sábado, 25 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16237: Convívios (756): XIV Encontro do pessoal da CART 2520, levado a efeito no passado dia 14 de Maio de 2016, em Fátima (José Nascimento)

 FÁTIMA 14 DE MAIO DE 2016 - XIV CONVÍVIO DO PESSOAL DA CART 2520


1. Mensagem do nosso camarada José Nascimento (ex-Fur Mil Art da CART 2520, Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) com data de 15 de Junho de 2016:

Caro Camarada Carlos Vinhal,
A Cart 2520 que esteve no Xime e Quinhamel, realizou o seu 14.º Convívio no dia 14 de Maio.

O ponto da concentração foi em Fátima e teve início pelas 10 horas.
Seguiu-se o almoço de confraternização que teve lugar no restaurante "Quinta do Casalinho Farto", nas proximidades de Fátima.
Este convívio que juntou um grupo razoável de ex-combatentes e familiares, foi organizado pelos nossos camaradas António Durão e Sousa Lopes com a colaboração do José Cordeiro.
Pela primeira vez compareceu o nosso camarada Mário Andrade, Condutor, que também prestou serviço na messe e alojamento dos nossos oficiais. Este nosso camarada relembrou que era nas caravanas que serviram de aposentos ao Amílcar Cabral quanto este percorreu a Guiné pelos Serviços Florestais, antes do início da guerra, que os oficiais de Cart 2520 dormiam.
Como habitualmente contaram-se muitas histórias, reviveram-se outras tantas emoções.
Foi um dia muito bem passado e que ficará nas nossas memórias, nomeadamente pela foto de grupo que entretanto foi tirada.

E aqui vai um grande abraço para o camarada Carlos Vinhal e para todo o pessoal da Tabanca Grande.
José Nascimento
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de junho de 2016 Guiné 63/74 - P16215: Convívios (755): AVECO- Associação dos Veteranos Combatentes do Oeste , nas festas do concelho da Lourinhã (23 a 26 de junho de 2016)... Mas também a banda de música Melech Mechaya (a 25, sábado, 23h30)

Guiné 63/74 - P16236: (In)citações (93): O que será a paz? (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux. Enf.º da CCAÇ 2381)

1. Em mensagem do dia 13 de Junho de 2016 o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux. Enf.º da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), enviou-nos esta interrogação. Pensemos.


O que será a paz?

por Zé Teixeira

Olá! Eu sou a Joana e tenho cinco anos. 
 Os meus pais chamam-me Joaninha voa voa.

Eu não sei voar como as joaninhas 
de capa vermelha às pintinhas!
Quando for grande, quero aprender a voar.

A minha mãe disse-me para eu vos falar de paz. 
Eu perguntei-lhe o que quer dizer paz. 
A minha mãe disse-me que paz é 
quando uma pessoa se zanga com outra 
e depois ficam outra vez bem… 
E eu não percebi nada…

Quando a minha avó nos vem visitar, traz-me um chocolate. 
Depois, vai-se embora e a minha mãe diz-lhe: “vai em paz”. 
Mas elas não estavam zangadas! 
A avó até traz sempre um bolo para o lanche! 

Quando os meus pais se zangam, 
o meu pai grita para a minha mãe “deixa-me em paz” 
e fecha-se no gabinete. 
Bate a porta com tanta força que até me assusta e eu choro… 
E a minha mãe chora comigo. 
Não brincam comigo… 
Nem falam um para o outro!

O meu pai, quando está a ler a Bola, 
não quer brincar comigo. Grita-me: 
“Joana, deixa-me em paz!” 
Nem me chama joaninha…

Na escolinha, 
a minha professora é amiga de todos os meninos e meninas. 
Brinca com todos nós. 
Conta historinhas…
Ensina-nos coisas bonitas!... 
Eu gosto muito dela. 
Às vezes, depois do almoço, vai ler uma revista. 
Eu vou ter com ela. 
A minha professora senta-me no seu colinho e deixa-me ver as figurinhas. 
Ela é mesmo fixe!

Quando dois meninos pegam à bulha, 
a minha professora vai separá-los.
Primeiro, fica zangada e ralha, ralha mesmo, 
mas ela não é má. 
Depois limpa-lhes as lágrimas. 
Sacode-lhes a roupa… 
E diz-lhes: “agora dêm o abraço da paz”! 
Os meninos dão um abraço e vão brincar. 
E fica tudo bem…
Não percebo mesmo nada…
O que será a paz?

José Teixeira
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de junho de 2016 Guiné 63/74 - P16190: (In)citações (92): Uma troca trágica (Francisco Baptista, ex-Alf Mil)

Guiné 63/74 - P16235: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (1): O Parto - ou o nascimento do Adão Doutor em Bigene

1. A Joana, filha do nosso camarada Francisco Baptista, é amiga de Marcos Cruz, filho do ex-Alf Mil Médico Adão Cruz que passou pela CCAÇ 1547/BCAÇ 1887.

Como o Mundo é (muito) pequeno comparado com o nosso Blogue, criou-se aqui uma cadeia que começa nas memórias do Dr. Adão Cruz, que passam para o seu filho Marcos, que as envia à Joana, que as envia ao pai Francisco, que por sua vez as faz chegar ao Blogue.

Esperemos que esta seja a primeira de muitas e belíssimas histórias que só o pessoal de Saúde pode contar, a exemplo de tantas outras que felizmente recheiam o nosso espólio.


MEMÓRIAS DE UM MÉDICO EM CAMPANHA

1 - O Parto

Quando cheguei à Guiné, uma das primeiras preocupa­ções que tive foi começar a conhecer as pessoas e os costumes. Para além de ser uma tarefa aliciante, era a melhor forma de me libertar do medo da guerra e da perspectiva pouco animadora de um regresso encaixotado.

Conhecer um povo, ainda que pequeno, originário de quarenta grupos étnicos, fragmentado e encurralado física e psicologicamente em zonas estanques por impo­sição de uma violenta guerra de guerrilha, não era fácil e a desvirtuação constituía um perigo possível.

Tentei iniciar a penetração neste novo mundo através da abertura que a minha missão de médico facultava e facilitava.
Com o tempo as janelas foram-se abrindo e hoje revejo com alguma saudade o imenso painel de mil cores, esse mar de sensações e vivências que nenhuma memória pode esquecer.

As mulheres de Bigene, e não só de Bigene, pariam no mesmo local onde defecavam, uma pequena cerca de esteiras nas traseiras da tabanca, longe da vista das pessoas e sobretudo dos homens, como se o acto de parir fosse indigno e imprudente, obrigando ao mais submisso recato.

Como se não bastasse, uns dias antes da data prevista para o parto atulhavam a vagina com bosta de vaca, a qual sofria pútridas fermentações que exalavam o cheiro mais nauseabundo que imaginar se pode.

Os tétanos, quer da mãe quer do recém-nascido, eram extremamente graves e frequentes, soube eu mais tarde. 

Neste primeiro contacto fiquei boquiaberto e decidi actuar. Não seria difícil imaginar a resistência destas pessoas a qualquer tipo de reforma dos costumes, se não fosse tido em conta um facto importante.

Ao contrário do que se diz e do que se pensa, os negros, sejam eles homens ou mulheres, são muito espertos, nada ficando a dever aos brancos e superando-os em muitas coisas dentro da mesma escala de cultura.Estou disposto a comprová-lo através de exemplos sérios nascidos da minha experiência.

Só assim foi possível a rápida aceitação e compreensão dos esclarecimentos que fiz na tabanca acerca de infec­ções e higiene, acerca do papel da mãe, da dignidade do parto e das vantagens de este ser efectuado na nossa enfermaria, ainda que pequena e modesta.

Não demorou muito tempo a aparecer a primeira parturiente.

Era uma linda mulher grávida de termo que não falava nada que se percebesse. Não sou capaz de precisar nesta altura a etnia, mas lembro-me que nem os outros negros entendiam o seu dialecto.
Mas o seu sorriso, apesar das dores, era tão aberto e confiante que não precisávamos de melhor forma de comunicação e entendimento.

Até os olhos do meu enfermeiro Pimentinha brilharam de entusiasmo, entusiasmo que o levou a ler de ponta a ponta a minha sebenta de obstetrícia e a transformar-se em pouco tempo num habilidoso parteiro e carinhoso puericultor.

