quarta-feira, 19 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6430: Contraponto (Alberto Branquinho) (9): Eutanásia?

1. Mensagem de Alberto Branquinho (ex-Alf Mil de Op Esp da CART 1689, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 16 de Maio de 2010:

Caro Carlos Vinhal
Agora que o Papa já regressou e portanto, não há o risco de referir um tema que, também, pode causar "rupturas" no tecido social português, junto vai o texto do CONTRAPONTO (9), que intitulei "EUTANÀSIA ?".

Um abraço e, como sempre se despede o meu Tio que por aí reside, SAÚDE e SORTE.
Alberto Branquinho


CONTRAPONTO (9)

EUTANÁSIA?


Foi no fim da época das chuvas.

O pelotão foi destacado para fazer “psico” em chão balanta, percorrendo duas ou três tabancas próximas da sede do Batalhão, acompanhando os enfermeiros – um furriel e dois cabos.

O pessoal estava instalado discretamente nas entradas da aldeia, acompanhado pelos respectivos furriéis e outros postados em posições de segurança (não fosse surgir alguma surpresa). O alferes circulava por entre as moranças acompanhado de um cabo e de um soldado. Seguiam de perto as movimentações dos enfermeiros.

Chegou-se um homem já idoso, solícito e nervoso, perguntando por “aquele qui na manda”. O alferes perguntou-lhe. “Q’é qui bô misste?"

O homem começou a arengar um palavreado nervoso e confuso, misturando crioulo talvez com balanta, sempre de olhos no chão.

O alferes só entendeu que falava da “mãe” e de “dor”. Passado algum tempo olhou o alferes com uns olhos tímidos e brilhantes e, fazendo repetidas vénias, apontou numa direcção e disse: “Bô bem… bem”. E começou a andar devagar, olhando para o alferes, que fez sinal ao soldado para o seguir e ao cabo para continuar a acompanhar os enfermeiros.

O homem colocou-se ao lado do alferes e dizia repetidas vezes: “Dói perna… dói… dói braço, dói… dói…” e batia com a palma da mão direita na perna direita, na perna esquerda, no outro braço, no pescoço, nos ombros, nas costas e terminava dizendo com expressão triste: “Cá pude… cá pude muri...”.

Chegaram junto de uma palhota isolada. O homem empurrou a porta e entrou. Fez o gesto convidando o alferes a entrar. Este disse para o soldado:

- Fica aqui. Só entras se eu chamar.

- Ó meu alferes, bocê bai lá p’ra dentro?

- Aguenta aí.

Quando entrou ouviu uns gemidos agudos e contínuos, mas nada conseguia ver na penumbra interior. O ambiente estava quente, abafado, húmido. Num repente os gemidos passaram a uns guinchos agudos, penetrantes. Viu, então, que o homem estava debruçado sobre um catre muito baixo, atrás da porta e que nele estava deitada uma velhota de idade muito avançada, que, ao mesmo tempo que emitia aqueles guinchos, tentava levantar os braços para ele. O soldado chegou à soleira:

- Ó meu alferes, que merda é essa?

- Nada. Vai lá para fora.

O alferes pôs a arma em bandoleira, aproximou-se, fixou a mulher, tentando ver melhor. Notou, então que, por baixo da cama, estavam espalhadas brasas ainda bem incandescentes. O homem postou-se entre o alferes e a mulher, que não parava de guinchar e, curvado e choroso, repetia, repetia: ”Dói… dói… dói… dói…”, ao mesmo tempo que, com a mão indicava os pés, os joelhos, braços, cotovelos, ombros e as costas. “Cá pude… cá pude…”.

O alferes chamou o soldado e disse-lhe para chamar o furriel enfermeiro.

- Mim parti mèzinha cum bô. Mèzinha bêm lá.”.

O homem calou-se, agarrou um braço da velhota e falou-lhe ao ouvido. A velhota parou de guinchar, embora soltasse gemidos baixos.

O alferes foi à porta esperar o furriel enfermeiro. Quando chegou explicou-lhe o que se passava. Entraram ambos. O alferes ficou afastado a observar o braseiro debaixo da cama, que se estendia da cabeça ate aos pés. O enfermeiro falou com o homem, tentando fazer-se entender e entregou-lhe uma pequena caixa.

Saíram ambos, entre muitos agradecimentos e vénias do homem.

- Que é que você lhe deu?

- Comprimidos LM. Que é que havia de ser?

O alferes pensou: “Aspirina? Reumatismo ou coisa assim… Pode ser que resulte.”

Nesse mesmo dia, quando contava ao médico o sucedido, alguém interrompeu: “Você sabe que os balantas praticam a eutanásia ?”

Não respondeu e ficou a pensar na conversa do homem e na atitude (desesperada?) da velhota.

Desejou voltar à aldeia e perguntar pelo filho e pela mãe, mas não teve oportunidade, porque, mais uma vez, a Companhia foi transferida para outra zona de intervenção.

Alberto Branquinho
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de19 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6187: Contraponto (Alberto Branquinho) (8): Desertores? - A tertúlia anda pouca activa, porquê?

5 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro Branquinho

Fracturante? Pois... mas é bom falar das coisas, discuti-las...

Não posso deixar de ler este teu artigo, com a imaginação de como a cena se teria passado, a angústia e desconfiança do soldado, o desespero de quem sofre e procura fim para o mesmo, etc., comparando, ou melhor, completando com o que o Cherno escreveu e verificando que ainda hoje estou a aprender coisas sobre a Guiné.

Abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Caro Alberto Branquinho

Se os Balantas praticavam ou não Eutanásia não sei… Na CCAÇ. 5, havia um militar de etnia Felupe, (praticamente tudo o chamava de Felupe) que vivia com a mulher e um ou dois filhos na Tabanca. Habitava com eles um irmão adolescente, que algumas vezes quando havia saídas para o mato fazia de carregador.
Algumas vezes eu lhes ouvi dizer, quer ao militar quer ao irmão, o seguinte:
Que quando na tribo deles, um idoso adoecesse, matavam-no (já não tenho certeza do método utilizado) e aproveitavam certas partes do corpo para se alimentarem (para eles era alimento sagrado, o seu ente querido sentia-se honrado com essa acção, que para nós é uma monstruosidade execrável). Mais, havia certas partes do organismo, que eram retiradas para fazer “Amuletos” (figas, talismãs ou patuá) de protecção, para eles eram rituais sagrados e fosse alguém interferir!... Eu ainda recordo, que esse militar tinha um “ronco”, que ele exibia orgulhosamente, (como sendo talismã de família) um objecto tipo porta-chaves, cujos acessórios eram, segundo ele dizia, orelhas humanas.

Um Abraço

José Corceiro

Anónimo disse...

De todas as etnias que povoam o mosaico etnico da Guine, os Felupes, guerreiros aguerridos sao por sinal, os unicos referenciados por um passado de pratica do canabalismo.

Nelson Herbert
USA

Anónimo disse...

De todas as etnias que povoam o mosaico etnico da Guine, os Felupes, guerreiros aguerridos sao por sinal, os unicos referenciados por um passado de pratica do canibalismo.

Nelson Herbert
USA

Anónimo disse...

De todas as etnias que povoam o mosaico etnico da Guine, os Felupes, guerreiros aguerridos sao por sinal, os unicos referenciados por um passado de pratica do canabalismo.

Nelson Herbert
USA