Caros camaradas
Eu conheci a minha mulher depois do regresso, portanto a minha vivência até a conhecer foi povoada por mulheres com que convivi na adolescência, que ajudaram no período da minha comissão e que não posso de maneira alguma esquecer.
Mostrar-me grato, falar delas é uma prova do respeito e do carinho que ainda hoje guardo por todas.
Um abraço
Juvenal Amado
A GUERRA E AS NOSSAS MADRINHAS
Nas noites deitado com o suor a empapar-me o lençol, o silêncio era só quebrado pelo roncar do gerador. Revejo mentalmente a minha família, os amigos os e lugares.
Acabei de ouvir uma cassete com a sua voz e músicas que me dedicou. Falava lentamente, arredondando e procurando as palavras correctas. Não poucas vezes parava a meio de uma frase, misturava o inglês com português, o que resultava como se de música para os meus ouvidos se tratasse. Black Magic Woman do Santana, uma das músicas que ela tinha para mim gravado, ainda me faz recuar no tempo.
A voz dela que tinha perdido as inflexões próprias da nossa língua.
Quando saiu de Portugal, rapidamente se afastou dos locais onde os imigrantes se concentravam e mantinham embora num pais distante, os costumes da sua terra de origem. Ao contrário dela, muitos dos que foram em busca de melhor vida, nunca se integraram, não aprenderam a falar a língua, nem saíram dos bairros onde se sentiam protegidos de perigos imaginários. Assim muitos voltaram mais tarde às suas terras, como se de cá nunca tivessem saído, a não ser economicamente mais fortes, roupas mais ao menos espampanantes, com reformas mais robustas e duas ou três palavras, que repetiam por tudo e por nada, num francês ou inglês de qualidade duvidosa.
Dentro do abrigo > Da esquerda para a direita: Aljustrel, Ermesinde, eu e o Caramba
Há dias encontrei no FaceBook uma amiga e ex-vizinha que imigrou e não vejo nem falo há 43 ou 44 anos. Pedi-lhe amizade ao reconhecê-la numa foto e foi com notória alegria que ela me respondeu poucas horas depois. Tem hoje um nome estranho devido ao casamento, efeito da plena integração na vida e cultura do país que a acolheu desde os 15 anos. Os filhos não sabem falar a língua de Camões, nunca cá vieram e possivelmente nunca virão conhecer a terra do seus avós, uma vez que toda a cadeia familiar se quebrou há muitos anos. Não sabem que ao não conhecerem a nossa língua, dificilmente conhecerão o nosso sentir, os nossos sonhos, o nosso passado e dificilmente farão parte do nosso futuro como nação.
Ainda guardo as fotos que ela e a irmã tiraram em Saint-Tropez e me enviaram para a Guiné.
Ali estou de olhos pregados no tecto do abrigo, com o calor que as grossas paredes absorveram durante o dia, agora expandem para o interior, e com a saudade a tomar de assalto os meus sentidos, vou ouvindo a música.
Naquela atmosfera parada o suor escorre das axilas e das têmporas por trás da orelhas e não há nada que possa fazer para o evitar. Opto por nem mexer um músculo.
Ouvi a cassete tanta vez, que já havia quem com humor à mistura, dissesse sonoramente para todos ouvirem, «outra vez??????» A «privacidade» da caserna tem destas coisas.
Era quase dolorosa a memória dos bailes a gira-discos ou do Ginásio, nos contactos saborosos dos nossos corpos, a cumplicidade do nosso par, o roçar de uma perna, de um dos seios ou rosto, bem como a sua suave respiração junto ao nosso pescoço. As promessas que ficavam no ar, praticamente difíceis de concretizar nas normas da época, eram mesma assim de sabor intenso.
Eram momentos mágicos.
Hoje esses momentos ocupam um lugar na memória. Com algumas escrevi-me durante a minha comissão, outras nunca mais as vi, seguiram o seu caminho, com mais ou menos sobressaltos, outras nunca as conheci fisicamente. Quando nos encontramos, não passamos do cumprimento mais ao menos de circunstância.
O tempo se encarregou de limar e pôr no lugar, a nossa juventude que tão depressa passou.
Juvenal em Galomaro
Guardo a memória daqueles dias como se tratassem de jóias muito raras, consciente de que a vida é um rio que corre sem parar, que se divide ou não, mas vai sempre desaguar no Mar. Vive-se como se não houvesse um fim, mas pouco a pouco a memória torna-se como uma vidraça de janela, que fica no Inverno embaciada pela condensação. Por vezes com a mão fazemos desenhos no embaciado, como quando éramos crianças. Logramos assim ver mais claro para o exterior de nós mesmos.
