terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7514: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (6): Dia 24 de Novembro de 2010

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Dezembro de 2010:

Malta,
Um dos aspectos mais empolgantes do nosso regresso à Guiné é captar a vida que nasceu em tabancas que a guerra forçou ao desaparecimento.
O Cuor do meu tempo tinha dois campos demarcados: nós em Missirá e Finete, eles em Cabuca, Madina e Belel, o resto era terra de ninguém. Voltar ao Cuor é sentir a vida palpitante em Madina de Biassa, Madina de Gambiel, Malandim, Gambaná, Canturé, Sansão, Maná, Mato de Cão, Chicri. E ir até aos territórios do então inimigo, ver como se vive e ter tempo para conversar em paz onde antes se passava com mensagens de morte e desolação.
Amanhã, vou até ao Xitole e trarei imagens que talvez tenham muita importância para quem ali viveu.

Um abraço do Mário

 
OPERAÇÃO TANGOMAU - ÁLBUM FOTOGRÁFICO (6)


DIA 24 DE NOVEMBRO DE 2010

Tendo sempre como balcão a bolanha de Ponta Nova e o arvoredo de Mato de Cão ao fundo, ao amanhecer o Tangomau tem sempre aquela vã pretensão de manter a escrita em dia. São amanheceres frescos, o sereno só levanta pelas 8 da manhã. Assim passou uma semana desde que o Tangomau desembarcou em Bissalanca com 40 quilos de bagagem de que já largou pelo menos metade. O pior já aconteceu: a notificação dos mortos, os seus soldados que se preparava para abraçar. Há muita gente dispersa, incomunicável, desde o Domingos Silva, passando pelo Jobo Baldé, os dois Ieró Djaló, Tomani Sanhá, Sila Sabali. Fodé assegura que procurou encontrar toda esta gente, em vão. Em compensação, apareceu Zé Finete, no mercado de Bambadinca há sempre antigos combatentes a apresentar-se, de diferentes proveniências. Dão pelo nome de Demba Embaló ou Demba Djau, ou Miguel Totala Baldé. O Tangomau sentiu-se mal quando foi abordado enquanto fazia compras para família do Bairro Joli por Aliu Baldé, soldado milícia de Finete, demorou a reconhecê-lo e depois abraçaram-se efusivamente. Tinha pedido ao Cherno Suane, seu guarda-costas, para visitar a mulher, Binta Seidi, no bairro de São Paulo. Alguém lhe deu um número de telefone, aqui em Bambadinca: 6672253. Só quando passar os olhos por todo o álbum fotográfico é que ele se aperceberá de imagens para que falta a identificação. Afinal, a idade sempre conta, mudamos muito em 40 anos. O que verdadeiramente não mudou foi esta panorâmica que se desfruta do Bairro Joli sobre os meandros do Geba estreito.


Tudo mudou em Cancumba, a tabanca é de boa dimensão, está espacialmente bem-disposta, dali se desfruta belas panorâmicas em todas as direcções. A fonte impunha-se como uma visita obrigatória, sem esta nascente do precioso liquido não teria havido o destacamento de Missirá. Aqui os guerrilheiros do PAIGC procuraram raptar e intimidar; deixaram mensagens, aqui se instalavam nas mais importantes flagelações. A recordação indefectível que o Tangomau guardara ao longo de 40 anos passava pelos bidões a rolar pela estrada, dois quilómetros para lá, dois quilómetros para cá. Outra recordação eram as armadilhas do alferes sapador Reis, duas delas deram pequenos desastres com mulheres. Aqui, vários soldados dispararam para as palmeiras, em dia de visita do capitão Figueira, parecia um ataque de costureirinhas. O comandante da CCS foi bem praxado… apanhou cá um susto!


Uma outra variante da fotografia que se tirou a Mama Mané, a mãe de Abudu Soncó. Será hoje a mulher grande de Missirá. Está muito surda mas não se esqueceu de fazer a reverência mandinga. Perguntou vezes sem conta quando voltava a ver o filho. É muito provável que não tenha percebido que a enfermidade do filho não permite, por ora, que se corra o risco de uma estadia na Guiné. Enquanto captava esta imagem, o Tangomau não esqueceu a casa por detrás, pertença da família do régulo, lembrava-se perfeitamente da sua existência, resistiu a todas as flagelações e tem conhecido acrescentos, como aliás é patente.


