portas: a do centro dava acesso a uma casa-de-banho rudimentar, a da esquerda à, muito pomposamente designada, copa e a que se situava bem no canto do lado direito era a entrada para o gabinete do comandante da companhia. Este era exíguo, com o mapa do sector pregado na parede atrás da cadeira rotativa e de madeira. Tinha uma secretária pequena, feita de madeira de má qualidade e que o ocupava em grande parte. O gabinete tinha janela, mas já não me recordo se tinha porta para o exterior do “edifício” da messe.

Assisti, enquanto criança, à construção de, pelo menos, uma das rulotes. Pude confirmá-lo ao ver uma pequena chapa que atestava que havia sido construída na Auto-industrial da Amadora, situada na avenida Santos Matos. A oficina tinha uma espécie de pátio, onde ficavam arrumados os carros e onde eram feitos certos trabalhos, como foi o caso da construção da rulote. Os meus pais disseram-me que o Mercado Municipal havia funcionado no edifício e pátio da oficina.

Vi, pois, construir a rulote que, entre Junho e Novembro de 1972, me serviu de quarto. Estava muito degradada, assim como todas as outras. Já só tinha uma divisão utilizável e aquilo que fora a casa-de-banho era agora um monte de bocados de madeira e alumínio ou outro produto parecido. Utilizei o mobiliário de que o quarto ainda dispunha, já mais que gasto pelo uso e maus tratos dos outros utilizadores. Tinha a sensação de viver num lugar estranho, numa espécie de sótão pleno de restos de coisas indescritíveis em que avultavam os bocados de alumínio, de contraplacado e restos de colchões, num ambiente fortemente temperado pela humidade. Enfim, como era só para dormir, talvez não tivesse de que me queixar...

A esta distância no tempo, não consigo acrescentar outros detalhes à descrição às “rulotes do Amílcar”. Naquela altura ouvi dizer que ainda havia uma outra, abandonada em Pirada, transformada em posto de sentinela.

Na messe havia também um bar, que não passava do aproveitamento do espaço entre duas rulotes, onde fora construído um balcão em madeira e verga. Atrás do balcão, funcionava um frigorífico a petróleo, cuja mecha se apagava sempre que a artilharia fazia fogo. Recordo-me que tinha prateleiras, cuja utilidade não descortinei, por estarem sempre vazias. Não serviam para nada, mas decoravam. Já se imaginou um bar sem prateleiras?

Era naquele espaço que ficávamos, depois do jantar, a conversar acerca de tudo o que fosse surgindo. Passaram vários por ali, mas, normalmente éramos quatro ou cinco. Recordo o Gomes, o Carneiro, o Pinho da Artilharia, rapidamente substituído pelo Viegas, o Sousa e o Pereira. Enquanto lá estive, passou por lá o Correia, muito activo e animado, mas que, ao fim de poucas semanas, foi transferido, não sei para onde, após uma visita do brigadeiro adjunto-operacional.

O ambiente era triste e lúgubre. As conversas banais ou profundas, sem que para isso houvesse intenção dos participantes. Tinha de ser assim, entre tão poucas pessoas forçadas a conviver num espaço tão reduzido. Muitas vezes falávamos da guerra e da política do país. Debatíamos a guerra quer na Guiné, quer no sector que nos tinha tocado. Neste último tema não havia grandes inovações e acabávamos sempre a comentar as “últimas notícias do Batalhão”. Eram normalmente histórias cómicas, que resultavam de mal-entendidos ou situações pouco claras.

Entre essas histórias surgiu uma verdadeiramente insólita com o nosso comandante de batalhão. A dado momento da comissão, foi promovido, mas manteve-se em funções. Como é natural não havia possibilidades de comprar um par de galões de coronel, no interior da Guiné. Daí que, um dia ou dois depois de ter sido promovido, tivesse ido ao Xime, sem nenhum distintivo que o identificasse pelo posto. Ao vê-lo assim, perguntei-lhe se fora despromovido, crendo que a falta dos galões se devia a simples distracção. Quando me respondeu negativamente, sinceramente, não acreditei que tivesse sido promovido e, gozando interiormente com a “distracção”, limitei-me a desejar-lhe felicidades no novo posto. Porém, vim a saber que a esposa dele, diligentemente havia tentado colmatar a falta de galões do marido, cozendo junto dos de tenente-coronel, um galão de alferes. Por esses dias o chefe do Serviço de Intendência da Guiné visitou o Comando do Batalhão e, logo ao descer do avião, ao ver os extravagantes distintivos do novo posto, perguntou-lhe:
- Olha lá, oh T... agora és um coronel entre parêntesis?

