A lenda de Alfa Moló - belíssimas ilustrações do mestre português José Ruy (Amadora, 1930), um dos maiores ilustradores e autores de banda desenhada (pp. 49, 50, 52 e 53)
1. Transcrição das págs. 50 a 54 do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau", com a devida autorização do autor (*)
J. Carlos M. Fortunato >
Lendas e contos da Guiné-Bissau
CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71, é o presidente da direcção da ONGD Ajuda Amiga
Capa do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017. - 102 p. : il. ; 24 cm. - ISBN 978-989-8661-68-5.
A lenda de Alfa Moló (pp. 50-54)
Um dia, um pobre mendigo chegou à tabanca (21) de Amedalai (22) e, pretendendo descansar, pediu hospitalidade em várias casas, mas todas elas a recusaram.
Até que chegou a uma pobre casa, onde uma mulher, apesar de o maridon não estar presente, o recebeu e lhe matou a fome.
Quando o marido, Moló Eigué, chegou, ficou contente pela hospitalidade dada pela sua mulher, pois fazia gosto e tinha orgulho em receber bem quem o visitasse.
Moló Eigué ao conversar com o mendigo, ficou admirado com a sua sabedoria, pois nunca tinha conhecido um mendigo tão sábio. Na verdade, o mendigo era um grande marabu (23) de nome Seiku Umarú (24), que viajava disfarçado de mendigo.
Depois de descansar, o mendigo decidiu seguir viagem, e Moló Eigué fez questão de o acompanhar.
Moló Eigué acompanhou o marabu de Amedalai até Coli (25) , e aí chegados, o marabu despediu-se, dizendo-lhe:
– Todas as terras que comigo percorreste, serão tuas, este será o teu Reino, pois é essa a vontade de Alá.
Moló Eigué ficou confuso e sem compreender as palavras do marabu. Como seria possível ele tornar-se Rei, sendo ele apenas um servo (26) de um rico fula, Samba Eigué, de quem já os seus pais também tinham sido servos…
Moló Eigué tinha em sua casa um carneiro do qual gostava muito, pois estava ensinado de tal maneira, que era como uma pessoa. Andava sempre atrás dele e até quando comia, o carneiro estava ao seu lado.
Um dia, ao voltar da caça, sentou-se à mesa para comer, e o carneiro não apareceu. Então ele perguntou à mulher:
– Onde está o meu carneiro?
A mulher respondeu-lhe:
– Eu queria que você comesse primeiro, para depois lhe contar. Os guerreiros mandingas vieram e levaram o seu carneiro para Cansalá. O Mansa Djanqui
Uali mandou levar o gado de todas as pessoas.
– O quê? – disse Moló Eigué, afastando a tigela com a comida.
Sem mais palavras montou no seu cavalo e cavalgou para Cansalá. Quando chegou à fortificação de Cansalá, Moló Eigué pediu aos guardas para falar com o Mansa.
– Está louco! Não pode falar com Mansa – disseram os guardas.
– Roubaram o meu carneiro, e eu quero o meu carneiro de volta! – exclamou Moló Eigué furioso.
– Cuidado, não fales mais assim, senão morres! O carneiro foi o almoço do Mansa. Vai caçar um porco do mato - responderam os guardas rindo.
– O Mansa vai pagar muito caro este carneiro – disse Moló Eigué e abandonou Cansalá.
Moló Eigué foi de tabanca em tabanca, apelando à revolta:
– Os mandingas estão a abusar, não nos respeitam, não param de aumentar os impostos, roubam as nossas coisas, tratam-nos como escravos, temos que nos revoltar.
Alguns responderam:
– Os mandingas são muito poderosos, nós não conseguimos vencê-los.
Moló Eigué a isto respondeu:
– Eu vou lutar! Se não me ajudarem a lutar, terão que fugir, porque quando as balas começarem a voar, então todos terão que fugir.
Muitos homens vieram juntar-se a Moló Eigué, pedindo-lhe para os guiar na luta contra o domínio mandinga, pois por todo o lado se iniciavam focos de revolta contra os abusos mandingas e era grande a vontade de substituir os reinos mandingas por reinos fulas. Além disso os fulas do Reino do Futa Djalon (27) tinham desencadeado uma jihad contra os reinos animistas, e era obrigação de todos os muçulmanos juntarem-se a essa jihad.
Moló Eigué era um devoto muçulmano, que possuía estudos corânicos, era
respeitado, e era também um famoso caçador, o que fazia dele o homem certo
para os conduzir nessa guerra. Assim ele tornou-se o líder de um grupo de 400
homens, na luta contra os mandingas animistas (28) do Império de Cabú.
As palavras do marabu, começavam agora a fazer sentido para Moló Eigué.
Moló Eigue pagou o seu resgate ao seu senhor, o nobre Samba Eigué, tornando-se um homem livre, e partiu para a guerra. E embora o seu nome fosse Moló Eigué Baldé, ficou para sempre conhecido como Alfa Moló.
