A Miriam e o furriel Mamadu
Foto (e legenda): © Mário Fitas (2016). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Comentários ao último poste do Mário Fitas (*)
[Mário Fitas foi cofundador e é "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô; foto atual, à direita]
[Mário Fitas foi cofundador e é "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô; foto atual, à direita]
(i) Valdemar Queiroz:
Belo texto.
Esquisita aquela passagem 'apesar de ser negra Mariam não era nada de desperdiçar' Não percebo por que é que por ser uma mulher negra tinha que ser desperdiçada? Mas desperdiçada de quê? (Por cá dizemos o mesmo, mas não é por ser branca)
Ainda bem que naquela pequena tabanca (o Mamudu não sabia se fula ou mandinga ?) a população dominava perfeitamente o crioulo e até o Aqueba tocava kora, mas, estranhamente, nada sabia da infertilidade das mulheres.
Venham mais textos
Valdemar Queiroz
5 de abril de 2017 às 18:46
(ii) Tabanca Grande:
Mário, é um texto "corajoso", em que te expões, dás a cara... Concordo com o Valdemar, é um pouco "infeliz" a tua observação: "apesar de ser negra, Miriam não era nada de desperdiçar"... Tal como aquela outra, mais à frente: "ao fim de quinze dias na Guiné, as negras começam a ficar brancas”...
Bom, a Miriam é uma grande mulher e se ela foi tua lavadeira e amante, foste um tuga, além de "balente", com sorte na guerra e nos amores... Tiro-lhe o quico, a ela e ao Mamadu!
O teu texto é prosa e da boa. É literatura, é ficção, memso com um fundo autobiográfico. E o romancista, o novelista, o contista, não tem que ser "politicamente correto"!... Hoje temos dificuldade em abordar, com frontalidade, as questões de género...
Muitos de nós, na época, "pensavam" o mesmo... De resto, a misogenia (e o racismo) está ainda bem presente em muitos provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa... Aqui vai uma mão chão deles, selecionados por mim:
"A mulher e a mula o pau as cura";
"A raposa tem sete manhas e a mulher a manha de sete raposas";
"Até aos vinte, evita a mulher; depois dos quarenta, foge dela";
"Com mulher louca, andem as mãos e cale-se a boca";
"Da cintura para baixo não há mulher feia";
"De má mulher te guarda e da boa não fies nada" (Séc. XVI);
"Debaixo da manta tanto faz a preta como a branca";
"Desejo de doente, visita de barbeiro, serviço de mulher";
"Dia de Santo André, quem não tem porcos mata a mulher";
"Foge da mulher que sabe latim e da burra que faz ‘im’…";
"Frade e mulher - duas garras do diabo";
"Frade, freira e mulher rezadeira - três pessoas distintas e nenhuma verdadeira";
"Hábito de frade e saia de mulher chega onde quer";
"Guarda-te do boi pela frente, do burro por detrás e da mulher por todos os lados";
"Guarde-vos Deus de moça adivinha e de mulher latina" (Séc.XVI);
"Mulher beata, mulher velhaca";
"Mulher doente, mulher para sempre";
"Mulher não se enceleira: ou se casa ou vai ser freira";
"Mulher se queixa, mulher se dói, enferma a mulher quando ela quer";
"Não provam bem as senhoras que se metem a doutoras";
"O homem deve cheirar a pólvora e a mulher a incenso";
"Para perder a mulher e um tostão, a maior perda é a do dinheiro";
"Para se encontrar o Diabo não se precisa sair de casa";
"Três coisas mudam o homem: a mulher, o estudo e o vinho";
"Vaca triste e pançuda não presta e não muda".
Fonte: Graça (2000) -
http://www.ensp.unl.pt/luis.graca/textos76.html
Já quanto à Miriam ter sido "herdada" pelo velho sargento de milícias Aqueba Baldé, por morte do marido, temos que ter alguma "cuidado" com a palavra... O nosso Cherno Baldé é capaz de te vir dizer que a lei islâmica proibe que uma mulher seja "herdada"... Mas uma coisa é a lei e outra a prática social dos fulas, há meio século atrás...
Em todo o caso estamos perante um caso de levirato, que remonta ao antigo Testamento: é um tipo de casamento no qual o irmão de um falecido é obrigado a casar com a viúva de seu irmão, e a viúva é obrigada a casar com o irmão do seu falecido marido.
O casamento levirao foi (e continua a ser) praticado por sociedades com uma forte estrutura tribal e clânica em que o casamento fora do clã (exogamia) era proibido. A prática é semelhante à "herança" da viúva, em que os parentes do falecido marido podem decidir com quem a viúva pode casar.
O termo deriva do latim "levir", o "irmão do marido".
5 de abril de 2017 às 20:06
Valdemar Queiroz
5 de abril de 2017 às 18:46
(ii) Tabanca Grande:
Mário, é um texto "corajoso", em que te expões, dás a cara... Concordo com o Valdemar, é um pouco "infeliz" a tua observação: "apesar de ser negra, Miriam não era nada de desperdiçar"... Tal como aquela outra, mais à frente: "ao fim de quinze dias na Guiné, as negras começam a ficar brancas”...