É o último vestígio militar palpável em Missirá. Aqui se hasteava a bandeira portuguesa. Três vezes este plinto se desmoronou e reconstruiu. Tinha as insígnias do Pel Caç Nat 52, uma caveira com tíbias de que nunca o Tangomau gostou. É visível que ainda aproveitaram algumas chapas zincadas que lá se deixaram. A parada desapareceu, era ampla, permitia jogos de futebol, estava cercada de abrigos e moranças. O que não mudou foi o local da mesquita, cresceu e continua virada para Meca. O Tangomau pediu aos homens grandes e ao padre para irem rezar. Foram, todos os seus mortos conheceram a exaltação e pediu-se a misericórdia de Deus


Era tal o temor que esta imagem se perdesse que foram repetidos os disparos. Diga-se em abono da verdade que se perderam imagens fundamentais: a tabanca de Ponta Varela, antes de se viajar até ao local dos ataques aos barcos; perderam-se imagens de Samba Juli, de Finete, do destacamento de Mato de Cão. Quando o Tangomau faz o deve e haver das imagens que trouxe e as que se perderam até se dá por muito contente. Aqui, vinha-se diariamente, haja ou não coincidência, o Tangomau chegou em Agosto de 1968, cresceu assombrosamente o número de comboios de barcos, aliás em 1969, até o porto do Xime ter ganho importância, o movimento de tropas e o frenesim de abastecimentos, o transporte de materiais de construção civil era mesmo diário. O pilar que vemos fazia parte das edificações da missão geo-hidrográfica concluída em 1952. Estes pilares destinavam-se ao estudo da tabela das marés, a imagem capta o Geba na enchente, não dá para perceber que havia pilastras e um caminho de madeira até lá. Era exactamente naquele ponto que se pedia boleia às embarcações, civis e militares.


Perderam-se imagens importantes de Mato de Cão, dois habitantes serviram de guias e indicaram os diferentes pontos onde ainda há vestígios do destacamento onde viveu o Mexia Alves. Este é o que resta de um abrigo. O destacamento estava bem posicionado no planalto de Mato de Cão, a vegetação fora desbastada, tinha a visibilidade do Castelo de Almeida. Agora tudo mudou, está pejado de cajueiros, as panorâmicas que dali se desfrutavam desapareceram. O Tangomau aproveitou para olhar em frente, para a bolanha de Samba Silate, devia lá ter ido, calcorreou aqueles caminhos para desfazer canoas usadas a partir de Madina, os guerrilheiros e civis atravessavam o Geba nesta região, passavam pelos Nhabijões, ali abasteciam e recolhiam informações.


Dauda Seidi ficou muito feliz e sorriu com os poucos dentes que ainda lhe restam quando o Tangomau lhe disse: “Dauda, o n.º 40”. Era diligente, hábil caçador e o Tangomau guardou sempre constrangimento de uma punição que lhe aplicou quando presenciou uma cena de violência doméstica. Foi um grande abraço, Dauda vai regressar a Cambessé e ficou radiante quando lhe dissemos que será amanhã a primeira paragem do carro de combate cheio de camaradas.


O Tangomau sempre conheceu o Zé Finete magrinho mas o brilho dos olhos está muito apagado. Ágil e cuidadoso, pediu para ser maqueiro e tão bem se desincumbiu da missão que lhe chamavam o enfermeiro de Finete. Estagiou na enfermaria de Bambadinca e nunca saia para as operações sem levar um estojo de primeiros socorros. Agarrou-se ao Tangomau com um choro manso, pediu-lhe para o trazer para Portugal, para o ajudar em tudo quanto pudesse. Acabaram por chorar os dois ao mesmo tempo. O Tangomau já não se continha quanto à quantidade e qualidade dos pedidos. Levara meses a preparar-se para esta viagem, nunca acreditou na alta voltagem destas descargas emocionais. O que se pode dizer a alguém que se dedicou incondicionalmente e viveu a nosso lado todos os perigos, sabendo que há poucas promessas de futuro, não há lembranças de gratidão da antiga potência em que o Zé Finete acreditou?


Só quem passou por Finete durante a guerra é que pode encontrar interesse nesta imagem. Aqui se chegava , vindo da bolanha de Finete. Ou daqui se partia, eram cerca de três quilómetros indispensáveis para os abastecimentos de tudo e para todos. Levava-se correio, trazia-se correio. Em momentos cruciais, levavam-se feridos às costas. Lá para Novembro de 1968, o burrinho foi de Missirá até junto ao Geba, transportava-se um Serifo Candé com uma perna que parecia gangrenada. Era uma daquelas doenças tropicais, na enfermaria de Bambadinca fizeram-lhe um emplastro, o Serifo foi metido na canoa e trazido às costas pelo tarrafo e metido no burrinho. Mas o burrinho, obstinado, recusou-se a andar. Houve que trazer o Serifo numa padiola que a meio da viagem se desfez. O Tangomau não esquece o episódio pois alombou com o matulão às costas, só o pôs no chão em Finete, onde ficou. São itinerários que marcam para toda a vida. Quem vê a imagem não lhe pode decifrar os conteúdos. Lorde Torcato inventou as foto-falantes: elas falam ainda mais quando vibram nos escaninhos da memória, ganham vida pois catapultam-nos para o que fomos, justificam no que nos transformarmos.


Outra imagem que exige um comentário, à partida é um caminho como muitos milhares de outros. Quando se chegava a Finete e se ia para Mato de Cão usava-se este caminho que levava a Malandim, daqui se partia para Gambaná, Chicri e Mato de Cão, tudo somado qualquer coisa como 5/6 km. Para o Tangomau, este caminho de Malandim ficou associado a emboscadas sangrentas, a travessias enlameadas pela bolanha, mas era um alívio nos quilómetros que se encurtava, não era necessário ir até perto de Canturé. Em Malandim aproveitou-se os materiais da destilaria e da casa do cabo-verdiano, o Sr. Spencer, que já tinha partido antes da eclosão da guerra.