Descrito o ambiente e as rulotes, passemos aos seus habitantes.

O “Manel” Gomes tinha andado comigo no liceu Passos Manuel. Dois ou três anos mais novo, era um miúdo agressivo, sempre em actividade e que não podia deixar de chamar a atenção para os seus cabelos louros encaracolados e os olhos azulíssimos. Era aquilo a que podíamos chamar um malandreco reguilote.

Passados dez anos, ali estava ele, praticamente só, no comando de mais de meia-companhia. Quando cheguei, estava a braços com os restos da emboscada na Ponta Cóli, que tinha dado vários feridos e a morte ao furriel Bento. Havia tarefas burocráticas a cumprir e prazos a respeitar e o Gomes sofria por não saber o que fazer, parecendo não ter apoio de ninguém. Suava quase permanentemente e vivia numa tensão que não abrandava. Amava profundamente a mulher e a filha e, numa pequena embalagem de plástico, levava para as operações, num bolso do camuflado, uma frase escrita no reverso do retrato das duas:
- Abandonne-toi à ma providence et ne doutes jamais de mon amour. [Entrega-te à minha providência e nunca duvides do meu amor].

Era um jovem generoso a pedir que o guiassem. Quando retirámos da água o corpo sem vida do Sousa afogado no Geba, queria, recorrendo aos toscos conhecimentos dum primeiro ano de medicina incompletíssimamente estudado, retirar do corpo, a água que impedia que fosse metido no caixão. O Sousa acabou por ser sepultado em Bambadinca, dentro de um caixote de bacalhau, ao fim de vários dias de espera pelos ferros e luvas de autópsia que permitissem aproximar o corpo das suas dimensões normais. Vi, num programa da televisão portuguesa, o estado em que a sepultura está, passadas que foram quase quatro dezenas de anos. Com poucas defesas a nível psíquico, o Gomes sofria cada vez mais. Voltei a encontrá-lo, na terra onde ambos vivemos. Era dentista, bem afreguesado e foi o dentista da minha família até que o consultório fechou. O resto todos sabemos.

O Viegas gritava, de vez em quando, que “queria andar de eléctrico”. Era natural. Para ele “Portugal era Lisboa” (sua cidade natal) e a “capital era Boa-Hora” (o bairro onde residia e que era bem servido de eléctricos). Era um rapazinho de cidade, um produto da Lisboa daquele tempo. Frequentado o Liceu, preparava-se para iniciar a sua carreira de cidadão suburbano no país triste do tempo, entre as habituais “vitórias do Benfica” arduamente discutidas no escritório, à segunda-feira, e a monotonia da programação da televisão que dava ainda os primeiros passos. Parecia ainda uma criança, que não entendia o que lhe tinha sucedido, ao cair naquele local. O Gomes tinha dado uma ajuda para que assim fosse.

No dia da chegada do Viegas, o Gomes resolveu disfarçar-se de “apanhado do clima”. De camuflado, com o dolman desabotoado de alto a baixo arrastava os longíssimos atacadores das botas por atacar. Ao ombro trazia um periquito com quem vinha a conversar. Parou junto do Viegas e perguntou-lhe:
-Tu, estás aqui porquê? Também vens resolver o problema do balanta?

Mais que surpreendido, Viegas nem respondeu:
- Anda TóTó, não ligues ao gajo, que é maluco - disse para o periquito e virou as costas em direcção à messe de sargentos.

O “piriquito” (nome que se dava, na Guiné, aos militares recém-chegados) Viegas não sabia o que fazer. Disse-nos, depois de refeito, que chegou a admitir que o Gomes estava mesmo “apanhado pelo clima” e interrogava-se como iria lidar com alguém naquele estado de espírito. Foram realmente uns minutos infernais, com o Gomes a entrar e a sair da messe e a interrogá-lo sobre o “problema do balanta”. Esta expressão era utilizada por um industrial de Bafatá, com quem conversávamos, às vezes quando vinha ao cais do Xime, despachar madeira. Era a sua explicação para a guerra, naquela área da Guiné. Segundo ele, no dia em que se compreendesse o povo balanta e o seu modo de pensar, a guerra terminaria. Não sei se o dizia sentindo-o ou se pensava estar a ensinar-nos qualquer coisa. Captámos-lhe a expressão, que tantas vezes usava, e adoptámo-la quase como “bordão” nas conversas diárias.