Nas minhas mãos um pouco trémulas eu segurava o fruto do primeiro parto que assisti na Guiné.
Era um belo rapazinho que, apesar da pobreza alimentar daquela gente, nasceu bem nutrido e de uma cor rosa-marfim.

Os negros nascem brancos, como se sabe. Uma deliciosa ironia anti-racista da natureza.

Embora as nossas dificuldades logísticas e económicas fossem grandes, lá consegui oferecer-lhe o alimento, sob a forma de leite condensado, indispensável aos primeiros meses de aleitamento, pois a mãe parecia ter esgotado todas as reservas das suas entranhas ao gerá-lo de ma­neira tão eutrófica e tão perfeita.

Umas semanas após o nascimento vem ter comigo o Chefe de Posto e diz-me sorridente:
- "Doutor, vou dar-lhe uma linda notícia que a mim, pes­soalmente, me enterneceu. A mãe daquele catraio... aquele primeiro parto que o doutor fez, lembra-se?... A mãe veio registá-lo há dias, oficialmente, com o nome de Adão Doutor".

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Comentário do editor:

Utilizando a mesma cadeia que faz chegar a nós as memórias do Dr. Adão Cruz, convidámo-lo a fazer parte da nossa tertúlia, esta família de ex-combatentes da Guiné, onde o pessoal da Saúde tem um lugar especial.

Nem só de operações militares se fez guerra, as operações cirúrgicas foram bem mais importantes pois não distinguiam amigos ou inimigos.

Caro Dr. Adão, ficamos à sua espera, tem a porta sempre aberta.

CV
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Notas do editor

(*) - Vd. poste de 25 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16134: (In)citações (91): "Um gajo não sabe o que foi a guerra colonial", diz Marcos Cruz, filho do Dr. Adão Cruz, um dos médicos do BCAÇ 1887 (Francisco Baptista, ex-Alf Mil)

sexta-feira, 24 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16234: Notas de leitura (852): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos: o caso do cirurgião Domingo Diaz Delgado, 1966-68, segundo o livro de H. L. Blanch (2005) - Parte II: a vida dura nas base de Sara, na região do Oio (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494, Xime-Mansambo, 1972/1974)


Guiné > PAIGC > 1971 >  Frentes, bases e "corredores", segundo o Supintrep, nº 31, de junho de 1971, disponibilizado pelo nosso camarada A. Marques Lopes, cor inf DFA ref . O PAIGC tinha o território dividido nas seguintes frentes: 

(i) Frente São Domingos / Sambuiá; 

(ii) Frente Bafatá-Gabu (Norte); 

(iii) Frente Canchungo-Biambe; 

(iv) Frente Morés-Nhacra;

 (v) Frente Quínara; 

(vi) Frente Xitole-Bafatá; 

(vii) Frente Bafatá-Gabu (Sul); 

(viii) Frente Catió; (ix) Frente Buba-Quitafine... 

Neste mapa também se indicam as principais regiões... Fonte: Supintrep, nº 31, 13 de Fevereiro de 1971.

Imagem: © A. Marques Lopes (2008). Todos os direitos reservados (*)


Hedelberto López Blanch - Histórias secretas de médicos cubanos.  La Habana: Centro Cultural Pablo de la Torriente Brau, 2005. 248 pp. 

[Prémio Memoria 2001. Prólogo de Piero Gleijeses. Ediciones La Memoria, Colección Coloquios y testimonios].  [La edición de este volumen ha sido financiada por el Fondo para el Desarrollo de la Educación y la Cultura.] [Consult em 31 de maio de 2016]. Djisponível aqui, em formato pdf, no sítio do Centro Cultural Pablo de la Torriente Brau, Havana, Cuba.

O autor é jornalista e escritor, nascido em Havana, em 1947. É ainda autor de outros trabalhos de investigação como  "La emigracion cubana en Estados Unidos: Descorriendo mamparas" (edição espanhol, 1998), disponível na Amazon,com



1. Segunda parte das "notas de leitura" coligidas pelo nosso camarada e grã-tabanqueiro, Jorge Alves Araújo, e enviadas a 22 do corrente. Trata-se de um extenso documento, que vai ter que ser publicado em diversas partes, tendo em conta o formato e as limitações do blogue

Sobre o grã-tabanqueiro Jorge Araújo, aqui fica uma pequena nota biográfica, para "refrescarmos" o seu CV mal conhecido da maior parte dos nossos leitores

(i) nasceu em 1950, em Lisboa; (ii) foi fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/1974); (iii) fez o doutoramento pela Universidade de León (Espanha), em 2009, em Ciências da Actividade Física e do Desporto, com a tese: «A prática Desportiva em Idade Escolar em Portugal – análise das influências nos itinerários entre a Escola e a Comunidade em Jovens até aos 11 anos»; (iv) é professor universitário, no ISMAT (Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes), Portimão, Grupo Lusófona; (v) para além de lecionar diversas Unidades Curriculares, coordena o ramo de Educação Física e Desporto, da Licenciatura em Educação Física e Desporto.

Na sequência do 1.º fragmento publicado no P16224 (**), eis a continuação do relato de algumas das memórias [experiências] vividas na primeira pessoa por três médios cubanos na então  Guiné portuguesa (hoje, Guiné-Bissau), onde se identificam as motivações que os levaram a optar por um dos lados do combate, daí o título que dei a este meu trabalho.

Recordo que o conteúdo de cada texto resulta da tradução original em castelhano (espanhol) das entrevistas publicadas no livro escrito pelo jornalista e investigador cubano Hedelberto López Blanch, com o título «Historias Secretas de Médicos Cubanos», que achei interessante partilhar convosco, relembrando que na linha do tempo essas memórias estão a uma distância de meio século. É isso também que nós continuamos a fazer.

A sua tradução procurou ser o mais fiel possível das ideias expressas pelos diferentes protagonistas, que ficou mais facilitada pela condição de veterano dessa guerra no CTIGuiné.

Porque se trata de uma tradução,  não fazei juízos de valor sobre os diferentes depoimentos, apenas colocando entre parênteses rectos algumas notas avulsas de enquadramento histórico ao que foi transmitido incluindo imagens desse contexto retiradas da Net. (ou dos arquivos do nosso blogue).

No caso da Guiné, são três os entrevistados, por esta ordem: (i) o médico-cirurgião Domingo Diaz Delgado; (ii) o médico de clínica-geral, com experiência em cirurgia, Amado Alfonso Delgado;  e (iii) o médico militar, especialista em cirurgia geral, Virgílio Camacho Duverger. 

Esta será a segunda parte da entrevista ao primeiro médico, o cirurgião Domingo Diaz, sendo que as ocorrências relatadas datam do ano de 1966, ou seja, três anos após o início do conflito. (JA)


2. O CASO DO CIRURGIÃO DOMINGO DIAZ DELGADO - Parte II 

Sumariando as questões colocadas no 1.º fragmento publicado no poste acima indicado, é de relevar que foi com vinte e nove anos de idade e recém-graduado como cirurgião [em finais de 1965], que Domingo Diz Delgado, depois de ter preenchido um formulário solicitando a sua incorporação como internacionalista em qualquer movimento de libertação, recebeu a notificação de que iria para a Guiné-Bissau (, na altura território sob administração portuguesa),  para se integrar na fileiras do PAIGC, como médico.

Após ter concluído o treino físico e militar no acampamento Peti 1, em Pinar del Rio, Domingo Diaz embarca pela calada da noite em 21 de maio de 1966, na companhia de mais dois médicos e outros seis cubanos, com destino à República da Guiné, chegando dezasseis dias depois a Conacri [6 de junho de 1966]. 

Aí chegado, foi recebido por Amílcar Cabral (1924-1973), com quem manteve contactos permanentes durante o tempo em que lá permaneceu: cerca de um mês. Por ter sido nomeado para a Zona Norte, seguiu por via aérea para Dacar a fim de rumar a Zinguinchor, com a viagem de carro a ser feita na companhia de Luís Cabral (1931-2009).

Transposta a fronteira entre as duas Guinés, o primeiro percurso tinha como destino a base de Sambuia [, Zambulla, na versão original...], tendo sido realizado em cinco horas, e com a caminhada a ter deixado os seus pés muito mal tratados, face à inexperiência daquele contexto. 

