O Regresso dos Heróis*
Por
Domingos Gonçalves
(Ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887)
DEDICATÓRIA
A todos os colegas da CCAÇ 1546 do BCaç 1887
VI - O DESEMBARQUE
Dia 2
Vinte e duas horas e quinze minutos... Lisboa à vista... Ao longe, quase no limiar do horizonte, vislumbram-se já as luzes da cidade, talvez as da zona mais alta. Vista de longe e do mar, a cidade mais parece uma cascata enorme, suspensa no horizonte distante. Hoje, ao longe, a bela cascata aparece diluída por entre uma ténue neblina que transmite às luzes uma beleza especial.
O jantar foi melhorado e houve discursos na sala. Discursos! Esta gente gosta muito de discursos... De abrir a boca... Falar... Falar... E não dizer, em rigor, praticamente nada... Mas isto faz parte da praxe. Uma viagem destas não pode terminar sem que os maiorais botem faladura.
O desembarque será pelas oito horas de amanhã.
Está previsto haver desfile às dez horas. A farda a usar durante o desfile já determinaram que será a seguinte:
- Camisa com manga arregaçada, desabotoada no pescoço, calça verde e botas pretas.
Estes parvos esqueceram-se que estamos no Inverno e que vai fazer muito frio. O tórrido calor da Guiné faz já parte de outro mundo e de outra realidade e o ar condicionado do barco não se pode levar para as margens do Tejo... Mas esta tropa pensa apenas na cerimónia que, se não se fizesse, ninguém se lembraria dela. Eles querem por certo mostrar aos jornalistas o regresso dos heróis... Mas os heróis preferiam que os deixassem em paz, poupando-os pelo menos ao incómodo de os exporem ao frio e à humidade de uma manhã de Fevereiro, aqui nas margens sagradas do Tejo. Continuam a ser burros até ao fim... Isto é incrível!
Vista nocturna da Ponte 25 de Abril, à época, Ponte Salazar
Foto: © Jaime Machado (2008) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados
Dia 3
A alvorada está perto. O barco desliza lentamente Tejo acima... Passou já sob a ponte e prepara-se para atracar.
Os marinheiros efectuaram já as últimas manobras... O barco já se encostou ao cais.
Em terra, uma grande multidão de pessoas aguarda a nossa chegada. Há emoção dentro e fora do barco. É um momento grande e indizível... Todo este ambiente, que aquece um pouco esta manhã fria, tem qualquer coisa de épico! São uns minutos longos estes que antecedem a ordem para desembarcar. Mas são também momentos feitos de grandeza... De tudo isto ninguém se poderá jamais esquecer. Os heróis vão ter uma recepção à altura dos feitos que praticaram...
No edifício da Alfândega agitam-se muitas bandeiras coloridas. Há, também, levantados no ar, cartazes, bastantes cartazes, com o nome das pessoas que estão para desembarcar. Há, também, uma multidão de pessoas que agitam no ar muitos lenços brancos. Dentro e fora do barco, há uma onda de alegria, uma onda enorme, que varre toda a margem do rio. Há uma grande multidão à nossa espera. Somos os heróis que muita gente quer ver chegar. Finalmente somos alguém... Alguém que merece aplausos... Palmas, muitas palmas...
No barco, a tropa está toda nos tombadilhos, do lado do cais. O
Quanza está mesmo inclinado para o lado da margem do rio. A rapaziada dá gritos de alegria, de entusiasmo e de paz. Por entre esta neblina matinal, húmida e leve, vai crescendo uma onda de delírio e de festa. O ambiente é mesmo impressionante... Grande... Indizível... É um ambiente festivo, de alegria a transbordar dos corações de toda esta gente, quer dentro, quer fora do barco. Uma grande algazarra ecoa por toda esta zona, não deixando ninguém indiferente.
Já é dia. Nenhuma distância nos separa da muralha do cais.
Porto de Lisboa > Estação Marítima de Alcântara > Momento da atracação do navio
Porto de Lisboa > Placa da Estação Marítima de Alcântara > Multidão aguardando a chegada de Militares, em fundo a Ponte Salazar (hoje 25 de Abril)
Porto de Lisboa > Placa da Estação Marítima de Alcântara > Multidão aguardando a chegada de Militares. Fotos: © Américo Estorninho (2010). Direitos reservados
Chegou a ordem para abandonar o barco. As bagagens também estão a ser descarregadas.