A floresta onde Alfa Moló e muitos dos seus companheiros costumavam caçar, tornou-se a base para lançar a revolta, contra o Império animista de Cabú.
Após a derrota dos mandingas e a destruição da sua capital, Cansalá, o Reino do Firdu é alargado até Coli, com Alfa Moló como Rei, tal como o marabu tinha predito.
O nobre fula Samba Eigué, antigo senhor de Alfa Moló, não aceitou que este pudesse ser agora o Rei de Firdu, e furioso pelo poder que este tinha conquistado,
gritou:
– Um escravo não vai governar aqui!
Desencadeou-se assim uma guerra entre os fulas, mas Alfa Moló (29), com a ajuda do seu filho Mussá Moló e dos seus aliados, venceu os seus inimigos fulas, e tornou-se senhor incontestado do Reino de Firdu.
O Reino de Firdu tornou-se assim um Reino de fulas-pretos (30), um Reino em que os antigos escravos e servos são agora os novos senhores. (**)
Esta é uma das lendas de Alfa Moló.
Alfa Moló conseguiu um Reino, mas o seu filho Musá Moló teve que continuar a sua luta para manter o Reino do Firdu, pois continuaram a existir lutas internas entre os fulas.
Mussá Moló, para assegurar o seu poder e combater os seus inimigos, fez novas alianças. Uma das mais importantes foi a aliança com os franceses, mas isso não alterou o fim do Reino do Firdu, pois o fim dos Impérios Africanos estava próximo, e os novos senhores seriam em breve os países europeus.
__________
Notas do autor:
(21) Tabanca - é a designação usada para aldeia, a qual tem origem no
termo crioulo tabanka.
(22) Amedalai - situa-se no Firdu.
(23) Marabu - designação dada aos religiosos muçulmanos considerados santos ou sábios, nalguns textos é usado o termo mouro, que tem o mesmo significado. Os marabus tinham grande influência na socie dade fula e mandinga, eram homens letrados, muitas vezes considerados homens santos. Estes homens entendiam que o seu poder era uma emanação de Deus graças ao profeta Maomé, e que era sua obrigação levar a verdade divina aos povos pagãos, que consideram bárbaros ignorantes.
(24) Seku Umaru – um grande marabu também conhecido pelo nome El Hadgi Omar
(25) Coli - o Rio Coli faz fronteira a leste da Guiné-Bissau com a Guiné Conacri, perto de Piche.
(26) Escravos e servos - era costume fulas e mandingas possuírem escravos e servos, Artur Augusto da Silva, na pag. 29 de “Usos e Costumes Jurídicos dos Mandingas”, faz a diferenciação entre estes estatutos sociais:
“Escravos - constituem esta classe os prisioneiros de guerra, aqueles que eram comprados e os que se entregavam voluntária ou compulsivamente para pagamento de uma dívida, e ainda os seus filhos.
Servos - que podiam ser da gleba, quando eram dados em recompensa a algum guerreiro juntamente com a terra a que ficavam adstritos por si e seus filhos, ou servos de ofícios, adquiridos pelos nobres para trabalharem em qualquer oficio. Além da casta a que pertenciam devido ao ofício exercido, eram servos porque trabalhavam por conta de outrem e eram sua propriedade.”
(27) Futa Djalon - O Reino Futa Djalon ou Futa Jalon, foi fundado em 1725, e estava localizado a sul do Império de Cabú, na Guiné-Conacri (República da Guiné).
(28) Mandingas animistas - são igualmente chamados de soninquês.
(29) Alfa Môlo - segundo René Pélissier na “História da Guiné I”, na pag. 212 refere que foi “Rei do Firdu, tendo rejeitado praticamente a tutela do Futa-Djalon, Alfa Molo foi, de 1869 até poucos anos antes da sua morte (1881), um dos coveiros do Gabu e, por todos os meios,
procurou manter a sua independência em relação aos Fulas-Forros.”
30 Fula-preto - é a designação dada aos fulas com origens noutras etnias que foram dominadas pelos fulas, e que seguiram o modo de vida fula, na sua maior parte são oriundos das etnias mandingas e beafadas, e de casamentos destes com fulas forros, e futa-fulas.
Fulas-forros - é a designação dada aos fulas originários do antigo Forreá.
Segundo o livro de José Mendes Moreira “Os fulas do Gabú”, o nome teria origem no nome dado à terra conquistada aos beafadas,
Forriá, que significa na língua fula “terra da liberdade”.
Futa-fulas - é a designação dada aos fulas originários do Futa Djalon (reino situado na Guiné-Conacri), normalmente têm as têmporas da face marcada por uma dupla incisão vertical ( || ).
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10 de julho de 2019 >
Guiné 61/74 - P19966: Historiografia da presença portuguesa em África (166): Alfa Moló Baldé e o mito fundador do reino de Fuladu, em 1867 (Cherno Baldé) - II (e última) Parte