No dia seguinte nova etapa até à base de Maqué [no Olossato,  Morés, ?], que incluía a travessia do rio Farim em canoas. 

Ao terceiro dia, com os pés cada vez em pior estado, nova caminhada até a base de Morés, alimentando-se do que encontrava pelo caminho, incluindo água. Depois de um dia de descanso nesta terceira base, seguiu-se a última etapa até à base de Sará, aonde chegou no início do segundo semestre de 1966, 

Domingo Diaz aí permaneceu durante seis meses [de julho a dezembro de 1966], na companhia de outros dois médicos cubanos do seu grupo, que entretanto haviam chegado mais cedo, por terem viajado de avião: o ortopedista Teudi Ojeda e o clínico geral Pedro Labarrere. Os três foram os únicos que naquele tempo estiveram na Zona Norte.

Procurando descrever o itinerário realizado pelo médico Domingo Diaz [linha azul no mapa acima], comparando-o com o que foi divulgado cinco anos depois na Suprintrep n.º 31, de 13 de fevereiro de 1971 [P2787 (A. Marques Lopes)], um documento classificado na época como reservado e elaborado pelo gabinete do Comandante-Chefe, verifica-se não existirem diferenças significativas, apenas não constando a referência à base de Maqué, pela discrição situada entre Sambuiá e Morés [P3258] (*).

Para uma melhor identificação geográfica dos itinerários, também designados por “corredores” ligando as diferentes bases do PAIGC, aproveitámos o já publicado pelo camarada A. Marques Lopes neste blogue [P3258] (*), com a devida vénia, reproduzindo o que a este propósito consta no documento oficial  [Vd,, gráfico acima].

Continuação da entrevista com Diaz Delgado (no documento em pdf, a que tivemos acesso, as páginas não estão numeradas. mas o total da entrevista corresponde, no pdf, ao cap X (pp. 65/78).  O Diaz Delgado regressou a Cuba em janeiro de 1968. As notas em parênteses retos são da nossa responsabilidade. 



(vi)  Como entrou na Guiné-Bissau 
e que zona lhe destinaram? 

Nessa época, a Guiné [, hoje Guiné-Bissau] tinha três zonas guerrilheiras, que eram o Norte, o Sul e o Leste (a esta também a chamavam de Madina do Boé, por estar ali um quartel português com esse nome e que era o mais importante da região). Eram zonas guerrilheiras aonde se combatia bastante para as possibilidades que tinham.

Do nosso grupo, muitos foram para o sul, outros para o Leste e a mim me designaram para ir como cirurgião para o Norte. O que aconteceu foi que da Guiné-Conacri não se podia ir directamente para o norte da Guiné -Bissau, mas que havia de dar uma volta pelo leste da Guiné-Conacri, em camiões, e atravessar parte do território senegalês, país que faz fronteira a norte com a Guiné-Bissau e que não era muito amigo dos guerrilheiros e não permitia a entrada de cubanos no seu território.

Portanto, face à cor branca da minha pele não podia fazer a viagem por terra. Então fizeram-me um passaporte que não era, de facto, mas que funcionava como tal. Era um cartão de militante do PAIGC, com nome falso, aonde constava ser natural da Praia, uma ilha de Cabo Verde, e com esse documento fiz um voo, acompanhado de dois guerrilheiros guineenses, até à capital do Senegal, Dacar.

Quando chegámos ao aeroporto tive um problema, pois os fiscais não entendiam aquilo do cartão como passaporte, e os dois companheiros que me acompanharam não o sabiam explicar. De maneira que tive de dar um empurrão ao torniquete que existia no aeroporto e sair até ao carro donde me estava acenando a companheira Lilica Cabral [ou Boal ?], secretária de Amílcar Cabral, e que tinha escritório em Dacar.

Apesar de que o Senegal não apoiava esse movimento, permitia-lhe ter escritórios. Mas também já estavam a par de que havia cubanos nessa guerrilha e tratavam de os detectar. Lilica levou-me a sua casa, aonde permaneci três ou quatro dias até que me dão a conhecer um desertor do exército português, de nome José Augusto e me apresentam como admirador do Movimento e que queria participar na guerrilha contra o seu governo.

[Este alegado desertor do exército português seria o 1º cabo nº 3426/64, José Augusto Teixeira Mourão: vd. Arquivo Amílcar Cabral, pasta 04606.045.134; assunto: Solicita autorização junto das autoridades de Conakry para enviar dois desertores do exército português para Argel. Vd. aqui documento original. em francês].

A este ex-militar deram-lhe  numerosos detalhes e dizem-lhe que sou cubano. Desde aquele momento não fiquei tranquilo e pedi que me mudassem de casa, pois não confiava naquele homem. Mudam-me para outra moradia, onde fiquei mais um dia.

Dali, por terra, percorremos quatrocentos quilómetros, que é a distância aproximada entre Dacar e Ziguinchor, uma povoação do Senegal perto da fronteira com a Guiné. Nesse trajecto tivemos que atravessar um rio e uma faixa de dez quilómetros de largura de outro país denominado Gâmbia.

Quem me levou até Ziguinchor foi Luís Cabral, o irmão de Amílcar Cabral, num Peugeot 400. Cheguei a esse lugar, onde permaneci dois ou três dias. Encontrei-me com os chefes militares mais importantes que actuavam no norte da Guiné,, porque, como era o primeiro cubano que ali chegava, estavam à minha espera.

Reuni-me com o chefe da Frente Norte, Osvaldo Vieira [1938-1974], e outros. Despediram-se de mim e saí com um grupo de combatentes guineenses. Ao chegar à fronteira, parte do colectivo ficou comigo e outra parte permaneceu na povoação de Yiriban, do lado do Senegal.


(vii) Como contava o tempo 
nos trajectos?


Chegámos pela noite à base de Maqué. Nesta região o tempo não se conta pelo relógio, mas pela distância, ou seja, um dia a andar, meio-dia a andar, dois dias a andar, são dois dias para chegar a um lugar. Quando cheguei à segunda base guerrilheira, levava dois dias a andar e estava bastante mal. Deram-me um líquido constituído por uma espécie de leite condensado com água, mas muito quente, e recordo-me perfeitamente que o tomei e caí redondo, não sem antes me ter assustado um pouco, pois quando me dei conta, senti um ruído, um som muito grande que se estava a aproximar, e que era um aguaceiro que parecia um ciclone. Depois acostumei-me, porque não são os aguaceiros a que estamos habituados em Cuba, é outro tipo de som e de força.

No dia seguinte, antes de amanhecer, reiniciámos a caminhada, avançando pelo país até alcançar a base de Morés. Ali, algum tempo antes, a aviação inimiga tinha bombardeado e metralhado esse lugar, e era possível ver os sinais dos destroços. 

A guerrilha tinha cometido o erro de disparar com as suas antiaéreas contra  dois aviões B-26 [ou T-6?  Não creio que tenha havido B-26 a operar na Guiné, em Angola, sim, a partir de 1972...] que sobrevoavam a zona e dessa forma detectaram a sua posição. Dois ou três dias depois veio a aviação e destruiu a base. Nesse lugar estivemos um dia, seguindo, depois, uma nova caminhada até chegar à base onde permaneci cerca de seis meses: Sará.


Guiné > Mapa geral da província > 1961 > Escala 1/500 mil > Posição relativa de Sará e outras bases do PAIGC na região do Oio (a azul) e algumas das principais localidades, em redor (a vermelho) onde em 1966/68 havia tropas nossas....

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2016)


(viii) Em que sítio se encontrava 
essa base?

A base de Sará estava praticamente no centro do território e perto da capital, Bissau, onde pela noite se ouvia a música que chegava de lá. Bissau, a capital, não a conheci, mas segundo me contaram, apesar da pobreza do país, era uma cidade muito bonita, com muitas praias, bares e música. [De Sará, a sul do Oio, até a Bissau, em linha reta devem ser 65 /70 km!... Bafatá, a leste, ficava mais próximo, a c. 40 km].

Aqui já estavam dois companheiros médicos do meu grupo, dos três que saíram de Cuba em avião, o ortopedista Teudi Ojeda e o médico Pedro Labarrere, e os três fomos os únicos que naquele tempo estivemos na Zona Norte.