Finalmente estamos todos em terra.
Em mangas de camisa o pessoal formou para o desfile. Todos tremem de frio... Esta primeira manhã de contacto com o céu do meu país, é uma manhã gélida, repassada de humidade. Mas, que importa? É o último dia do martírio a que fomos submetidos. O último sacrifício que bem podia ser evitado... Para que uns militares de alta patente, dos que enxameiam o Estado Maior, ou os quartéis de Lisboa, ou talvez algum ministro mais madrugador, possam assistir a um desfile, corremos nós o risco de apanhar uma gripe, para a qual a tropa já se está lixando. Mas, para esta gente de cá, o desfile deve ser uma coisa muito importante.
Estes políticos adoram estas cerimónias, o barulho destas fanfarras, todo este aparato, que tem, queira-se ou não, um sabor a nobreza, algo de grande e impressionante. E esta população de Lisboa habituou-se já a estes passa tempos, sem os quais já se não habitua a viver.
Foi sempre assim aqui em Lisboa. São barcos que partem para longe... E são barcos que chegam, também de longe... E é uma população de curiosos para ver quem chega... E de “Velhos do Restelo,” para ver quem parte...
Este frio que estamos a suportar é para eles motivo de prazer... Talvez mesmo de êxtase...
O último sacrifício dos heróis enche-lhes a alma. Quanto maior é o sacrifício de uns, maior é o prazer de outros. Eles olham este desfile quase com delírio.
E tudo acabou...
O pessoal entrou nas viaturas militares e está a caminho da Amadora, onde vai ser desmobilizado. Já passa do meio da tarde... O espólio está feito. Todos entregaram os reles farrapos que já eram as fardas que lhes tinham sido distribuídas, faz já muito tempo, e que o muito uso há muito inutilizou. Mas na tropa ainda se controlam farrapos que não servem para mais nada.
...E cada um para a sua terra, os soldados lá foram partindo... Uns, no meio do afã da entrega do material, nem tiveram tempo para despedidas... Outros, até viajaram no mesmo comboio, para o mesmo destino...
E tudo terminou...
Depois do nosso desembarque vai ter lugar a descarga de tudo quanto é transportado nos porões do navio. Muitas coisas, por certo. E entre tudo o que é transportado como mercadoria devem chegar, ao que se diz, muitas urnas com os restos mortais de soldados mortos, que depois são enviadas para as localidades donde eram naturais, e onde se devem realizar as cerimónias fúnebres. Tudo deve decorrer sem dar nas vistas, como acontece com a generalidade das mercadorias transportadas. Para esses não vai haver a euforia, nem a consagração, nem as ovações a que os vivos tiveram direito. Eles vão fazer a última caminhada em direcção ao esquecimento final. É que para os mortos nada mais pode haver do que o esquecimento... Sim... porque os vivos raras vezes temos memória... E às vezes é mesmo conveniente que a memória não exista...
Quantos não desejarão, enfim, que a memória se apague!
(1)
São muitos, pelas aldeias do país, os funerais quase incógnitos e despercebidos, que se vão realizando, em cerimónias simples, com o único ruído causado pelos tiros de pólvora seca, as salvas de tiros que precedem o repouso eterno dos seu restos mortais.
Soldados desconhecidos, heróis de um império agonizante, quem será capaz, amanhã, de os recordar?
Aos mortos da Companhia de Caçadores n.º 1546, que tombaram em condições diversas, por terras da Guiné, fica em homenagem ao seu sacrifício, esta modesta página de um livro, que eles também ajudaram a escrever.
Que tenha Deus em sua glória as suas almas!
E, a partir do Quartel da Amadora, a tribo muito unida que fomos espalhou-se rapidamente, em todas as direcções, num adeus de saudade.
Que não seja uma separação para sempre. De qualquer forma estes momentos foram o fim de uma longa e difícil caminhada que ninguém estará interessado em repetir, mas que também, por certo, ninguém jamais irá esquecer.