Bom, a Miriam é uma grande mulher e se ela foi tua lavadeira e amante, foste um tuga, além de "balente", com sorte na guerra e nos amores... Tiro-lhe o quico, a ela e ao Mamadu!
O teu texto é prosa e da boa. É literatura, é ficção, memso com um fundo autobiográfico. E o romancista, o novelista, o contista, não tem que ser "politicamente correto"!... Hoje temos dificuldade em abordar, com frontalidade, as questões de género...
Muitos de nós, na época, "pensavam" o mesmo... De resto, a misogenia (e o racismo) está ainda bem presente em muitos provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa... Aqui vai uma mão chão deles, selecionados por mim:
"A mulher e a mula o pau as cura";
"A raposa tem sete manhas e a mulher a manha de sete raposas";
"Até aos vinte, evita a mulher; depois dos quarenta, foge dela";
"Com mulher louca, andem as mãos e cale-se a boca";
"Da cintura para baixo não há mulher feia";
"De má mulher te guarda e da boa não fies nada" (Séc. XVI);
"Debaixo da manta tanto faz a preta como a branca";
"Desejo de doente, visita de barbeiro, serviço de mulher";
"Dia de Santo André, quem não tem porcos mata a mulher";
"Foge da mulher que sabe latim e da burra que faz ‘im’…";
"Frade e mulher - duas garras do diabo";
"Frade, freira e mulher rezadeira - três pessoas distintas e nenhuma verdadeira";
"Hábito de frade e saia de mulher chega onde quer";
"Guarda-te do boi pela frente, do burro por detrás e da mulher por todos os lados";
"Guarde-vos Deus de moça adivinha e de mulher latina" (Séc.XVI);
"Mulher beata, mulher velhaca";
"Mulher doente, mulher para sempre";
"Mulher não se enceleira: ou se casa ou vai ser freira";
"Mulher se queixa, mulher se dói, enferma a mulher quando ela quer";
"Não provam bem as senhoras que se metem a doutoras";
"O homem deve cheirar a pólvora e a mulher a incenso";
"Para perder a mulher e um tostão, a maior perda é a do dinheiro";
"Para se encontrar o Diabo não se precisa sair de casa";
"Três coisas mudam o homem: a mulher, o estudo e o vinho";
"Vaca triste e pançuda não presta e não muda".
Fonte: Graça (2000) -
http://www.ensp.unl.pt/luis.graca/textos76.html
Já quanto à Miriam ter sido "herdada" pelo velho sargento de milícias Aqueba Baldé, por morte do marido, temos que ter alguma "cuidado" com a palavra... O nosso Cherno Baldé é capaz de te vir dizer que a lei islâmica proibe que uma mulher seja "herdada"... Mas uma coisa é a lei e outra a prática social dos fulas, há meio século atrás...
Em todo o caso estamos perante um caso de levirato, que remonta ao antigo Testamento: é um tipo de casamento no qual o irmão de um falecido é obrigado a casar com a viúva de seu irmão, e a viúva é obrigada a casar com o irmão do seu falecido marido.
O casamento levirao foi (e continua a ser) praticado por sociedades com uma forte estrutura tribal e clânica em que o casamento fora do clã (exogamia) era proibido. A prática é semelhante à "herança" da viúva, em que os parentes do falecido marido podem decidir com quem a viúva pode casar.
O termo deriva do latim "levir", o "irmão do marido".
5 de abril de 2017 às 20:06
(iii) Tabanca Grande:
"Jarama" ou "djarama" em fula quer dizer obrigado...
O que é que o velho sargento de milícias queria dizer com a frase:
-Jaramááááá… furiel Mamadu qui na bai na mato e cá tem medo, Jaramááááá!...
Mário, levantas outra questão interessante, e aqui pouco abordada, o uso de "mezinhas" contra bala do inimigo... É interessante a tua descrição do ritual a que o furriel Mamadu foi submetido, com o propósito de "fechar o corpo" contra as balas... Era uma prática "animista", corrente na Guiné... Toda a gente usava "amuletos", tanto os cristãos, como os muçulmanos como os animistas, a começar pelo 'Nino' Vieira... E o pobre do Amílcar Cabral, que combatia a prática "irracional" dos amuletos, também devia usá-los... Se calhar as balas da Kalash do "traidor" Inocêncio Kano não lhe teriam entrado no corpo, na noite de 20 de janeiro de 1973...
5 de abril de 2017 às 20:46
(iv) Tabanca Grande
O que diz a Bíblia, Antigo Testamento, sobre o levirato:
Deuterónimo, 25: 5-10
5. Se alguns irmãos habitarem juntos, e um deles morrer sem deixar filhos, a mulher do defunto não se casará fora com um estranho: seu cunhado a desposará e se aproximará dela, observando o costume do levirato.
6.Ao primeiro filho que ela tiver se porá o nome do irmão morto, a fim de que o seu nome não se extinga em Israel.
7.Porém, se lhe repugnar receber a mulher do seu irmão, essa mulher irá ter com os anciães à porta da cidade e lhes dirá: meu cunhado recusa perpetuar o nome de seu irmão em Israel e não quer observar o costume do levirato, recebendo-me por mulher.