Chegado a essa base, estava-se a preparar um ataque a Bissau, não para tomar a cidade, nem pouco mais ou menos, mas para manter sempre as autoridades em tensão. Essa acção foi dirigida pelo chefe da segurança do território norte, o cabo-verdiano Irénio do Nascimento. Também participou neste ataque um dos fundadores da guerrilha, e que tinha participado no primeiro ataque que se realizou no início [Tite], e que se chamava Malán Sanhá.

De Sará, estávamos a quatro dias de distância da fronteira [, com o Sengeal, a norte] e não era fácil transportar coisas para lá. Tínhamos um pequeno arsenal de medicamentos, instrumentos cirúrgicos, mas muito rudimentar, para resolver problemas que se apresentassem naquele tipo de conflito. A possibilidade de enviar feridos até à fronteira era muito escassa, pela distância e a maneira de os transportar, e a forma como se movimentava o inimigo.

O acampamento mudava de lugar em certas ocasiões, pois apesar de que nesse tempo era uma base guerrilheira, não se podia permanecer fixo e havia que mudá-lo constantemente para maior segurança. Chegou o momento em que detectaram a base, e a aviação a atacou e a metralhou em várias ocasiões.

De qualquer maneira, nós permanecemos cerca de seis meses nessa base e depois de vários bombardeamentos vimo-nos na obrigação de mudar o hospital para outro lugar que ficava a hora e meia dessa base.


(ix) Tinham enfermeiros 
cubanos?

Éramos só os três médicos e não havia nenhum enfermeiro cubano. Ao ir conhecendo o meio e as situações que se apresentavam, pedimos que nos enviassem esses técnicos de saúde, pois nos eram indispensáveis pelas condições de trabalho.

Entretanto, desde o princípio começámos a formar enfermeiros guineenses. Cederam-nos um grupo de rapazes e raparigas para os treinar. Organizámos um curso durante dois meses e esse pessoal foi distribuído por diversas zonas. Uma parte deles ficou connosco.

(x) Como foram as relações 
com os enfermeiros?

Naquelas condições de vida, não fazes muitas relações, mantendo estreita afinidade só com os companheiros que conheces. Desses enfermeiros guardamos uma recordação indelével. No meu caso particular, ao regressar a Cuba, pude trazer quatro deles com a autorização de Amílcar Cabral, e se graduaram em enfermagem no Hospital Militar Central Dr. Carlos J. Finlay [fundado em 1943, com o objectivo de prestar apoio médico a militares do exército constitucional de Cuba].



(xi) Atendia também 
a população?

Médico cubano [, Diaz Delgado ?] prestando cuidados de saúde
em zona controlada pelo PAIGC. S/l, s/d. [c. 1966/68].
Foto do Arquivo Amílcar Cabral / Casa Comum / Fundação
 Mário Soares.  Com a devida vénia... Ver aqui o original.
Com poucas semanas de estar em Sará, a população vinha-nos visitar assiduamente, não para resolver problemas das feridas de guerra, mas de outras doenças.

Nessa zona são muito frequentes as hérnias abdominais, umbilicais, inguinais, e como forma de ir ganhando a confiança da população, realizei várias intervenções cirúrgicas deste tipo, que são relativamente fáceis.

Tive a sorte de todos os casos evoluírem muito bem, sem infecção, e se algum se complicava, com um pouco de antibiótico o resolvia. Os naturais eram muito sensíveis pois estavam virgens, nunca tinham tomado antibióticos e qualquer medicamento que eu lhes dava os assimilavam perfeitamente.

Para mim o principal trabalho em Sará, durante esses meses, foi a extração de dentes, cinco ou seis por dia, pois ninguém o fazia na região. Tenho um caderno onde registei a quantidade de pessoas que tratei, incluindo o português desertor que me apresentaram em Dacar, que depois se confirmou tratar-se de um agente da Inteligência portuguesa. Esse homem permaneceu preso no Norte da Guiné, convivendo connosco nesse acampamento.

Naquela base vinham-nos visitar constantemente elementos da população que depois, noutras ocasiões, faziam circular a informação da nossa presença, que chegava aos ouvidos dos portugueses. Para nossa segurança e a dos enfermeiros, mudámos o hospital para um lugar secreto com uma pequena porta e sem acesso à população. Éramos nós que nos deslocávamos à base para observar os pacientes, e dessa forma não sabiam onde estávamos instalados. Nos primeiros meses foi quando mais atendi os civis, pois estava fixo no acampamento.


Guiné > Região do Cacheu > São Domingos > CART 1744 (1967/69) > Tabanca ao fundo e instalações do quartel em primeiro plano e no lado direito.

Foto (e legenda): © José Salvado (2016). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


(xii) Depois do Sará 
aonde foi colocado?

Como era cirurgião, foi determinado que para prestar melhor atenção aos combatentes, não permaneceria naquele lugar, e que passava a andar integrado num chamado bigrupo, constituído por setenta e dois elementos, com determinado armamento, os quais realizavam ataques de surpresa em vários sítios.

O chefe desse bigrupo era um comandante guineense de nome Julián [?]. Para chegar até eles tive que cruzar a fronteira, entrar no Senegal até à povoação de Ziguinchor e regressar de novo à Guiné, pela zona de São Domingos, onde existiam uma base guerrilheira e um quartel português com os mesmos nomes.[Em Ziguinchor «, o PAIGC tinha um hospital no qual trabalhou o dr.  Manuel Boal,  português,  natural de Angola, que saiu em 1961 para se juntar aos movimentos nacionalistas, casado com  Lilica Boal (Maria da Luz Boal), nascida em Tarrafal, Santiago, Cabo Verde].

Desta forma, comecei a acompanhar com eles e tive a oportunidade, sem combater, de estar presente em vários ataques. O primeiro foi contra o quartel de São Domingos. O posto médico foi instalado perto daquele lugar. O chefe militar dizia-me, sempre, para não me aproximar muito, pois ficávamos sem enfermeiros e sem mim, e acabava-se o serviço médico.

Esta acção foi importante por três motivos: o ataque foi muito forte resultando em vitória; ficou demonstrado que a guerrilha estava em condições de destruir bases dos portugueses. O objectivo era criar desorientação, acabar com a sua segurança que, até ao momento, estavam habituados a serem os atacantes, e não receber contra-ataque. 

Os ataques às bases começaram com a chegada dos instrutores cubanos à Guiné, que para além de participarem como artilheiros nos combates, treinaram os guerrilheiros no manejo das armas pesadas. Os guerrilheiros realizavam as acções, destruíam o quartel ou uma parte, e retiravam-se. Nunca tentaram conquistá-lo, pois era uma guerra de guerrilha.

Terminada esta operação, depois de ter estado cerca de vinte dias com o bigrupo, os chefes guerrilheiros decidiram para minha maior segurança que deveria cruzar outra vez a fronteira para uma zona pré-determinada e geograficamente mais acessível, até à população senegalesa de Ziguinchor. Isto o tive que fazer várias vezes para chegar à zona de São Domingos, onde se encontrava a base operacional do bigrupo e donde se saía para realizar as acções de combate. Os guerrilheiros guineenses regressavam por diferentes itinerários a esse lugar.


(xiii) Saiu sozinho?

Comigo saíram alguns instrutores cubanos, entre eles Alfonso Pérez Morales (Pina), que era o chefe dos cubanos na Frente Norte. Durante o regresso a São Domingos, realiza-se um ataque ao quartel de Guidaje [, no original, Guilelle, só pode ser gralha: não podia ser  Guileje, que fica no sul, região de Tombali], que foi mais violento que o anterior. Do nosso lado tivemos três feridos. A um deles prestei os primeiros socorros, seguindo com os outros dois. Nessa altura já tinha estado em quase todas as bases guerrilheiras do Norte: Liador, Naga, Maqué, Sará, Morés, Sambuia, realizando todos esses percursos a pé.

Com os feridos não foi possível chegar à base, pois parámos numa zona segura, porque os portugueses tinham quarteis nas áreas onde podíamos fazer a retirada. Quando começavam os ataques, os portugueses metiam-se nos abrigos e quando estes acabavam, sabiam que era a nossa retirada, começando a bater as diferentes zonas por onde poderíamos retirar.