O passado é única certeza, o futuro será sempre uma incógnita, e à medida que vamos esquecendo, só fica o que deixamos escrito como testemunho das pequenas coisas da nossa vida.
A importância disto só ficará provada quando alguém se rever nos nossos anseios, desejos e vivências.
Há dias sentado numa mesa, tomei café com ela. Voltei a ouvir a voz da gravação que em Galomaro me suavizou aqueles dias duros.
Falou pausadamente, procurou palavras que não usa normalmente, navegou titubeante dentro da nossa gramática, pediu-me ajuda quando não se conseguia expressar, mas era a mesma voz doce que me enviou a cassete.
Bebi cada palavra como fosse água da fonte da juventude.
Não a via há 26 anos, possivelmente voltarei a estar com ela no próximo o ano, ou talvez não. Quem sabe? Por agora vou limitar-me a ouvir Santana no seu Black Magic Woman.
Juvenal Amado
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 2 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8727: Blogpoesia (159): O Mar que nos levou (Juvenal Amado)
Vd. último poste da série de 21 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8310: As Nossas Madrinhas de Guerra (5): Avé-Maria do Soldado (Manuel Sousa)
13 comentários:
Bonito e sentido texto.
Parabéns, Juvenal.
És serás sempre um homem apaixonado
por ideais e pela idealização da mulher. E pela mulher real, quente e acariciante.
Contigo também "se transforma o
o amador na cousa amada/ por virtude de muito imaginar", como escreveu Luís de Camões.
Forte abraço,
António Graça de Abreu
Muito obrigado, Juvenal, pelos momentos de prazer que este teu texto me proporcionou ao avivar-me a memória, envolta em doce saudade e alguma melancolia ...
Abraço
Camarigo Juvenal
Obrigado pelo teu texto a fazer-nos reviver as nossas "madrinhas de guerra", ou simples amigas, que nos povoavam os sonhos, aquietavam as nossas ansiedades e avivavam os nossos sentimentos.
Um abraço
Luís Dias
O Juvenal é um dos camaradas, que aqui escrevem, que me dá sempre particular gosto em ler... Para além do seu talento e sensibilidade, é uma pessoa de trato afável e tem aquela sabedoria que a maturidade dá a cada homem e a cada mulher que sabem envelhecer com a tal inteligência emocional que falta, muitas vezes, aos mais jovens...
Falando-se de madrinhas de guerra, não quero deixar de citar aqui as palavras, bonitas e justas, que escreveu o Armor Pires Mota, à laia de dedicatória do seu livro Tarrafo (1965), precisamente à "sua" madrinha de guerra, "que sempre teve uma palavra de conforto para cada angústia, uma frase de humor para cada dia de tédio e uma rosa para cada ferida"...
E já que o Juvenal evocou um dos ícones musicais da sua/nossa geração, o cantor, compositor guitarrista mexicano Carlos Santos (n. 1947, projetado mundialmente com o Festival do Woodstock, de 1969), quero deixar aqui uma sugestão de viagem ao "passado" das suas/nossas memórias...
Ouçam o vídeo no You Tube dessa "mágica" criação que é o "Got a magic black woman" (single de 1971)... e fiquem com a letra, banalíssima, desta canção de amor, tão ao estilo "ié-ié", mas que tinha, para nós, o sortilégio de ser cantada em inglês, e ouvida, tal como outras, então em voga, na solidão dos nossos Bu...rakos, de Bambadinca a Galomaro, de Piche a Bedanda... (Letra da autoria de Peter Green, o seu a seu dono, como mandam as boas regras do nosso blogue)...
http://www.youtube.com/watch?v=oTqsln_RVCg&feature=colike
Got a black magic woman
I got a black magic woman,
Yes, I got a black magic woman,
Got me so blind I can't see,
But she's a black magic woman
And she's tryin' to make a devil out of me.
Don't turn your back on me, baby,
Don't turn your back on me, baby,
Yes, don't turn your back on me, baby.
You're messin' around with your tricks,
Don't turn your back on me, baby,
'Cause you might just break up my magic stick.
Break:
You got your spell on me, baby,
You got your spell on me, baby,
Yes, you got your spell on me, baby,
You're turning my heart into stone,
I need you so bad, magic woman, I can't leave you alone.
