1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Fevereiro de 2012:
Queridos amigos,
Aqui se põe termo às recensões ao trabalho de indiscutível importância que constitui a tese de doutoramento do nosso confrade Leopoldo Amado. Pressinto que com trabalhos como este, o do Julião Soares Sousa, o do António Tomás, os livros do António Duarte Silva, há já ingredientes suficientes para a constituição de equipas de historiadores luso-guineenses, independentemente dos olhares nacionais este teatro de operações foi o elemento transformador de dois países e não se pode abdicar de tal realidade. Venho pedir ao Leopoldo Amado que opine sobre as críticas de fundo que destaco nas recensões: o ser totalmente inadmissível que não se procure aprofundar os fundamentos da tese da unidade Guiné/Cabo Verde, porventura um argumento de peso para alavancar a organização da luta armada mas que não tem fundamento real, como a História comprovou; a tese sibilina da responsabilidade da PIDE no assassinato de Cabral sem documentação de provas, fugindo à análise de que o complô foi exclusivamente guineense e tinha como rastilho a indignação dos guineenses serem monitorados por cabo-verdianos.
Um abraço do
Mário
Guerra Colonial versus Guerra de Libertação Nacional:
O caso da Guiné-Bissau (5)
Beja Santos
Vamos hoje concluir um punhado de reflexões sobre a tese de doutoramento do nosso confrade Leopoldo Amado
“Guerra Colonial versus Guerra de Libertação Nacional – O caso da Guiné-Bissau” (IPAD, 2011), obra que classificamos, sem qualquer hesitação, como doravante indispensável na literatura de referência, como os livros de António Duarte Silva sobre a luta da independência na Guiné-Bissau, o trabalho de Julião Soares Sousa sobre Amílcar Cabral ou os depoimentos que o próprio Leopoldo Amado recolheu junto de dirigentes e combatentes do PAIGC e que fazem parte do livro atribuído a Aristides Pereira.
Entre a introdução de foguetões, ainda em 1970, e o aparecimento dos mísseis terra-ar Strella, em 1973, a sucessão de acontecimentos político-militares e diplomáticos tornou-se progressivamente desfavorável ao governo de Lisboa e às tropas portuguesas. Logo a operação
Mar Verde abriu as portas à marinha soviética que veio até Conacri, a pedido de Sekou Touré, a NATO não gostou e mais abertamente criticou a agressão portuguesa. De imediato, logo em Janeiro de 1971, o PAIGC reformulou o seu dispositivo, deu sinal de que ia aumentar a sua eficiência combativa, simulou mesmo uma perda de iniciativa, por exemplo do corredor de Bafatá-Xitole, mas o mesmo não sucedeu na área de Guilege-Gadamael, intensificou-se a pressão na região Sul. Os anos de 1971 e 1972 correspondem ao período de uma ofensiva diplomática por parte de Amílcar Cabral e que custou uma maior animosidade internacional contra o governo de Lisboa. Nas suas viagens a países comunistas e ocidentais, Cabral não joga só com o trunfo das áreas libertadas, exibe outras provas como os ataques aos centros urbanos, Bissau, Bolama, Gabu. Os contactos com Senghor têm como pano de fundo a insistência das Nações Unidas quanto à necessidade de Portugal abrir as negociações com os movimentos de libertação e ao facto de Spínola já não encontrar resposta para uma contenção militar duradoura. Os resultados do encontro foram transmitidos a Marcello Caetano que, como é sabido, mandou pôr termo a novas conversações. A “guerra de nervos” desenvolvida pelos serviços de informações, pela ação dos agentes duplos e pela intensa propaganda radiofónica agravava feridas e desorientava por vezes os contendores. Só dois exemplos: O boato segundo o qual Osvaldo Vieira teria assumido as funções de secretário-geral do PAIGC, desde 2 de Maio de 1972, porque os filhos da Guiné estavam descontentes porque Amílcar Cabral só os mandava para o mato enquanto os cabo-verdianos ocupavam funções de comandantes. O boato de que Momo Turé teria mostrado a Amílcar Cabral uma carta escrita por Nino Vieira a Rafael Barbosa, em que o primeiro lamentava o comportamento de Amílcar Cabral para com os guineenses, o que comprometeu o seu autor e que, por isso, no Conselho de Guerra, fora destituído. Papel fulcral corresponde à visita, em Abril de 1972, de uma delegação do Comité de Descolonização da ONU, precedida por uma ofensiva militar de grande envergadura do lado português. O Comité de Descolonização, depois da visita, reconheceu o PAIGC como o único e autêntico representante do povo do território e apelou aos organismos das Nações Unidas para atuarem de colaboração com a Organização da Unidade Africana, a fim de puderem apoiar a luta do PAIGC.