Não era, por isso, muito seguro permanecer na zona, havia que retirar o mais rápido possível. Quando descansámos o suficiente, já tranquilos e sem correr tanto perigo, podemos tratar dos feridos. Um dos homens apresentava uma lesão no músculo, a qual resolvi, a outra situação era mais difícil porque ele tinha sido ferido no pescoço, onde o estilhaço tinha perfurado a traqueia, levantando-se a dúvida de que poderia ter entrado no brônquio e danificado alguma artéria posterior. Fiz-lhe uma traqueotomia no mesmo buraco, onde coloquei um penso, antibióticos e procurei evacuá-lo tão rápido quanto possível, uma vez que estávamos perto da fronteira. Este esforço não deu resultado, pois o ferido veio a morrer com uma hemorragia aguda. Parece que teve uma lesão de um vaso pulmonar e ali não tínhamos possibilidades de fazer placas nem algo que pudesse determinar as consequências da ferida.


(xiv) O que comiam?

Eu tinha que comer o mesmo que eles. A comida era uma vez por dia, pela noite. Numa terrina colocávamos um pouco de arroz com alguns pedaços de carne, ou ossos, e que em algumas situações se passavam entre nós para os chuparmos e, por conseguinte, tudo era feito com as mãos, pois não havia talheres. 

De manhã apanhávamos algum tipo de folhas, e se era de laranja, melhor. Aquecíamos água e mergulhávamos as folhinhas, e isso foi o que tomávamos durante muito tempo. No Norte não havia feijões nem nada, já no Leste tínhamos feijões, mas eram tantos que chegou o momento em que um companheiro só de olhar para um feijão logo vomitava.

Também dependíamos do que se caçava. Tínhamos espingardas de cartuxo. Desenvolvi uma boa pontaria, tanto com a de cartuxo como com a de calibre 22. Às vezes davam-me cartuxos para ir caçar. O que mais matava eram chocas, uma espécie de codorniz ou perdiz, iguais às de Cuba, que tinham uns bons peitos. 

Nestas andanças saía com o chefe guerrilheiro da base de Sará,  Joaquim Furtado, que foi guia de caçadores antes de ser incorporado na luta, e ensinou-me bastante sobre as tácticas que utilizam para caçar gazelas, cabras do mato e outros animais. Furtado, mais tarte, foi ferido na coluna e ficou paraplégico.


(xv) Notícias de Cuba?

A primeira notícia que recebi relacionada com Cuba foi depois de oito meses de estar na guerrilha, no Norte. Foi uma mensagem do chefe da missão, escrita em papel de guardanapo, na qual me informava de algumas coisas. Ao interior não me chegavam cartas, as primeiras foram quando rumei a Conacri [, em março de 1967, evacuado por paludismo]. Ainda guardo a que me escreveu a minha filha mais pequena e que me fez sentir o homem mais feliz do mundo.



Foto da carta da filha do dr. Diaz Delgado (anexa ao livro de H. L. Blanch)


( xvi) Tem outras memórias da estadia em Sará?


Um dia, pela madrugada, chegou à nossa tabanca (assim se chamam as aldeias ali, nas quais existem várias construções que podem ser 7, 8 ou 10) um miúdo que se chamava Kumba [, foto à esquerda, da autoria de Diaz  Delgado, anexa ao pdf], com aproximadamente quatro anos. 

Estava em boas condições gerais, mas com uma grande ferida na perna direita onde se tinha lesionado, vendo-se o osso e as artérias, pois foi na face anterior. Impressionou-me o estado anímico em que chegou, com naturalidade, sem uma lágrima, nem um sinal de dor.

Umas duas horas antes tínhamos sentido o barulho dos disparos a cerca de três quilómetros onde nos encontrávamos. Foi um assalto de surpresa a uma aldeia totalmente desprotegida, aonde não existiam guerrilheiros e praticamente foi arrasada pelos portugueses. Por sorte esta criança foi resgatada e levada ao nosso rústico hospitalito [este diminutivo quererá dizer: posto médico ou enfermaria].

Foi tratada pelo ortopedista Teudi Ojeda e por mim. Lavamos-lhe a ferida que estava muito suja e a saturamos parcialmente, pois não queríamos provocar complicações como por exemplo uma gangrena que poderia surgir no futuro. Durante o tratamento sem anestesia, Kumba manteve-se igual, sem uma lágrima e sem manifestar dor. A esta situação já nos tínhamos habituado,  particularmente na população adulta.

(Continua)

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3. Nota do editor LG:

Jorge: Fica extenso este poste, mas vamos ver... A malta está a habituar.-se à linguagem telegráfica do Facebook, já não tem pachorra (nem tempo) para postes com muita uva e pouca parra... Ora a uva é para se saborear, comer devagar, bago a bago... Os tempos hoje são do pudim instantâneo...

Ironia à parte, é bom chamar a atenção para a entrevista do dr. Diaz Delgado, hoje professor universitário reformado, que deve andar na casa dos 80 anos, se for vivo, como eu espero.

Há um ou outro lapso do autor: os feridos que ele tratou (resposta à  questão nº 13) não podiam ser de Guileje [, Guilelle, no original], que fica no sul, o homem estava na Frente Norte, no Morés e em Sará, a  sudeste de Mansabá... Fez seguramente confusão com Guidaje, ele ou o entrevistador... Sabemos que,  por volta de março de 1967, adoeceu e teve que ser ser tratado em Conacri... Os médicos, mesmo cubanos, mesmo internacionalistas, também adoeciam na Guiné... Aliás, os cubanos não se davam bem com o clima daquela terra... No regresso, será colocado na zona leste, região do Boé...

Por outro lado, era pouco provável em Sará a ouvir a música das discotecas de Bissau... a 65/70 km, de distância em linha reta... Bafatá, a leste, ficava mais perto (c. 40 km)... E mais perto ainda, Bambadinca, a sudeste... Eu,  em Bambadinca, era  capaz de ouvir bombardeamentos dos Fiat G-91 contra Sará ou Sinchã Jobel, mas mais do que isso era difícil... Música de discoteca, mesmo com altas colunas, de Bissau a Sará,  é óbvio que são fantasias do nosso dr. Diaz Delgado, um jovem médico com sangue na guelra e capaz de pecar como qualquer um de nós... . No fundo, o que ele queria dizer é que Sará, por manifesto erro de cálculo,  estava às portas de Bissau (que ele gostaria porventura  de ter conhecido como anónimo "turista")...

Mas no geral, parece-me um depoimento "limpo", sem grandes tiradas demagógicas ou vieses propagandísticos... Não se escondem os desaires e as dificuldades tremendas da guerrilha e da população que vive sob a "proteção" da guerrilha... A começar pela segurança e os cuidados de saúde...

O tal desertor português de que ele fala é mesmo o Mourão... E é muito pouco provável que fosse agente de PIDE... Em 1967 0 Mourão terá seguido, com outro desertor, para Argel... Enfim, outra fantasia (ou fantasma) do dr. Diaz Delgado.

Tive há anos (, em 2000/2002) um aluno cubano, médico, que também combateu em Angola e na Etiópia ou Eritreia (, se não erro)... Era cirurgião plástico e arranjou... uma portuguesa como companheira... Gonzalez Acosta, se bem me lembro, era o seu apelido... Era "crioulo", com traços de "índio"...  Deve estar agora por aí em Portugal,  a labutar pela vida... .

São pessoas generosas, mas pouco críticas...Apesar de uma boa relação professor-aluno, nunca lhe consegui arrancar muitas palavras sobre a sua experiência de guerra em África e muito menos sobre o regime de Fidel Castro... (Ele frequentou mas não acabou o curso de medicina do trabalho na Escola Nacional de Saúde Pública).

A "formatação" ideológica (política, religiosa, militar...) é uma coisa tramada... Para mais numa situação-limite como a guerra em que se tem de tomar partido e ter mentalidade vencedora (ou "predadora")... Jorge, foste "ranger", sabes o que é isso, da "formatação" do combatente de elite ...

