O adágio ficou, e acho que se tornou um dos 10 anti-mandamentos do bar de Sargentos de Bambadinca... (O primeiro devia ser, se bem me lembro: "O camelo só bebe de oito em oito dias, não sejas camelo"...). Afinal, aprendemos a "beber", e a beber com conta, peso e medida, nessa grande escola que foi a tropa e a guerra... em matérias de álcoois etílicos... (Claro que hoje o mandamento é outro, por razões de saúde: Não sejas burro, sê camelo, bebe muita água...).
Também não vou citar, por razões óbvias, o nome do meu querido camarada... até porque é meu amigo e vizinho... e faz parte do 'quadro de honra' da Tabanca Grande!... Mas por outro lado, se ele me ler, e como sei que ele tem sentido de humor, não me vai por certo levar a mal... Nem ele nem ninguém, incluindo os "meninos copos de leite" que também os havia, embora poucos, no meu tempo...
Pretextos não faltavam: o calor, a distância, as saudades, a depressão, a solidão, a camaradagem, a festa, a guerra, a morte... E meios para matar a sede e a dor também não faltavam, do uísque ao vinho do Porto, da "água de Lisboa" até ao "vinho de cana", mesmo intragável que este fosse para o palato mais avariado do "tuga"...
Uma ressalva: nunca se bebia sozinho, ninguém apanhava cardinas sozinho, era tudo ao molhe e fé em Deus... Uma garrafa era para se partilhar... Uns aguentavam-se melhor do que outros, os "velhinhos" tinham mais treino ou mais manhas do que os "periquitos"... Primeira regra de oiro: nunca faças misturas... Enfim, são tudo histórias para contar... aos bisnetos, se a gente lá chegar aos netos e depois aos bisnetos...
Não se sabe muito bem qual a origem da palavra, mas pode ser do castelhano... "Zurrapa" [s. f., quer dizer, segundo o dicionário de castelhano, "brizna o pequeña porción de materia que se halla en los líquidos y que poco a poco se va sentando y formando poso" (...): "el café está lleno de zurrapas"].
"Vinho a martelo", também se dizia na época... Estava na moda, quando regressei da Guiné, o "vinho a martelo", uma mistura hidroalcoólica que era depois "queimada" nas destilarias da região, às claras ou às escondidas...
Também se falava em "vinho batizado" com água do cais do Beato, no estuário do Tejo... Era ali que ficavam os grandes armazéns de conhecidos comerciantes de vinhos, a granel, que terão feito belas fortunas a mandar pipas de vinho marado para o preto e para o tuga...
Costuma-se, de resto, citar, com ou ou sem rigor histórico, um destes homens que fizeram fortuna no tempo em que beber vinho era dar de comer a um milhão de portugueses... Terá feito questão de lembrar, antes de morrer, aos herdeiros, filhos e netos, o segredo do sucesso da sua vida e dos seus negócios "Não se esqueçam, meus filhos, que das uvas também se faz vinho"... A história pode ser anedota, mas encerra uma verdade cruel...
2. Vinho de uvas, e bom... quem o bebeu na Guiné? Poucos, afinal, porque o bom era raro e caro... Mas temos aqui, no nosso blogue, alguns "expertos" nesta matéria... E que já aqui falaram há dias "de cátedra"sobre o tema (*)...
Vamos lá recuperar alguns dos seus comentários, seria um pena "perdê-los" (**).
(i) Virgílio Teixeira:
(...) O que eu me lembro eram todas as bebidas alcoólicas, de todo o tipo até às mais caras, nem preciso de dizer os nomes pois era de tudo. O tabaco a mesma coisa, desde o Português Suave até ao Gitane e outras. Bebidas só me lembro das seguintes que eram misturadas com o álcool. Águas Perrier, Vichy, ambas francesas, e Castelo Portuguesa, para misturar com o Whisky. Depois a Tónica da Schweppes para o Gin, normalmente Gordon's.
Outras bebidas, tipo Fanta também me lembro, Laranjinha ou Laranjina C, Cocas, eu não era cliente destas bebidas doces. A laranjada Convento não me parece ter visto. Quase nem me lembro de que marca era a cerveja, normal ou bazuca, Sagres ou Cristal? Água apenas raramente bebia, só mesmo misturada com whisky e muito gelo.