Yes, I need you so bad,
Well, I need you, darling,
Yeah, I need you, darling,
Yes, I want you to love me,
I want you to love me,
Whoa, I want you to love me, ah
Whoh, yeah
Oh, whoa, baby,
Yes, I need your love,
Oh, I need your love so bad,
I want you to love me.
http://www.lyricsfreak.com/f/fleetwood+mac/black+magic+woman_20054171.html
... Letra banalíssima ? Bem... como (quase) todas as canções de amor... Mas é necessário contextualizar... Afinal estávamos na época do "black power", do "black is beautiful", do "erotismo negro", do feminismo e da integração racial... LG
Caro Luís Graça
Apenas um esclarecimento musical. A canção "Black Magic Woman", um inegável êxito de 1970 da então banda Santana (na qual brilhava o excepcional guitarrista de origem mexicana Carlos Santana), é uma canção original da banda de blues inglesa Fleetwood Mac, saída como single em 1968, escrita pelo guitarrista branco já falecido Peter Green. Esta banda alcançou nos anos 60 muitos sucessos com músicas como: "I need your love so bad", "Man of the world", "Green manalishi" e "Oh well". Depois da saída deste fenomenal guitarrista, que trocou a carreira por um retiro espiritual, a banda iria enveredar por uma carreira mais pop e iria alcançar uma carreira internacional tendo como vocalista Stevie Nicks.
Obrigado, Luís, pelas tuas achegas... A minha culpa musical pop não chega a tanto... Mas, concordo, é bom saber quais eram as nossas músicas e os nossos artistas preferidos nos anos 60/70... Também eles ajudam a fazer o retrato da nossa geração... Eu era mais francófono, nessa altura, e adorava a canção francesa (mais a de contestação do que a de amor)... Mas também era capaz de ficar "deprimido", com os meus verdes 20 anos, ao ouvir os Procol Harum... "A Whiter shade of pale" ? ... Lembras-te ? Hoje sorrio... Aqui vai... Luís Graça
A Whiter Shade of Pale...
We skipped a light fandango,
Turned cartwheels 'cross the floor.
I was feeling kind of seasick,
But the crowd called out for more.
The room was humming harder,
As the ceiling flew away.
When we called out for another drink,
The waiter brought a tray.
And so it was that later,
As the miller told his tale,
That her face at first just ghostly,
Turned a whiter shade of pale.
She said there is no reason,
And the truth is plain to see
That I wandered through my playing cards,
And would not let her be
One of sixteen vestal virgins
Who were leaving for the coast.
And although my eyes were open,
They might just as well have been closed.
And so it was later,
As the miller told his tale,
That her face at first just ghostly,
Turned a whiter shade of pale.
http://www.youtube.com/watch?v=_uU-X0rUZOo
.... Queria dizer "cultura musical pop", e não "culpa"... Aliás, é uma palavra que não gosto de usar... Culpa... Peço (des)culpa. LG
Camarigo Juvenal,
Este é o segundo comentário que faço,uma vez que o anterior,inexplicavelmente, decidiu fazer pirraça e na hora de aparecer editado,fugiu algures para o éter...
Consequências da minha nabice informática ?
Mais que provável,apesar de por vezes me apetecer dizer que há censura na blogoesfera...
Pois este teu texto,teve o condão de fazer "acordar" algo que estava hibernando,faz tempo, nas gavetas da memória...
O toque de alerta foi Carlos Santana, que quando ouvia me fazia sonhar vir a ser um executante quase mago como era o seu estatuto de instrumentista...
Na minha juventude,certamente como muitos milhares,andei "armado" em guitarrista em conjuntos (de pseudo musica...) aqui pela terra.
Um dia acordei,e entendi que me devia penitenciar pelo mal que fiz aos ouvidos de quem me via e ouvia "arrancar" na EKO vermelha e preta, uns ruídos que pretensamente,na altura,poderiam ser confundidos com música.
Decidi "ir tocar para outra frequesia",beneficiando assim quem tivera a infelicidade de assistir (sem arremessar objectos...) àquilo que pretensamente achávamos ser arte( eu e os outros iludidos músicos,obviamente...)
Mas dizia eu que nessa altura,ouvia Santana,Rolling Stones,Beatles,Credence Clearwater Revival,Hollies,Hermans Hermits, Shadows, e tantos,tantos outros...