Também conheço o lado oposto, um outro médico cubano, opositor do regime, antigo colega do meu filho no Hospital Amadora Sintra, também cirurgião, se não erro, e casado com uma portuguesa... Seu nome (, pelo menos literário), Miguel Pinto, com ascendência portuguesa. (Esquecemo-nos de que Cuba também foi, no passado, um destino de emigração para alguns portugueses, do Minho e de Trás-os-Montes, talvez por influência da Galiza; L Fidel Castro, como se sabe, é de ascendência galega)...

O Miguel Pinto é um escritor de talento, com livros de ficção em português, editados em Portugal, mas muito marcado pela experiência de prisão, oposição e desterro... O seu primeiro  livro,  de inspiração autobiográfica, e que ainda não  li, mas quero ler, chama-se "O ano em que devia morrer" (Edição: Sopa de Letras, 2008, 272 pp).

Mas voltando ao "nosso" dr. Diaz Delgado, a sua entrevista é um documento humano notável, apesar de tudo... Espero que os nossos camaradas saibam-no ler, com distanciamento crítico, sem paixões exacerbadas, e sobretudo saibam-no ler nas entrelinhas... É preciso saber ler nas entrelinhas as palavras escritas dos homens, portugueses, cubanos, guineenses, não importa donde... E ninguém tem o monopólio da humanidade nem da verdade!!

O Blanch, o autor do livro,  deve ser um jornalista "alinhado" com o regime... é bom não esquecê-lo. Peel menos na época... Como era o nosso Amândio Césart (1921-1987) que escreveu páginas exaltantes sobre a nossa "guerra do ultramar"...

As perguntas do escritor são "politicamente" corretas", as respostas do entrevistado parecem-me mais espontâneas e autênticas... Mas o homem, o médico, o internacionalista, o cubano, não podia contar tudo... Pelo menos em 2005... Hoje Cuba está a passar por um período de maior abertura ao exterior e  isso também é uma oportunidade que todos devemos aproveitar... Também nós, ex-combatentes na Guiné, "ainda não abrimos o livro todo"... E a prova disso é já a "antiguidade" deste blogue: mais de 12 anos na Net é obra!...

O pdf (do livro do Hedelberto López Blanch)  não está paginado... Deve ser uma versão preliminar do livro a que o Jorge Araújo teve acesso, e que de resto está disponível "on line", no original, em castelhano... As fotos vêm no fim, o que não é normal num livro em papel...
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Guiné 63/74 - P16233: Nota de leitura (851): Relendo uma obra soberba: Vindimas no Capim, por José Brás (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Junho de 2016:

Queridos amigos,
Quis o feliz acaso ou a fortuna que descobrisse em Vila Facaia, concelho de Pedrógão Grande, na manhã de domingo, 12 de Junho, num mercado onde se vendem roupas usadas, cds, mil imensos bibelôs, agrícolas biológicos, pão feito por alternativos alemães, o prodigioso "Vindimas no Capim", que em tempos aqui exaltei e pela mesmo ordem de razão aqui volto a ovacionar.
Na verdade, naquele década de 1980, os combatentes, chegados aos 40 e 50 anos, deram para falar de si com uma estonteante sinceridade. Assim aconteceu, no caso da Guiné, com Álamo de Oliveira, Cristóvão de Aguiar e José Brás.
A brutalidade do romance de José Brás é por vezes arrepiante, uma brutalidade que lembra "Nó Cego", de Carlos Vale Ferraz ou "Olhos de Caçador", de António Brito. O testemunho violentíssimo de "Estranha Noiva de Guerra" de Armor Pires Mota tem outras vertentes, há também muita brutalidade (recorde-se a descrição inultrapassável do ataque a Mansabá) mas perpassa pelo seu livro um doloroso lirismo de um herói a quem se lhe nega aquela estranha noiva de guerra.
José Brás pode orgulhar-nos por este seu livro soberbo, exclamativo, nunca escamoteando o jargão da caserna.
Abençoada a hora em que me decidi em ir aquele mercado de velharias e reencontrei o nosso admirável José Brás.

Um abraço do
Mário


Relendo uma obra soberba: Vindimas no Capim, por José Brás (1)

Beja Santos

Um acaso feliz permitiu-me adquirir um exemplar de “Vindimas no Capim”, estava a fazer uns dias de férias em Pedrógão Pequeno e foi um bálsamo reencontrar-me com a prosa, encontrada num mercado de velharias que funciona todos os domingos em Vila Facaia. O que é muito bom lê-se com imenso prazer, o que é muitíssimo bom, numa segunda ou terceira leitura, e distante que estamos da descoberta de uma gema preciosa, permite ver a originalidade, cerca de três décadas depois da sua publicação.

O que há de verdadeiramente distinto neste romance avassalador do nosso confrade José Augusto dos Santos Brás? Em seu nome irá falar Filipe Bento, oriundo de um meio rural, onde pontificava o machismo, a rudeza, a praga. Tempos não muito distantes, mas Filipe é solene a desvelar o teatro de origem:
“Vocês talvez não saibam, mas quem já teve a profissão de cavador, digo a profissão, não o passatempo de horas livres em pequena horta de brincar, o ofício mesmo, de levantar às cinco, cinco e meia da matina, ir à porta do patrão, caminhar os quilómetros necessários para estar no rego ao nascer do Sol, almoçar às dez, recomeçar às onze, quando não às dez e três quartos, jantar da uma às duas e largar com o pôr-do-sol, caminhar outra vez para casa, para, no dia seguinte e nos milhares de dias seguintes, repetir o gesto e isto dito assim, num repente, pode até enganar quem lê e da vida de cavador não teve notícia nunca, ou se teve foi só de raspão”.
Adrede a esta apresentação, vem um texto antológico, não é a primeira vez que o reproduzo e com muita ufania, admiração por quem o escreveu:
“Uma enxada não é só aquele pedaço de ferro retangular, moldado em meia-lua de bicos afiados num dos lados menores e encimada de um pequeno anel chamado ‘olho’, no outro lado. A enxada compra-se completa com mais dois ferros: o pescaz e a cunha.
E o que é isso do pescaz e da cunha?
Um pescaz é um pedaço de ferro alongado, com sete ou oito centímetros de comprimento por um e meio de largura, mais ou menos, com uma cabeça ligeiramente desbordada onde assentará a porrada do martelo quando se for aplicar na enxada, pontiagudo para entrar melhor no olho, entre o cabo e o ferro, atrás. A sua função é graduar o ângulo formado pela pá da enxada e pelo cabo. E esse ângulo deve ser mais aberto ou mais fechado, consoante o trabalho que se for realizar: cava, descava, sachola, abrir rego para feijão, covacho de batata, semear ou enterrar ceseirão, enterrar esterco, semear fava, tremoço ou tremocilha, ou grão preto ou branco, ou milho, ou trigo”.
Tudo começou para Filipe Bento em S. Jerónimo do Ermo, neste preciso mundo rural, não se pode falar da tropa e sobre a guerra sem ter de se falar de outras coisas.