O Sousa era mais velho, talvez o mais velho de todos nós. Com físico de lutador, do alto do seu metro e oitenta tinha um aspecto grave, falava baixo e parecia envelhecido e marcado pela vida. Talvez por isso, não exercia uma crítica muito aberta ao meio que o rodeava, mas via-se claramente que não “fora feito para aquilo”. Um dia perguntei-lhe o que fazia ali sendo licenciado em engenharia têxtil pela Universidade de Leeds. Quais seriam as razões que o teriam feito voltar para Portugal com uma habilitação tão válida? Compreendi, então o seu ar sério, a sua falta de alegria própria da idade e, ao mesmo tempo, um certo estoicismo com que se conduzia. Tinha um irmão deficiente mental e preparava-se para passar a gerir a fábrica que a família tinha na Covilhã, quando voltasse a Portugal. Estava a atravessar o deserto, desde que fora incorporado em Mafra. Já licenciado, tinha sido considerado apto para comandante de companhia e, na Guiné, fazia um estágio de quatro meses. Seria promovido a tenente, à chegada a Lisboa, e embarcaria como capitão graduado, à frente de uma companhia. Esta era uma situação que dava o indício da falta de meios humanos com que o Exército se debatia e da maneira atamancada como a administração estava a resolvê-la.

Conheci mal o Carneiro, com quem estive pouco tempo. Tenho ideia de que foi transferido para uma companhia de tropa africana. Depois do 25 de Abril, encontrei-o junto ao Palácio da Independência, onde funcionava a Associação de Deficientes das Forças Armadas. Fiquei a saber que foi atingido, num olho, por um estilhaço minúsculo que lhe limitou a visão.

Também não conheci bem o Pereira de quem guardo uma imagem de maturidade, quer na vida, quer na tropa. Julgo que foi tardiamente mobilizado, mas a que motivos isso se deveu, não sei.

À noite, depois do jantar, sentávamo-nos a conversar e bebíamos aguardente Antiqua, cuja garrafa tinha a forma de um esguio funil de vidro. Quando uma garrafa se esgotava, metíamo-la numa vasilha com água e retirávamos-lhe o rótulo que colávamos na parede exterior da rulote do Gomes. Assim, íamos fazendo um painel com mosaicos negros com letras douradas. Era uma forma de decoração barata e... própria de um local de convívio. Às vezes havia música. Era sempre a mesma, mas era música. Viegas anunciava:
- Agora, senhoras e senhores vamos ouvir o conhecido “Gomes dos Autos” na popular canção: Quem eu Quero não me Quer.”

O Gomes dedilhava a viola e lá ia cantando. Era a única canção que sabia tocar completamente. “Arranhava” outra, mas quase nunca chegava ao fim. Era em inglês e isso complicava a tarefa. E começava “Nights in White Satin...”

Outras vezes ouvíamos o “Pê-Fê-Á Noctuuuurno”, feito pelo locutor 1º cabo João Paulo Dinis. Era a edição nocturna do Programa das Forças Armadas, que terminava cerca da meia-noite. A partir daí, a rádio só recebia parasitas ou, esporadicamente, alguma longínqua estação africana, a emitir numa língua que não entendíamos. Durante o dia ainda conseguíamos ouvir a rádio do Senegal que tinha um programa cujo genérico era a Françoise Hardy a cantar “Je Veux qu’ils reviennent”, mas de noite era melhor poupar as pilhas do rádio.

O Sousa e eu recolhíamo-nos relativamente cedo. Terminados os temas de conversa, íamos para os nossos quartos. Normalmente o Gomes e o Viegas ficavam mais um bocadinho a conversar e para um último cálice. Durante algum tempo ainda os ouvia a conversar. Mas havia noites em que a conversa se prolongava numa catorreira repetitiva. Era uma conversa monótona, tanto pelo tema, como pelo ritmo e altura da voz. As conversas dos (cada vez mais) bêbedos duram muito e aquelas podiam chegar a uma noite inteira.