A natureza tomou conta da casa do Sr. Spencer, em Malandim. Daqui saiu muita chapa, portas, janelas e ferragens para Missirá e Finete. Tínhamos aprendido a não deitar nada fora, o que parecia sem préstimo era literalmente recuperado para casas e abrigos. O Tangomau teve tantas saudades desse momento que não resistiu a captar o vestígio derradeiro da vida que desapareceu em Malandim.


Chegou a hora de mostrar o carro de combate, nele sempre cabe mais um. Ao volante vai o Calilo, segue-se Fodé que comprime o Tangomau, até as marcas do puxador ficam na sua barriga anafada. É uma viatura surpreendente. Quando o Tangomau sai, vem imediatamente Braima Fati ajudar o paizinho, o homem grande Fodé Dahaba. O que o leitor está neste momento a ver é Fodé a entrar para o carro de combate, vai começar a peregrinação ao regulado do Corubal. Seremos mais de 10, passaremos por Samba Juli, sempre a acenar. A estrada está em bom estado e em bom estado se conserva até Buba, valha-nos isto. E para que fique exarado em acta, será neste carro de combate literalmente cheio que o Tangomau irá regressar no dia 29 a Bissau, numa atmosfera de múltiplos odores, com estranhíssimos sacos, ouvindo muitos assentos do crioulo na região de Mansoa, até desembarcar, mais moído e morto do que vivo, junto à Pensão Central.

Fotos: © Mário Beja Santos (2010). Direitos reservados.
__________

Nota do Editor

Vd. último poste da série de 20 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7479: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (5): Dia 23 de Novembro de 2010

5 comentários:

Joaquim Mexia Alves disse...

Caro Mário

Já dei voltas e mais voltas à fotografia, (só não fiz o pino porque a idade e o peso não mo aconselham), mas não consigo identificar o abrigo em questão.

Se ficar do lado contrário ao Geba, junto à mata, seria o abrigo onde eu dormia durante essa férias.

Se for para o lado de Missirá, será o abrigo maior de todos que até tinha uma espécie de torreão de sentinela.

Se for para o lado do Enxalé tratar-se-á de um dos abrigos do pessoal dos morteiros.

Se for a meio do destacamento, mais coisa menos coisa, podem ser os restos de uma sala de convívio que eu estava a fazer ams nunca acabei.

Há fotografias de todos esses abrigos no meu album que já afcultei à Tabanca Grande e julgo já teram sido publicadas.

E o Tomango Baldé, não o encontras?

Era levado da breca!

Um abraço camarigo e boa viagem.

Torcato Mendonca disse...

Oh Mexia Alves o nosso Camarigo está com o Norte desmagnetizado.
Eu ainda lhe disse: leva uma bússola, mini claro. Até levou Cartas e boas.
Ele v~e o pôr do sol a nascente ou eu estou a ver as fotos e o palavreado ao espelho? Erro meu, má fortuna...
mas que as fotos são lindas e aquela gente fabulosa não restam dúvidas. Além da óptima reportagem.
AB T

Anónimo disse...

Caro Torcato,

Um grande abraço por esta tua tirada de fino humor:

"Ele vê o pôr do Sol a nascente ou eu estou a ver as fotos e o palavreado ao espelho? Erro meu, má fortuna..."


Carlos Cordeiro

Hélder Valério disse...

Caro 'camarigo' Beja Santos

Parece que já se lamentou que a tua reportagem não tenha comentários significativos.

Por mim, leio e vejo tudo com atenção e imagino como te deve ter sido difícil sufocar tanta angústia, tanta impotência.

As imagens mostram paisagens, locais, pessoas. Aprecio-as mas não as reconheço, não estive aí.

Gostei de saber, pela tua reportagem, que há locais outrora abandonados que agora florescem. Compensam os que se degradaram mais? Parece no interior, apesar de outro tipo de dificuldades, as comunidades acabam por se desenvolver.

Vou continuar a acompanhar a reportagem.

Abraços
Hélder S.

Mário Beja Santos disse...

Meu caro Mexia Alves, Graças ao guia, percorremos a tabanca de Mato de Cão a pente fino. Encontrámos este vestígio de abrigo situado, usando a tua linguagem, para o lado do Enxalé. Na Operação Tangomau haverá outra imagem. Do que me informaram, com a libertação houve ordens para eliminar todas as marcas da existência do destacamento. Senti-me desorientado lá em cima, na medida em que o planalto perdeu todas as panorâmicas com as densas culturas de cajueiros, acabou-se o desfrute de olhar os palmares em todas as direcções. Não sou do tempo do Tomango Baldé. Cheguei em 1968, nessa altura já havia rotação, transferências de acordo com as conveniências dos soldados, alguns sinistros, etc. Conheci todos os soldados pelos nomes. O Tomango seguramente que veio depois de 1970. Só conversando com Sadjo Seidi, isso só quando eu voltar à Guiné. E agora vou escrever sobre o Enxalé e Madina.