E depois vem a parada, a ordem unida, a disciplina, andar de quartel em quartel antes de embarcar no Niassa, o destino é o Sul da Guiné. Não há artifícios para a linguagem, o nosso furriel vai para Cutima-Fula e passado um mês tudo se revirara na sua vida mas que o leitor não se acanhe para além da sua preparação naquele mundo áspero, onde pontifica a virilidade, aprendeu muito com o professor Leiria, e o seu filho militar, mais a mais major, aprendeu que existia a Legião Portuguesa, que havia maroscas, pequenos e grandes poderes entre oficiais, sargentos e praças, vagomestres ladrões. Este o pano de fundo, a superfície preparatória de uma viagem que começou em Bissau até Buba e que se espraiou por vários locais do Sul da Guiné. É uma linguagem coloquial, um tu cá tu lá com o leitor, ele que se aguente cada vez que é necessário discorrer sobre uma expressão pertinente, caso de “no cu de Judas” que ele tinha lido num livro celebérrimo de Lobo Antunes. E o discurso que se segue é frenético entre consonâncias e dissonâncias das diferentes guerras que cada um viveu, como segue:
“A porra toda é que se para o Lobo Antunes os cus de judas eram os casinos e os dancings da Ilha de Luanda, onde kamanguistas, comerciantes do planalto, roceiros, cauteleiros da Baixa, gente se ocupação definida, se babava nas mamas de velhas putas lisboetas e cariocas, vociferando contra os cabrões que não lhes deixavam “tratar da saúde aos pretos”; se para ele os cus de Judas eram Malange e a baixa do Cassanje, o algodão que os agricultores não podiam vender se não à empresa que lhes fornecia os fatores de produção e a que estão presos por dívidas eternas, aumentadas ano a ano, colheita após colheita, e por leis do governo de Lisboa, pela vigilância de sobas e cipaios, da O.P.V.C.D.A. e da PIDE; se para ele os cus de Judas eram o Leste de Angola, Gago Coutinho, Luso, Chiúme, Marimba, Cambo; se para ele os cus de Judas eram o deserto de areia e a chana, onde soldados Ferreiras e cabos Pereiras deixavam as pernas e as tripas e militarzinhos quase crianças se enfastiavam daquela merda de morte em vida e disparavam em si próprios; se para o Lobo Antunes os cus de Judas são os percursos entre Mangando, Marimbanguengo, Bimbe e Caputo, o servilismo de sobas e de gentes gingas, a explosão da carne da lavadeira Sofia, a cama da hospedeira da TAP no Bairro Prenda, para mim cumpriu-se os cus de Judas naquela confusão de selva e água, de batelões e LDGs, de CUF e libaneses, e comércio de mancarra com agricultores igualmente esfarrapados, igualmente ligados a dívidas e a leis e a vigilâncias de cipaios e de traidores e de milícias e pides; o meu cu de Judas foram Buba e Cutima-Fula, e Nhala e Colibuia e Cumbijã e Cajamba e Mampatá e Saltinho e Madina e Gandembel e Gadamael-Porto e Cacine, tudo terras de morte de raivas contidas no calor das tardes vazias, nas garrafas de uísque e de gin, e de conhaque e do caralho, nos ataques aos quartéis, nas emboscadas, na humidade linfática daquele ar irrespirável entre as dez e as quatro da tarde; na descarga do intestino revoltado; para mim, os cus de Judas eram das idas a Buba ou a Gadamael, trinta quilómetros para cada lado, a caçar minas, a chupar emboscadas, atascados na lama das bolanhas, todo o caminho a inventar pontes, camiões cavalgando troncos de árvores num prodígio de circo para repor o stock do vagomestre e do bar com comes-e-bebes que depois se vomitavam na caganeira, quando o estômago aguentava a corrida, ou logo ali à saída da porta se a golfada saltava sem aviso”.

E prossegue a sua toada a estabelecer diferenças, que também as havia, por exemplo a proveniência da mina, seja anticarro ou antipessoal, até houve um caso em que a mina lhe estava destinada, quis a roda da fortuna que lerpasse o cabo Júlio, e por hoje aqui ficamos com tal pungente descrição:  
"Os olhos do Peniche abriam-se espantados. Ali aos pés tinha o volume do resto daquilo que fora o corpo do Júlio, meio aterrado, com os cotos dos braços e das pernas a fumegarem estorricados, apontados ao alto. A pele da barriga esticara, rebentando, e mostrava um amontoado de carvão. Toda a cabeça encolhera e as feições haviam desaparecido. O crânio estava repuxado e aberto também”.

E agora vamos vê-lo a viver em Cutima-Fula.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de junho de 2016 Guiné 63/74 - P16224: Notas de leitura (850): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos; o caso do cirurgião Domingo Diaz Delgado, 1966-68, segundo o livro de H. L. Blanch (2005)- Parte I: a partida de La Habana e os primeiros contactos com o PAIGC (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494, Xime-Mansambo, 1972/1974)

Guiné 63/74 - P16232: Inquérito 'on line' (55): A nossas queridas lavadeiras... (Foto: Jorge Pinto / Comentários: Henrique Cerqueira / José Diniz de Sousa Faro / Vasco Pires / António J. Pereira da Costa)




Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Lavadeiras na Fonte antiga.

"Todos os soldados tinham a sua lavadeira. A lavagem da roupa era feita na tabanca com água retirada através do único furo, feito por uma companhia de caçadores estacionada em Fulacunda em 68/69 [ou melhor, 69/70], e que penso chamar-se “Boinas Negras” [ CCAV 2482, "Boinas Negras", subunidade que esteve em Fulacunda entre 30 de Junho de 1969 e 14 de Dezembro de 1970, data em que foi rendida e partiu para Bissau]. 

" Contudo, quando havia muita roupa para lavar, as lavadeiras deslocavam-se à fonte antiga, que se localizava na parte exterior do aquartelamento e portanto sujeita a “surpresas” [, acções do IN]."

Foto (e legenda): © Jorge Pinto (2014). Todos os direitos reservados.[Edição: Blogue Luís GRaça & Camaradas da Guiné]


A. Quatro  comentários aos poste P16229 (*)

Henrique Cerqueira  > 
"As lavadeiras também marcaram 
a nossa passagem pela Guiné"

Já tive aqui a oportunidade de escrever sobre as Lavadeiras na Guiné.

Tenho muito gratas recordações de todas as lavadeiras que encontrei. No entanto a que mais me marcou foi a lavadeira que tive em Bissorã.

Seu nome era Amélia. Era uma linda mulher, muito sensata e sempre bem disposta. Mais tarde quando a minha mulher (Ni) e meu filho Miguel se juntaram a mim em Bissorã,  a Amélia continuou a ser a nossa lavadeira e tornou-se grande amiga e até confidente da minha mulher. Pois que a Amélia era uma mulher muito educada e bastante esclarecida.

Não deixa de ser uma classe muito marcante durante a nossa comissão,pois que era um momento sempre esperado pelos militares a "hora das lavadeiras" quando iam aos aquartelamentos recolher as roupas para lavar.

Fosse qual fosse a intenção da malta, o que é certo é que eram momentos quase sempre de alguma alegria e de grande converseio com todas aquelas senhoras que, à hora certa,  lá apareciam em bandos e se espalhavam pelo aquartelamento.

Não haverá dúvidas que foram pessoas que também marcaram a nossa passagem pela Guiné.


José Diniz Carneiro de Sousa e Faro > 
"O preço da lavadeira era conforme o posto"


Em Cameconde onde estive um ano (de abril de 1968 a junho de 1969). , tive uma Lavadeira, esposa de um milícia de Cacine. 

O resto de tempo eram as esposas do meu pessoal que era de incorporação da Guiné. 

Em Bissau no QG eram aquelas que apareciam na messe dos Sargentos. As esposas dos meus camaradas do pelotão eram cuidadosas, nunca faltou um botão;  já em Bissau faltavam sempre os botões. 

O preço era consoante o pré: para o soldado mais barato, para  cabo mais caro; e depois sargento e oficial... Pelo menos em Cacine, Guiné 68/70


Vasco Pires > 
"No pelotão de artilharia, em Gadamael, 
herdei o ordenança e a lavadeira"


A rendição individual na Artilharia, muitas vezes era complicada (a minha inclusive); "a linha de montagem de Artilheiros" de Vendas Novas,por vezes não dava conta.

Foi o caso do meu antecessor em Gadamael,quando cheguei, estava desesperado para ir para casa.
Deveria me passar o Pelotão (material, estoque de granadas...etc.),a pressa era tanta, que só me apresentou os Furriéis e me passou o ordenança e a lavadeira.

Daí, dá para avaliar a importância da lavadeira naquele contexto. 


António J. Pereira da Costa > 
"Numa terra com tantas dificuldades, 
lavadeira era uma profissão 
que permitia aumentar o peculium familiar... 
Espero que o PAIGC não as tenha tratado 
como colaboracionistas""

Olá Camaradas

Para o irmão Kó-kósha um abraço especial.

Era realmente assim, em Cacine/Cameconde o preço a pagar era função do posto. Muito democrático e socialmente justo, portanto.

Partilhei a lavadeira com o capitão  da companhia. Era uma empresa familiar: às vezes vinha a Matilde que se queixava do Alfero Comprido que lhe dizia: Àbó é runho! Bó suma trutruga, À bó futucêro. À bó quer come mim

Vendeu-me um colar de conchas por 10 pesos. Quando lho pedi começou a desconversar, mas depois vendeu-mo e a Isabel ainda o tem.

Outras vezes vinha uma caboverdeana velhota que fazia um pitch-pach verdadeiramente espectacular.