O assassínio de Amílcar Cabral tem largo destaque no documento. Leopoldo Amado procede a um levantamento das atividades da PIDE/DGS e dos agentes infiltrados, já foi dito que o relacionamento entre os dois contendores também se fazia por agentes duplos. De novo surge Momo Turé como instigador da conjura, o que é inconcebível, Momo não possuía requisitos políticos e intelectuais para uma empreitada destas. O autor refere a existência de tensões, dissidências e clivagens mas não explicita porquê e com que resultados, levanta mesmo a hipótese de haver círculos concêntricos de informadores e instigadores a soldo da polícia política portuguesa, o que pode ser muito interessante no campo especulativo mas é inaceitável na historiografia. Mais a mais, é o próprio Leopoldo Amado quem reproduz uma mensagem da PIDE de Bissau para Lisboa no dia seguinte ao assassinato, sugerindo que a responsabilidade da insurreição era da linha guineense contra os cabo-verdianos e os mestiços. De igual modo, como há um silêncio absoluto sobre as teses da unidade Guiné/Cabo Verde, em que assentou a mobilização de Cabral, sem qualquer fundamentação ou rigor histórico, e que Leopoldo Amado não comenta, e que mesmo que os atritos entre guineenses e cabo-verdianos possam até ter sido explorados pelos agentes da PIDE e pela própria propaganda, eles existiram, os guineenses e os cabo-verdianos recusam-se a falar do que sempre foi um profundo conflito étnico, o autor também silencia na apresentação da conspiração o que podia ser o elemento detonador para esse conflito étnico e que hoje salta à vista de todos: em 1973, o aparelho de Estado tinha ao mais alto nível a preponderância cabo-verdiana e é esse mesmo conflito que vai desembocar no 14 de Novembro de 1980. Branco é galinha o põe, a historiografia, na ausência de documentos escritos, tem forçosamente de recolher depoimentos de todas as partes. Em 20 de Janeiro de 1973 foram só guineenses que se insurgiram e prepararam a insurreição, não há lá um só cabo-verdiano. Para quê deitar poeira nos olhos ou atribuir à PIDE uma responsabilidade que não está comprovada.
Leopoldo Amado assesta a sua atenção sobre os mísseis Strella, o fim da superioridade aérea e as operações sobre Guilege, Guidage e Gadamael, narra os preparativos da ofensiva prevista para 1974, o abandono de Copá e o assédio a Canquelifá. Chegamos assim ao 25 de Abril, detalha as negociações entre o PAIGC e Portugal, um itinerário de negociações entre Londres e Argel, foi aqui que se estabeleceu o acordo com cessar-fogo e o reconhecimento por Portugal da república da Guiné-Bissau e a retirada das Forças Armadas Portuguesas até 31 de Outubro de 1974. O legado político de Cabral a um texto de grande recorte quanto às principais linhas de pensamento do líder do PAIGC, mas com uma grave omissão, em meu modesto ponto de vista, nunca se vê explicado e documentado onde se alicerça a teoria da unidade Guiné/Cabo Verde. É facto, e Julião Soares Sousa também alude no seu trabalho a esse fenómeno do início da década de 1960, o pan-africanismo e as doutrinas de unidade intraestatal fizeram o seu percurso, como se sabe com mais insucessos que com bons resultados. Nada abona, porém, que houvesse uma opinião pública e uma corrente política que abonasse a favor desta unidade, foi um lampejo que passou pela mente de um líder sobredotado que não mediu, nem ele nem a direção política, as consequências de uma tese dada como indiscutível. É evidente que Cabral não podia denunciar uma questão de fundo: não tinha dirigentes guineenses e na ausência de condições favoráveis para implantar guerrilha no arquipélago atraiu gente altamente capaz que o cercou em cargos de responsabilidade e operações de comando militar de grande melindre, onde se exigiam elevados conhecimentos técnicos e tecnológicos. Era Cabral marxista? Há quem conteste, mas o seu método de análise bebia nessas águas, era convictamente socialista, adepto do partido-Estado e era suposto que a Guiné-Bissau, com a constituição do Boé, tivesse um regime socialista autoritário. Como, mesmo com todos os desvios e delírios da era Luís Cabral, teve. Reconheça-se que Cabral, como regista Leopoldo Amado, foi uma das figuras mais marcantes do século XX, não há investigador que hesite em considerá-lo como o verdadeiro teórico dos movimentos de libertação da África portuguesa.
As investigações de Leopoldo Amado, insiste-se, passam a ocupar um lugar do maior relevo na historiografia luso-guineense. Direi mesmo que existem agora condições para um trabalho conjunto dos historiadores dos dois países. Porque houve dois contendores e os olhares da historiografia precisam de distância e aproximação, de medir o verso e o reverso. E no caso da Guiné-Bissau dá-se o aspeto transcendente de ter sido ali que catapultou o movimento que originou o 25 de Abril. Não é por acaso que os dois povos têm toda a potencialidade para manter um olhar fraterno e dirigido ao futuro.
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Nota de CV:
Vd. postes das recensões anteriores de:
27 de Fevereiro de 2012 >
Guiné 63/74 - P9540: Notas de leitura (337): Guerra Colonial & Guerra de Libertação Nacional 1950-1974: O Caso da Guiné-Bissau, de Leopoldo Amado (1) (Mário Beja Santos)
2 de Março de 2012 >
Guiné 63/74 - P9553: Notas de leitura (338): Guerra Colonial & Guerra de Libertação Nacional 1950-1974: O Caso da Guiné-Bissau, de Leopoldo Amado (2) (Mário Beja Santos)
5 de Março de 2012 >
Guiné 63/74 - P9560: Notas de leitura (339): Guerra Colonial & Guerra de Libertação Nacional 1950-1974: O Caso da Guiné-Bissau, de Leopoldo Amado (3) (Mário Beja Santos)
e
9 de Março de 2012 >
Guiné 63/74 - P9591: Notas de leitura (340): Guerra Colonial & Guerra de Libertação Nacional 1950-1974: O Caso da Guiné-Bissau, de Leopoldo Amado (4) (Mário Beja Santos)