Vinhos verdes também tinha, mas mandava vir para mim, de Bissau ou da Metrópole. Com isto fazia inveja e inimizades com os oficiais superiores que bebiam aquela zurrapa das pipas de vinho branco feito a martelo e misturadas com água do Rio Geba. Ninguém se embebedava com aquilo, além disso era servido 'ao quente'.
As latas de que falei de frutas da África do Sul, isso havia muita lata, mas não sei o nome de nenhuma marca, lamento. Estas latas, também nós a utilizávamos, como 'tipo chuveiro'. Na casa de banho, havia um bidão de 500 litros, do gasóleo, depois enchia-se diariamente de água que vinha dos camiões, como não havia sistema de chuveiro, utilizávamos estas latas de frutas para deitar pela cabeça abaixo e assim tomava-se o banho. Muito mais tarde inventou-se um sistema de os bidões ficarem por cima do telhado, uns tubos, umas grelhas e uma torneira e lá tínhamos os chuveiros, um luxo. Só que no banho de fim de tarde era uma desilusão, a água saia muito quente, pois estava exposta ao sol, não servia. Então voltamos ao bidão no WC, para os banhos da tarde, e para os da manhã já servia o chuveiro, pois durante a noite não baixava mais do que 20º, talvez. Enfim, histórias. (...)
(ii) Tabanca Grande Luís Graça:
(...)" aquela zurrapa das pipas de vinho branco feito a martelo e misturadas com água do Rio Geba" (...). Dizes bem, Virgílio.
Foi na Guiné que eu, e muitos de nós, aprendemos a conhecer o "vinho verde branco"... Marcas como a Aveleda, as Três Marias, o Gatão, o Lagosta... eram muito procuradas. E eram caras, quase tanto como um garrafa de uísque novo... Aquela "trampa", gazeificada, fresca, sabia "pela vida"... E os otários pagavam 35 pesos por uma garrafa!... Um luxo!...
Ora, eu hoje suspeito que muito do vinho verde que a gente lá bebia era feito "a martelo"... Uma parte seria da minha região, a Estremadura Oeste, que tinha vinhos brancos, de baixo grau alcoólico... e que seguiam para o Porto, em camiões-cisterna, para depois serem misturados com os verdes, gaseificados e exportados para a Guiné, para a tropa, para o "tuga", para o "preto".
Hoje sou produtor de vinho verde, uma aventura que me aconteceu por via... uterina. E sei um pouco mais da história do vinho verde... Nos anos 60, pouco vinho branco se fazia, na região demaracada, a maior do país... talvez 10% no total... O forte era o "tinto", muito dele oriundo de "produtores diretos" como o Jaquet (lê-se "Jaquê"...), que resistiam a tudo o que eram doenças e não precisava de "tratamento"... Hoje é proibido, felizmente...
Fizeram-se grandes fortunas com os "engarrafados" e os "entalados", durante a "guerra do Ultramar".. Infelizmente é assim, em todas as guerras... O "vinho verde" (mas também as "conservas de peixe") foi o "volfrâmio" de alguns, poucos, que encheram os bolsos com a nossa fome e a nossa sede...
Nós, o Zé Soldado, fez a guerra, comeu e bebeu merda... Como sempre, em todas as guerras...
(iii) VirgílioTeixeira:
(..)" aquela zurrapa das pipas de vinho branco feito a martelo e misturadas com água do Rio Geba" (...)
Quero esclarecer que bebi muita daquela zurrapa, era vinho branco escuro, sem sabor, misturado com gelo, ou ao natural, com um pouco mais de álcool. O vinho verde, esse, mandava vir de vez em quando, e bebia mesmo na messe fazendo natural inveja, digo eu agora, mas não era essa a ideia.
Aquela zurrapa, normalmente, dava volta aos intestinos, e as diarreias e outros males intestinais eram devido também a esse vinho, isto para 'pessoas mais delicadas'!!!
Li que a malta da Intendência, brancos e pretos, nos barcos com os abastecimentos, furavam as pipas, bebiam metade e emborrachavam-se e depois para pôr ao nível juntavam água do rio, e por vezes álcool etílico e assim enganavam as tropas. E fizeram-se, como bem dizes grandes fortunas às custas disto, mas quem nesse tempo pensava nisso? Eu não.