Outra vezes a mulher do alfaiate que o PIDE prendeu e interrogou. A caboverdeana baixinha e velhota, cujo nome não recordo, era avó da Ami Silá, uma menina que tinha medo de mim e com quem nunca cheguei nem à fala.

No Xime,  era a Maria, viúva de um furriel dos Cmds Africanos e mãe do Balantazinho que jogava ori contra mim.

Em Mansabá,  era a Mariama, a quem eu dizia: dia ku muir cá tacompanhau interra. Nunca me faltaram os botões e a roupa da Isabel também foi bem tratada.

Espero que nenhuma tenha sido tratada como "colaboracionista" pelos guerrilheiros do PAIGC.

Numa terra com tantas dificuldades, lavadeira era uma profissão que permitia aumentar o peculium familiar...
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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P16231: Parabéns a você (1100): António Branco, ex-1.º Cabo Reab Material da CCAÇ 16 (Guiné, 1972/74) e Vasco Joaquim, ex-1.º Cabo Escriturário do BCAÇ 2912 (Guiné, 1970/72)


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Nota do editor

Último poste da série de 23 de Junho de 2016 Guiné 63/74 - P16228: Parabéns a você (1099): João Carvalho, ex-Fur Mil Enf da CCAÇ 5 (Guiné, 1973/74)

quinta-feira, 23 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16230: As minhas crónicas do tempo da Diamang, Lunda, Angola (1972-1974) (José Manuel Matos Dinis) - Parte V: o meu álbum de fotografias


A fotografia nº. 1 representa uma cena da mudança de linhas de um corte já explorado para outro a explorar, e mostra pessoal que transporta um segmento de carril;




A fotografia nº. 2 mostra o Muriandambo, o capataz geral no Munguanhe - 2 com quem aprendi bastante;


A fotografia nº. 3 revela uma imagem do rio que margina a colina e o acesso à mina. Não era um grande rio, mas atente-se na caudal que era permanente. Fizemos desvios de caudais naturais ainda mais notórios, para caudais artificiais, por vezes com extensões apreciáveis, para exploração dos respectivos leitos;



A fotografia nº. 4 revela um momento do refeitório durante uma refeição;


A fotografia nº. 5 mostra a tropa privativa da Companhia em desfile domingueiro no Dundo. A sua função seria sobretudo de obter informações e marcar presença. O carocha ali captado, representa o modelo de viaturas ligeiras mais frequentes naquela área;


A fotografia nº. 6 fixa uma imagem de trabalho num corte de mina clássica, com padejamento de cascalho, e enchimento de vagonetas que o transportavam à lavaria;



A fotografia nº. 7 mostra uma roda de canto, uma bomba hidráulica e um par de botas. As rodas de canto são os instrumentos onde curvam e mudam de direcção os cabos circulantes onde atrelam as vagonetas;



A fotografia nº. 8 exibe uma ponte sobre um canal, que estudei e mandei construir em substituição da anterior degradada. Os materiais de madeira, desde os troncos que constituíam o tabuleiro, às travessas por onde era permitida a passagem de viaturas, foram cortados à medida em serração da Empresa. A minha congeminação assentou no manual militar de engenharia - minas e armadilhas, um calhamaço que ficou por lá, de que tenho saudades e ocasionais necessidades. Se alguém ainda preservar um exemplar que não o queira mais, ESTOU COMPRADOR. Em segundo plano vê-se o saudoso 1300, e em último, a luxuriante vegetação com inimagináveis anos de idade, e objecto da devassa das explorações.

Fotos (e legendas): © José Manuel MatosDinis  (2016)- Todos os direitos reservados


1. Quinta crónica da série, enviada a 22 do corrnte:

Caros amigos, com vista à continuação da série As minhas memórias do tempo da Diamang, envio a Parte V, um conjunto de fotografias que ilustram aspectos da vida naquela região, durante o período de 1972/4, e uma estória acessória.

Abraços fraternos, JD


[Foto à direita: 
o José Manuel Matos Dinis, ex-fur mil at inf, CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71, 
nosso grã-tabanqueiro e adjunto do régulo da Magnífica Tabanca da Linha, Jorge Rosales,;
depois do seu regresso a casa, a Cascais, 
em janeiro de 1972, vindo da Guiné, 
rumou até Angola, em maio de 1972, 
para ir viver e trabalhar na Lunda, 
na melhor empresa angolana na época, 
a famosa Diamang - Companhia de Diamantes de Angola, com sede no Lundo; 
aqui casou (por procuração), 
aqui nasceu o seu primeiro filho: 
desafiado por nós justamente 
a falar da sua experiência angolana ~
em meia dúzia de crónicas memorialísticas, aceitou galhardamente o desafio 
e está a cumprir o prometido.] (*)

Em Cassangudi a vida era bastante rotineira, e eu corria o risco de engordar, tal a quantidade alimentar das refeições, como o número delas em cada jornada.

Já conhecia muitas pessoas no âmbito da Companhia, principalmente no Dundo, onde era costuma deslocar-me durante os fins-de-semana, e fizera um razoável número de amigos, sobretudo entre os da minha geração. 

Mas esses dias eram ainda de comes e bebes, uma forma de convívio característica das gentes lusas. Dizia-se com graça, que os albuns fotográficos estavam amplamente preenchidos com retratos de refeições, quer à mesa, quer em piqueniques

Uma ocasião fui informado sobre uns jogos que cobriam a província, uma espécie de FNAT [Federação Nacional para a Alegria no Trabalho] (hoje INATEL) da época que abrangia muitas e diferentes modalidades. Logo em Cassanguidi foi resolvido participar, mas em que modalidade, dada a dificuldade de providenciarmos equipes, para mais com o rinque multi-usos em mau estado? - Tinha ali acontecido hóquei em patins, ténis, andebol e futebol de salão.

Quando anunciaram também a modalidade de xadrez, logo alguém indicou o Julien Martan (Júlio Martins de nome verdadeiro, que era o único residente praticante da modalidade. Mas o "cangabuca" - enfermeiro diplomado) não estava para aí virado, que não queria ter o azar de se deslocar a um ponto longínquo de  Angola, e alguém se lembrou de mim, questionando-me se sabia jogar xadrez. Respondi que sabia deslocar as pedras, mas saber jogar é coisa muito diferente. Pronto, inscreve-se o Dinis e já temos lugar no mapa.

A coisa funcionava por eliminatórias numa única deslocação. Calhou-me em sorte o campeão de Angola, que em data aprazada se deslocaria a Cassanguidi. Primeiro azar meu, não iria passear a qualquer localidade. A Companhia proporcionou o transporte ao adversário, um cavalheiro de meia idade, com bons modos, que carregava uma mala. Fomos apresentados na Casa do Pessoal, e depois de uns momentos de apresentação e descontracção, escolhemos uma mesa para a disputa da partida perante uma assistência civilizada de meia-dúzia de pessoas. Nunca tinha jogado com relógios federativos que marcavam o tempo para cada jogada, nem nunca tinha anotado os movimentos das peças, como o faria o campeão que anotava as passagens de linhas e casas.

Dei corda aos cavalos como se de uma táctica de guerrilha se tratasse, e comecei a constatar que o campeão vacilava com facilidade perante o meu jogo, pouco pensado, e quase espontâneo. Já acumulava muito material inimigo, e sentia-me confiante. A partida não durou duas horas, principalmente, porque o meu adversário dava mostras exemplares de muita ponderação.

Até que, inopinadamente, sofri o cheque-mate. Não soube como aconteceu, mas não tinha saída salvadora. O campeão mostrara que mesmo em dificuldades, sabia da poda. Depois admitiu que pensara perder a partida, mas apontou que nas últimas jogadas eu fora displicente, ao que respondi ter sido por cansaço, mas na realidade fora incompetência. 

Antes de sair ainda referiu ter achado que fiz jogadas interessantes, e que ia prestar atenção ao desenvolvimento da partida durante as reconstituições que faria. Pronto, ficamos assim a saber, que a modalidade de xadrez implica estudos sucessivos para exercitar a mente na tomada de decisões mais adequadas, ao contrário do que eu fazia, que era tomar as decisões mais rápidas.

Posto isto, segue-se um conjunto de retratos que vou legendar [vd. série de 8 fotos, acima]

(Continua)

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