8.Eles o farão logo comparecer e o interrogarão. Se persistir em declarar que não a quer desposar,
9.sua cunhada se aproximará dele em presença dos anciães, tirar-lhe-á a sandália do pé e lhe cuspirá no rosto, dizendo: eis o que se faz ao homem que recusa levantar a casa de seu irmão!
10.E a família desse homem se chamará em Israel a família do descalçado."
Deuteronômio, 25 - Bíblia Católica Online
Leia mais em: http://www.bibliacatolica.com.br/biblia-ave-maria/deuteronomio/25/
5 de abril de 2017 às 20:57
(v) Tabanca Grande:
Mário, a tua "Miriam" dá... pano para mangas!... Levantas outra questão que é uma tragédia em África, a da infertilidade "feminina"...
A cultura africana, e nomeadamente subsariana, impõe aos casais uma prole numerosa. Os filhos são a principal riqueza de um homem. E o papel da mulher é a reprodução. A mulher infértil (... não há homens infertéis!) é vítima de discriminação, estigmatizados, marginalização social, rejeição. Sem um filho biológico, a mulher cai facilmente no círculo vicioso da pobreza e da marginalização... Na África subsariana, a proporção dos casais inférteis é muito alta (quase um terço dos indivíduos em idade fértil, segundo estima da OMS - Organização Mundial de Saúde.
Miriam, provavelmente, também sentia culpa e vergonha por não ter filhos... E desejo de os ter, mesmo que fosse um "filho do vento"... Mal sabia ela que os não podia ter...
Mário, é comovente o desfecho da história:
(...) Regresso junto ao pântano, fizeram conversa giro com aquele como fundo. O furriel esquecendo o carregamento e camaradas sentiu-se na obrigação de partilhar alguma coisa com aquela mulher-criança. O corpo de Miriam estremeceu, sentiu algo de novo que nunca tinha conhecido e a lavadeira chorou. As causas ninguém as saberá. No espírito e corpo Miriam nunca mais esqueceria aquele momento em que não houve cor, raça ou fêmea, mas simplesmente foi considerada mulher a corpo inteiro, a quem a sua própria crença e raça tinham castrado, retirando-lhe parte desse estatuto de um ser livre. E acreditou que teria sido o momento do seu sonho. Pelo contrário o militar sentiu-se safado e triste por utilizar os seus instintos brincando com os sentimentos de um ser humano.
Perdoa, mulher negra, mas o teu sonho não será realizado nem por branco safado nem por outro homem qualquer. Serás eternamente uma flor que não transformará a sua polinização em fruto. (...) (**)
A cultura africana, e nomeadamente subsariana, impõe aos casais uma prole numerosa. Os filhos são a principal riqueza de um homem. E o papel da mulher é a reprodução. A mulher infértil (... não há homens infertéis!) é vítima de discriminação, estigmatizados, marginalização social, rejeição. Sem um filho biológico, a mulher cai facilmente no círculo vicioso da pobreza e da marginalização... Na África subsariana, a proporção dos casais inférteis é muito alta (quase um terço dos indivíduos em idade fértil, segundo estima da OMS - Organização Mundial de Saúde.
Miriam, provavelmente, também sentia culpa e vergonha por não ter filhos... E desejo de os ter, mesmo que fosse um "filho do vento"... Mal sabia ela que os não podia ter...
Mário, é comovente o desfecho da história:
(...) Regresso junto ao pântano, fizeram conversa giro com aquele como fundo. O furriel esquecendo o carregamento e camaradas sentiu-se na obrigação de partilhar alguma coisa com aquela mulher-criança. O corpo de Miriam estremeceu, sentiu algo de novo que nunca tinha conhecido e a lavadeira chorou. As causas ninguém as saberá. No espírito e corpo Miriam nunca mais esqueceria aquele momento em que não houve cor, raça ou fêmea, mas simplesmente foi considerada mulher a corpo inteiro, a quem a sua própria crença e raça tinham castrado, retirando-lhe parte desse estatuto de um ser livre. E acreditou que teria sido o momento do seu sonho. Pelo contrário o militar sentiu-se safado e triste por utilizar os seus instintos brincando com os sentimentos de um ser humano.
Perdoa, mulher negra, mas o teu sonho não será realizado nem por branco safado nem por outro homem qualquer. Serás eternamente uma flor que não transformará a sua polinização em fruto. (...) (**)
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Notas do editor:
(*) Vd. poste de 5 de abril de 2017 > Guiné 61/74 - P17209: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XIX Parte: Cap X - Miriam quer fazer cumbersa giro com furiel Mamadu
(**) Último poste da série > 20 de março de 2017 > Guiné 61/74 - P17160: (De) Caras (69): Os camaradas Miguel e Giselda Pessoa, "o casal mais 'strelado' do mundo" (LG)... Nos EUA teriam feito um filme e ganho uns milhões; na Suécia, teriam feito um grande documentário televisivo com debate público... E no nosso querido Portugal ? (José Belo, Suécia/EUA)