No dia seguinte, quando lhes perguntava a que horas se tinham deitado a resposta era sempre a mesma:
- Tarde! Esta noite fomos ao Fiofióli!

Vim a saber, um dia, que às vezes conversavam e bebiam até o Sol nascer. Depois iam ao padeiro da companhia que, por volta das seis da manhã, já tinha o pão a sair do forno. Era um pão de boa qualidade, como era habitual nas unidades do mato. Os dois conversadores, bem conservados em álcool, comiam pão às fatias bem barradas com manteiga e café quente. Depois, iam então descansar de mais um golpe de mão à Mata do Fiofióli.

Talvez fosse a maneira de resistir que, instintivamente, tivessem descoberto, num sítio onde o inimigo não seria a nossa maior razão de queixa... Mas isso são outras histórias.
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Notas de L.G.:

(*) Vd. postes de:

15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli

14 Novembro 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal (Luís Graça)

(...) Publica-se a quarta e última do extenso relatório da Op Lança Afiada, que decorreu entre 8 e 18 de Março de 1969, na região compreendida entre a linha Xime-Xitole e a margem direita do Rio Corubal, até então considerada como um "santuário do IN".

A operação, comandada pelo coronel Hélio Felgas (o patrão do Agrupamento 2947, mais tarde comando operacional de Bafatá, COP 7, se não me engano), coadjuvado por dois tenentes-coronéis, Jaime Banazol (liderando o Agrupamento Táctico Sul, com mais de 500 homens que partiram do Xitole e de Mansambo) e Manuel Pinto Bastos (comandante do BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70), que encabeçava o Agrupamento Tático Norte (com cerca de 750 homens, que partiram do Xime). Ao todo 1300, entre soldados metropolitanos, milícias e carregadores...

Foi uma das últimas grandes "operações de limpeza", realizadas no primeiro ano de Spínola, enquanto Governador Geral e Comandante-Chefe (que fez questão de estar presente, junto das NT, no Dia D + 9, ou seja, 17 de Março de 1969, partilhando inclusive o transporte naval que levou os nossos esgotadíssimos camaradas da Ponta Luís Dias à Ponta do Inglês, no regresso ao Xime.

Apesar dos elevados meios humanos e materiais envolvidos, a correlação de forças não se modificou e, depois de um rápido processo e reorganização, a guerrilha voltava a obrigar as NT a acantonarem-se nos seus aquartelamentos onde flutuava a bandeira verde-rubra (Bambadinca, Xime, Mansambo e Xitole) e destacamentos dispersos. A população civil, sob a administração do PAIGC, foi a grande vítima desta megalómana e descoordenada operação.

Os soldados portugueses serviram, por sua vez, de cobaia num teste de resistência, a que o autor do relatório, sem despudor, chama processo de "selecção natural" (sic)... Num total de 700 e tal homens metropolitanos (o resto eram milícias e carregadores, habituados às duras condições do terreno), conclui-se que um sétimo fora mal seleccionado para o TO da Guiné, já que no decorrer da operação teve de ser evacuado, de helicóptero, por "insolação, ataque de abelhas e doença" (sic).

É o próprio relatório a reconhecer que, nesta época (tempo seco), as temperaturas andarvam entre os 39 e os 44 graus, à sombra, e entre os 55 e os 70º ao sol, e que nesas condições, (i) a guerra tinha que parar das 10 da manhã às 16h da tarde, precisando um soldado metropolitano de 8 a 10 litros de água (!)...

Nesta operação em que os guerrilheiros e a população por eles controlada passaram simplesmente para o outro lado do Rio Corubal (com os cães, os porcos, as galinhas...) (não havia paras, comandos nem fuzos do outro lado...), o verdadeiro inimigo das NT foi, de facto, a desidratação, além dos problemas alimentares: o tipo de rações que deram aos nossos soldados (a ração dita normal) era tão má que provocava uma sede horrível: ao segundo dia, já não se comia; ao terceiro, começava a haver problemas...