"Embebedava-me" (de tanto as ouvir) com as canções do Zeca, Adriano,Cília,e outros baladeiros da contestação epocal,para além de um que tinha uma particularidade que era o facto de falar "axim" como em "bijeu" (essa bela Viseu que me fascina).
Chamava-se josé Almada e tinha um single gravado que nunca me cansava de ouvir aquando da minha presença no Cantanhez.
Um dos títulos era "Mendigos"... É que o nosso ar miserável,de barba por fazer,roupas já rotas,e esfaimados, poderia perfeitamente ter servido para capa do disco.
A cassete ( que de tanto uso envelhecera)fora-me enviada pela namorada,hoje mulher,e veio a acompanhar o calendário que fizera em papel quadriculado,que enviava em cada carta,que era devolvido na resposta e onde riscava os dias entretanto passados.
O prazer de fazer essas cruzes,(muitas de uma vez)riscando os dias dava-me alento para os que faltavam riscar...
Obrigado por teres feito acordar este momento.
abraço
manuelmaia
Benditas madrinhas de guerra
Para aqueles que as tiveram
Eu nunca tive nenhuma
Bem..não quis ter..é que naquela altura vivia uma paixão "assolapada" e platónica... e correspondia-me com ela...sem ela saber que estava apaixonado ..claro.
Não digo mais porque ficavam a saber tanto como eu.
Funcionava como madrinha de guerra.
A minha solidariedade para com aqueles que nunca tiveram.. uma.
Não levem a mal, mas detestava "Santana"...não sei porquê..feitios musicais.
"Ganda" cambada de nostálgicos..do que se haviam de lembrar..enfiados no abrigo..calor ..suor e tal.. e a ouvir músicas "lamechas".
Quando passei por esses instantes de repouso, os "gajos" do paigc.. quase sempre me faziam voltar rapidamente à realidade involvente.
C.Martins
Caro C. Martins
Mais um aparte agora em defesa de Carlos Santana.Há, evidentemente, algumas músicas deste virtuoso da guitarra que poderás considerar lamechas,mas são de elevada qualidade musical. Naqueles locais, não obstante o PAIGC, houve tempo para ouvir alguma música. Consegui levar um gravador de 4 pistas, com diversas bobines com álbuns completos de Jethro Tull, Yes, Moody Blues, Santana, Bob Dylan e tantos outros, mas também cassetes com música de Zeca Afonso (tenho praticamente todos os seus álbuns), Sérgio Godinho, Luís Cilia, Adriano Correia de Oliveira. As lamechas serão: "Samba pa ti" e posteriormente "Europa (Earth´s cry, heaven´s Smile)", mas a guitarra do Carlos é inigualável nestes temas. É considerado um dos melhores guitarristas mundiais e eu coloco-o no 8º da minha lista pessoal. Pronto defendi-o, mas há melhores.
Um abraço
Luís Dias
Caro Juvenal,
O teu texto é um hino às nossas madrinhas de guerra. Sem elas, a nossa passagem pela Guiné teria sido bem diferente.
Elas foram os ombros onde muitos de nós confiamos e confidenciamos. Nada pediram em troca, muitas não as conhecemos e no fim nem tiveram a oportunidade de receber um agradecimento.
Mas o teu texto também me fez pensar no presente.
Aqui, para quem não sabe, fica um segredinho. A minha madrinha de guerra aceitou o meu convite, quando lhe pedi para a levar ao altar da igreja.
O seu amor foi, bem podem acreditar, o único estilhaço que me partiu o coração.
Um abraço amigo,
José Câmara
Caro Luís Graça
A tua lembrança de um dos temas mais queridos dos anos (1967)-"A whiter shade of pale", dos ingleses Procol Harum", é muito interessante. Esta música tornou-se marcante pela introdução e utilização pelo teclista Mathew Fisher do órgão Hammond M-102, que na altura era uma novidade e que dá aquela sonoridade fantástica na entrada e na melodia. Gary Brooker (pianista) e Keith Reid (letrista) foram considerados os seus autores, no entanto o teclista Mathew interpôs uma acção judicial para garantir os seus direitos, provando também ter sido um dos autores. Esta banda foi tendo outros sucessos ao longo dos anos, mas sem atingir a notoriedade internacional da "whiter...". A banda deu um concerto em Cascais, em 1972 ou 73, e já nos anos 90 esteve no casino de Espinho.
Um abraço
Luís Dias
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