E guerra nunca mais. E que reste em nós apenas a memória de tudo quanto foi bom e de tudo quanto foi mau, porque tudo foi vida.
Que fique apenas a amizade construída na alegria e na dor de tantos longos dias que a tornam profunda e inesquecível.
Que ninguém mais esqueça o camarada que caiu a seu lado!
Que ninguém mais esqueça o amigo de todos os dias, junto de quem sofreu e lutou!
Que ninguém mais se esqueça, apesar de terrível, pelas suas lembranças, de uma terra chamada Guiné.
Sim... Porque foi por causa da Guiné que existiu um dia um grupo de homens, a que deram o nome de Companhia de Caçadores n.º 1546!
Se não fosse a Guiné, e a guerra, enquanto conjunto de homens, nunca chegaríamos a existir...
... E sem nós... Sim... Sem nós, Portugal e a própria humanidade, teriam menos história e seriam muito mais pobres! E até as nossas vidas teriam sido outras... Quem sabe... Até mais curtas e penosas...
(1) - Joaquim Vieira, na obra, “Portugal Século XXl,” Crónica Em Imagens, 1960-1970, Ed. Círculo dos Leitores, Pag. 52 e seguintes, num pequeno texto ilustrado com uma série de imagens, refere-se, de forma elucidativa, a este tema.
(FIM)
E não admito haja qualquer musa,
Feita mesmo de Whisky ou de bagaço,
Venha com sua voz de intrusa,
Cantar feitos de quem só foi palhaço.
É isto que em Guidage, agora, se usa,
Pois mais ninguém, aqui, já foi “bibaço.”
Fuzilarei as musas engenhosas,
Que apregoem feitos de outrem, mentirosas.
E vós, bebidas finas, desejadas,
Do meu verso fiéis inspiradoras;
Vós, bebidas santas, abençoadas,
Do patacão desta gente roubadoras,
Hoje, infelizmente, quase esgotadas,
E por quem choramos, belas senhoras.
As mãos possantes daqueles que vos bebem
Na guerra de medo nunca tremem.
E vós, ó bem firmada confiança, (2)
De Guidage perfeita liberdade,
Destruição do turra e sua esperança,
Etérea protecção desta cidade,
E do meu reino feliz segurança,
Grande maravilha desta idade,
Rogai a Deus que nos deixe cá ficar,
Até de todo o Whisky se esgotar.
E vós, ó capitão indesejado,
Das tropas lá de Binta comandante,
Muito temido, sim, mas não amado,
Que desejamos ver sempre distante
Do reino de Guidage tão sagrado.
Ficai por aí, alegre e radiante,
De tantas azelhices praticadas,
E deixai deste reino sossegadas
As tropas e as gentes generosas.
Se não vierdes cá nos chatear,
Com artimanhas tolas e maldosas,
Que sois tão hábil, sempre, a inventar,
As tropas de Guidage, volorosas,
Sempre de vós, senhor, se vão lembrar.
Ficai, senhor, em Binta sossegado,
P’ra serdes neste reino bem lembrado.
(2) Os Pernas D’aço, 3.º Pelotão da Companhia de Caçadores N.º 1546.
Guidage, em Agosto de 1966
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Notas de CV:
(*)
O Regresso dos Heróis é um livro do nosso camarada Domingos Gonçalves (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887,
Nova Lamego,
Fá Mandinga e
Binta, 1966/68), edição de autor.
Vd. postes da série de:
8 de Agosto de 2011 >
Guiné 63/74 - P8648: O Regresso dos Heróis (Domingos Gonçalves) (1): Muitos anos depois
10 de Agosto de 2011 >
Guiné 63/74 - P8657: O Regresso dos Heróis (Domingos Gonçalves) (2): Guiné, 1968
13 de Agosto de 2011 >
Guiné 63/74 - P8666: O Regresso dos Heróis (Domingos Gonçalves) (3): O último susto
16 de Agosto de 2011 >
Guiné 63/74 - P8679: O Regresso dos Heróis (Domingos Gonçalves) (4): O último azar
e
20 de Agosto de 2011 >
Guiné 63/74 - P8688: O Regresso dos Heróis (Domingos Gonçalves) (5): A viagem