Tratou-se de uma operação onde se foi a lugares míticos, como a mata do Fiofioli, junto ao Corubal, mas ninguém encontrou médicos e enfermeiras cubanas... Hospitais de campanha, sim, mas já abandonados, uns meses antes. Destruiram-se muitas toneladas de arroz, mataram-se milhares de animais, queimou-se tudo o que era tabanca... Em contrapartida, houve 24 flagelações do IN, mas os guerrilheiros seguiram as regras da guerrilha: retirar quando o inimigo, ataca: atacar, quando o inimigo retira... O autor do relatório, irritado, queria que os tipos do PAIGC se apresentasse de peito feito às balas e dessem luta...

O mais caricato e divertido desta operação é que o pessoal deitou fora as rações de combate e desatou a comer leitão assado no espeto!

Este é um cínico relato da dura condição da guerra da Guiné, vista pelo lado dos tugas. Por outro lado, há críticas veladas, do autor do relatório, ao Comandante-Chefe, ao Quartel General e à Força Aérea (que se teria comportado como uma verdadadeira prima dona...).

Há coisas, pouco abonatórias para as NT, que se passaram neste operação e que eu deixo à atenção e consideração dos tertulianos e demais visitantes deste blogue. Cada um de vós que faça a sua leitura desapaixonada... Aqueles de nós, que foram operacionais, rever-se-ão mais facilmente no cenário que foi o da Op Lança Afiada... Sobre o desempenho dos actores, já não vale a pena assestar as bateria da crítica... Felizmente que a guerra acabou! War is over, baby!

Seria interessante ouvir, entretanto, o depoimento de camaradas do BCAÇ 2852 que participaram na Op Lança Afiada. Infelizmente, ainda não temos [não tínhamos em Novembro de 2005] ninguém dessa unidade, na nossa tertúlia.

Para uma correcta localização das povoações ao longo da margem direita do Rio Courbnal, consulte-se o mapa, dos Serviços Cartográficos do Exército, relativo ao Xime, disponibilizado, mais uma vez, pelo nosso amigo e camarada Humberto Reis, ex-furriel miliciano da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71). O mapa do Xime deve ser complementado por outros como Fulacunda, Xitole e Bambadinca, também disponíveis on line.

Deixem-me só lembrar que, dois meses depois desta operação, o PAIGC retribuiu a visita das NT e apareceu às portas de Bambadinca em força: mais de 100 homens, três canhões sem recuo, montes de LGFoguetes, morteiros... Esse ataque ficou célebre: os tipos de Bambadinca foram apanhados com as calças na mão, faziam quartos de sentinela sem armas; enfim, um regabofe... Claro que no dia seguinte o Caco Baldé deu porrada de bota a baixo, nos oficiais todos, do tenente-coronel (o célebre Pimbas) até ao capitão da CCS...

Um caso exemplar, divertido e hilariante, da guerra da Guiné... A sorte dos gajos de Bambadinca foi os canhões s/r terem-se enterrado no solo e a canhoada cair na bolanha... Quando nós, periquitos da CCAÇ 2590 (futura CCAÇ 12), lá passámos, uma semana depois, vindos de Bissau e do Xime a caminho da nossa estância de férias (Contuboel, um mês e meio de paraíso... seguido depois de18 meses de inferno...quando fomos justamente colocados no Sector L1), os nossos camaradas da CCS do BCAÇ 2852 ainda estavam sem pinga de sangue...

"Podíamos ter morrido todos", dizia-me 1º cabo cripto Agnelo Ferreira, da minha terra, Lourinhã... Fomos depois nós , para lá, com os nossos nharros, e em 18 meses nem um tirinho: que o respeitinho (mútuo) era muito bonito... Porrada, porrada, era só quando a gente se atrevia a meter o bedelho na terra deles, que já estava "libertada"... Eu faria o mesmo, na minha terra...

Na história do BCAÇ 2852, o ataque a Bambadinca é dado em três linhas, em estilo telegráfico:

"Em 28 [de Maio de 1969], às 00H25, um Gr In de mais de 100 elementos flagelou com 3 Can s/r, Mort 82, LGF, ML, MP e PM, durante cerca de 40 minutos, o aquartelamento de Bambadinca, causando 2 feridos ligeiros". (L.G.).

Vd. também , 6 de Julho de 2006 >Guiné 63/74 - P941: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (13): Operação ao Fiofioli