(iv) Tabanca Grande Luís Graça:
Também aprendemos a beber o "Mateus Rosé"... Em dia de festa, lá se puxava pela nota e mandava-se vir um "Mateus Rosé"... Que chique!... O dinheiro escorria, sujo e feio, era o "patacão da guerra"...
(v) Virgilio Teixeira:
Havia nos vinhos verdes vários tipos de 1.ª classe:
Em primeiro o Casal Garcia - já o bebia antes da tropa, e ainda hoje está na moda - o Gatão, o Aveleda e o Lagosta, tudo dentro do mesmo nível.
Depois os 3 Marias, eram garrafas de 2.ª classe, eram de 1 litro, e não era de rolha, mas sim de cápsula. Vendia-se muito em Bissau, quando ia comer ao Zé d'Ámura os passarinhos fritos com molho picante, ele servia esse vinho e bebia-se uma garrafa num abrir e fechar de olhos. Os outros eram servidos nos melhores restaurantes, portanto mais caros, talvez fossem ao preço de uma garrafa de whisky da tropa.
O Mateus Rosé nunca bebi isso na Guiné, porque pensava que era doce. Aliás só comecei a beber cá depois da tropa, quando casei em 1970; lembro-me bem que nos dias 25 de cada mês - data do meu casamento e dia de receber o pré no meu emprego - ia a um restaurante na Povoa de Varzim - O Ricardo, hoje é mais um Tourigalo - comer uns camarões tigre fritos com piripiri, quando eles ainda eram relativamente baratos, e bebíamos uma garrafa de Mateus Rosé, e até fiz uma pequena coleção delas vazias. Coisas do passado.
(...) Transcrição de uma passagem do que escrevi no meu livro (inédito), acerca do vinho, copiei agora, e não está longe do que tinha dito atrás.
A mistura que faziam nas barcaças, era com água salgada, não era álcool etílico como disse, aliás se eles o tivessem bebiam mesmo álcool puro, penso eu!
O vinho gelado em garrafa e as invejas na messe de oficiais: Durante muito tempo eu mandava vir da metrópole caixas de vinho verde branco que era nessa altura o célebre Casal Garcia em garrafa ou então o Aveleda em botijas tipo garrafão redondas. E mais tarde vinha mesmo do comércio local de Bissau, caixas e caixas de vinho verde.
O que era servido na messe de oficiais era de pipa, e era rasca, muito fraco, era misturado com água salgada e fazia-se negócio com ele, mas ainda bebi muito quando não havia outro e sinto ainda hoje esse cheiro e sabor, pois normalmente não estava gelado nem fresco por falta de frio nos frigoríficos, e por isso as canecas com essa bebida que vinham para a mesa eram acrescentadas de blocos de gelo das arcas, mais fácil de conseguir e por isso era meio vinho e meio água.
Eu não gostava nada daquilo. Sinto ainda o sabor amargo desse líquido de cor castanha a que chamavam de vinho branco. As minhas garrafas eram metidas na arca frigorífica, e para mim vinha uma garrafa com vinho geladinho, às vezes até era mesmo congelado, e a pingar no copo, aquilo fazia uma inveja de morte a todos, mas em especial ao meu inimigo especial, o major Henriques, que no meio da refeição perguntava alto onde é que eu arranjava esse vinho, ao que eu respondia que o comprava com o meu dinheiro, mas ele insistia que isso custava muito, e eu lá lhe respondia que em vez de deixar a maior parte do meu vencimento em casa, ficava sim com ele todo na Guiné, e então preferia comer e beber bem em vez de ter dinheiro para quando regressasse, pois nem sequer sabia se regressava ou não. (...)
______________
Notas do editor:
(*) Vd. poste de 25 de junho de 2018 >
Guiné 61/74 - P18777: Fotos à procura de...uma legenda (106): "As sobras do rancho da tropa"... e as latas de conservas, "made in Portugal", que as crianças levavam à cabeça (Valdemar Queiroz / Museu de Portimão / Virgílio Teixeira)
(**) Último poste da série > 16 de maio de 2018 >
Guiné 61/74 - P18640: (Ex)citações (337): A propósito das deserções nas fileiras do PAIGC, há um provérbio africano que diz "Todos os cães podem ser bravos, mas são mais bravos dentro das suas moranças", o mesmo quer dizer, dentro dos seus "chãos" (Cherno Baldé, Bissau)