1. Mensagem de Alberto Branquinho (ex-Alf Mil de Op Esp da CART 1689, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 16 de Maio de 2010:
Caro Carlos Vinhal
Agora que o Papa já regressou e portanto, não há o risco de referir um tema que, também, pode causar "rupturas" no tecido social português, junto vai o texto do CONTRAPONTO (9), que intitulei "EUTANÀSIA ?".
Um abraço e, como sempre se despede o meu Tio que por aí reside, SAÚDE e SORTE.
Alberto Branquinho
CONTRAPONTO (9)
EUTANÁSIA?
Foi no fim da época das chuvas.
O pelotão foi destacado para fazer “psico” em chão balanta, percorrendo duas ou três tabancas próximas da sede do Batalhão, acompanhando os enfermeiros – um furriel e dois cabos.
O pessoal estava instalado discretamente nas entradas da aldeia, acompanhado pelos respectivos furriéis e outros postados em posições de segurança (não fosse surgir alguma surpresa). O alferes circulava por entre as moranças acompanhado de um cabo e de um soldado. Seguiam de perto as movimentações dos enfermeiros.
Chegou-se um homem já idoso, solícito e nervoso, perguntando por “aquele qui na manda”. O alferes perguntou-lhe. “Q’é qui bô misste?"
O homem começou a arengar um palavreado nervoso e confuso, misturando crioulo talvez com balanta, sempre de olhos no chão.
O alferes só entendeu que falava da “mãe” e de “dor”. Passado algum tempo olhou o alferes com uns olhos tímidos e brilhantes e, fazendo repetidas vénias, apontou numa direcção e disse: “Bô bem… bem”. E começou a andar devagar, olhando para o alferes, que fez sinal ao soldado para o seguir e ao cabo para continuar a acompanhar os enfermeiros.
O homem colocou-se ao lado do alferes e dizia repetidas vezes: “Dói perna… dói… dói braço, dói… dói…” e batia com a palma da mão direita na perna direita, na perna esquerda, no outro braço, no pescoço, nos ombros, nas costas e terminava dizendo com expressão triste: “Cá pude… cá pude muri...”.
Chegaram junto de uma palhota isolada. O homem empurrou a porta e entrou. Fez o gesto convidando o alferes a entrar. Este disse para o soldado:
- Fica aqui. Só entras se eu chamar.
- Ó meu alferes, bocê bai lá p’ra dentro?
- Aguenta aí.
Quando entrou ouviu uns gemidos agudos e contínuos, mas nada conseguia ver na penumbra interior. O ambiente estava quente, abafado, húmido. Num repente os gemidos passaram a uns guinchos agudos, penetrantes. Viu, então, que o homem estava debruçado sobre um catre muito baixo, atrás da porta e que nele estava deitada uma velhota de idade muito avançada, que, ao mesmo tempo que emitia aqueles guinchos, tentava levantar os braços para ele. O soldado chegou à soleira:
- Ó meu alferes, que merda é essa?
- Nada. Vai lá para fora.
O alferes pôs a arma em bandoleira, aproximou-se, fixou a mulher, tentando ver melhor. Notou, então que, por baixo da cama, estavam espalhadas brasas ainda bem incandescentes. O homem postou-se entre o alferes e a mulher, que não parava de guinchar e, curvado e choroso, repetia, repetia: ”Dói… dói… dói… dói…”, ao mesmo tempo que, com a mão indicava os pés, os joelhos, braços, cotovelos, ombros e as costas. “Cá pude… cá pude…”.
O alferes chamou o soldado e disse-lhe para chamar o furriel enfermeiro.
- Mim parti mèzinha cum bô. Mèzinha bêm lá.”.
O homem calou-se, agarrou um braço da velhota e falou-lhe ao ouvido. A velhota parou de guinchar, embora soltasse gemidos baixos.
O alferes foi à porta esperar o furriel enfermeiro. Quando chegou explicou-lhe o que se passava. Entraram ambos. O alferes ficou afastado a observar o braseiro debaixo da cama, que se estendia da cabeça ate aos pés. O enfermeiro falou com o homem, tentando fazer-se entender e entregou-lhe uma pequena caixa.
Saíram ambos, entre muitos agradecimentos e vénias do homem.
- Que é que você lhe deu?
- Comprimidos LM. Que é que havia de ser?
O alferes pensou: “Aspirina? Reumatismo ou coisa assim… Pode ser que resulte.”
Nesse mesmo dia, quando contava ao médico o sucedido, alguém interrompeu: “Você sabe que os balantas praticam a eutanásia ?”
Não respondeu e ficou a pensar na conversa do homem e na atitude (desesperada?) da velhota.
Desejou voltar à aldeia e perguntar pelo filho e pela mãe, mas não teve oportunidade, porque, mais uma vez, a Companhia foi transferida para outra zona de intervenção.
Alberto Branquinho
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de19 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6187: Contraponto (Alberto Branquinho) (8): Desertores? - A tertúlia anda pouca activa, porquê?
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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5 comentários:
Caro Branquinho
Fracturante? Pois... mas é bom falar das coisas, discuti-las...
Não posso deixar de ler este teu artigo, com a imaginação de como a cena se teria passado, a angústia e desconfiança do soldado, o desespero de quem sofre e procura fim para o mesmo, etc., comparando, ou melhor, completando com o que o Cherno escreveu e verificando que ainda hoje estou a aprender coisas sobre a Guiné.
Abraço
Hélder S.
Caro Alberto Branquinho
Se os Balantas praticavam ou não Eutanásia não sei… Na CCAÇ. 5, havia um militar de etnia Felupe, (praticamente tudo o chamava de Felupe) que vivia com a mulher e um ou dois filhos na Tabanca. Habitava com eles um irmão adolescente, que algumas vezes quando havia saídas para o mato fazia de carregador.
Algumas vezes eu lhes ouvi dizer, quer ao militar quer ao irmão, o seguinte:
Que quando na tribo deles, um idoso adoecesse, matavam-no (já não tenho certeza do método utilizado) e aproveitavam certas partes do corpo para se alimentarem (para eles era alimento sagrado, o seu ente querido sentia-se honrado com essa acção, que para nós é uma monstruosidade execrável). Mais, havia certas partes do organismo, que eram retiradas para fazer “Amuletos” (figas, talismãs ou patuá) de protecção, para eles eram rituais sagrados e fosse alguém interferir!... Eu ainda recordo, que esse militar tinha um “ronco”, que ele exibia orgulhosamente, (como sendo talismã de família) um objecto tipo porta-chaves, cujos acessórios eram, segundo ele dizia, orelhas humanas.
Um Abraço
José Corceiro
De todas as etnias que povoam o mosaico etnico da Guine, os Felupes, guerreiros aguerridos sao por sinal, os unicos referenciados por um passado de pratica do canabalismo.
Nelson Herbert
USA
De todas as etnias que povoam o mosaico etnico da Guine, os Felupes, guerreiros aguerridos sao por sinal, os unicos referenciados por um passado de pratica do canibalismo.
Nelson Herbert
USA
De todas as etnias que povoam o mosaico etnico da Guine, os Felupes, guerreiros aguerridos sao por sinal, os unicos referenciados por um passado de pratica do canabalismo.
Nelson Herbert
USA
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