quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Guiné 63/74 - P8838: Filhos do vento (7): O infanticício não era uma prática tão generalizada quanto se pensa... O caso do Balanta-Tuga, de Bedanda (Cherno Baldé)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Visita ao Cantanhez, no âmbito do Simpósio Internacional de Guiledje (Bissau, 1-7 de Março de 2008. Saltinho, na Estrada Bissau - Mansoa - Bambadinca-Saltinho - Quebo - Gandembel - Guileje.  Na altura, escrevi: " Uma imagem pouco usual no meu tempo [, 1969/71]: uma mulher [ fula] com dois gémeos... Não sei qual é hoje a prevalência do infanticídio"... Acrescento aqui e agora:  é um tema delicado, que atravessa todas as sociedades humanas (da chinesa de hoje à portuguesa dos Séc. XVIII e XIX)... Sempre ouvi falar, aos antropólogos coloniais (como o António Carreira,  no "infanticídio ritual"... Mas confesso que sei muito pouco do tema... Talvez o Cherno Baldé queira falar-nos, com a delicadeza, a inteligência, a cultura e a sabedoria de homem grande que são  atributos seus, sobre esta questão, que ainda hoje parece ser um problema na sua (e nossa, adotiva) terra... O Cherno ou o meu amigo do ISCTE, o prof doutor Eduardo Costa Dias, antropólogo de profissão e membro da nossa Tabanca Grande... (LG).


Foto: © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados.


1. Mensagem, de 26 do corrente,  do nosso amigo  Cherno Baldé, a partir de comentário ao poste P8818 (*)
 
Caros amigos,
 
Depois do meu primeiro comentário (**), já não queria voltar a falar sobre este tema de "pais cabeças de vento", se não tivesse acontecido uma coisa que quero partilhar com os demais para mostrar que, se a teoria do infanticídio podia ser real em certos lugares e em certas circunstâncias, não é menos verdade que não era uma prática generalizada, longe disso.
 
Ontem, ao fim da tarde, estava eu sentado em casa de um colega e vizinho,  quando apareceu um velho acompanhado de um jovem mulato, falando perfeitamente a língua balanta. Tratava-se de um primo do meu colega, filho da tia e de um soldado metropolitano [que esteve] na localidade de Bedanda entre 1972/74. 

Quando a criança nasceu, temendo que o pai quisesse levar o seu filho (os africanos em geral pensam assim), a família resolveu esconder a mãe e o filho, transferindo-os para a aldeia de Banta,  na zona de Empada. Assim, este jovem nunca soube nada do seu pai e na tabanca ganhou a alcunha de Balanta-Tuga, nome que lhe causou enormes problemas na sua juventude. Provavelmente, o pai nunca soube da sua existência. 

Não obstante, houve muitos casos em que os pais "cabeças de vento" simplesmente abandonaram os filhos que tiveram nos seus braços e viram crescer.

Falar de responsabilidades não se pode considerar, de modo algum, uma perversão. Se assim for, então, já não valera a pena falar de justiça e de humanismo que foi, desde o período da Renascença na Europa e no mundo, a luz que ilumina o caminho da nossa humanidade.  Eu sei que,  aos portugueses e aos europeus em geral, causa um grande calafrio sempre que se levanta a questão de assumir responsabilidades históricas. ...Serão problemas da consciência?...
 
Cherno Baldé 

[ Revisão / fixação de texto , em conformidade com a Novo Acordo Ortográfico: L.G.]

_____________

Notas do editor:

 (*) Vd. último poste da série > 28 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8832: Filhos do vento (6): Os que ficaram por Canjadude (José Corceiro)


(**) Vd. poste de 20 de Setembro de 2011 >
Guiné 63/74 - P8799: (In)citações (36): Filhos do vento, ontem, brancu mpelélé, hoje (Cherno Baldé)

7 comentários:

Luís Graça disse...

Sobre o infanticídio e a sua moldura penal, no direito guineense, vd. uma interessante comunicação do Prof Augusto Siva Dias (FD/UL), com data de 1996 (*):

Problemas do direito penal numa sociedade multicultural: o chamado infanticídio ritual na Guiné-Bissau

... Começa um provérbio popular guineense, que tem uma grande eficácia simbólica: "Bentana mora ku lagartu, si falau kuma lagartu ka ten uju, fia".

O autor acrescenta em nota de página de página:

Provérbio crioulo que exprime a força da tradição e da experiência da vida na comunidade guineense. Em língua portuguesa significa: "a carpa coabita com o
crocodilo; se ela te afirma que o crocodilo não tem olhos, acredita".

Veja-se a tradução e
explicação deste provérbio em PINTO BULL, O crioulo da Guiné-Bissau: Filosofia e
sabedoria, ed. Diálogo, Lisboa-Bissau, 1989, ps. 148 e 168.
__________________________

(*) Disponível em:

http://www.fd.ul.pt/Portals/0/Docs/Institutos/ICJ/LusCommune/DiasAugusto2.pdf

Fernando Gouveia disse...

Sobre este tema a única coisa que quero dizer é que nos dois anos que estive em Bafata muito deambulei por toda a zona e nunca vi uma única criança mulata...

Fernando Gouveia

Luís Graça disse...

Ouçam a explçicação de Augusto Silva Dias:

O infanticídio "ritual" [pratica-se ou praticava-se sobretudo] nas
etnias Mancanha, Manjaco e Pepel.

(...) As três etnias referidas têm uma matriz cultural comum.
Possuem um dialecto semelhante e uma religião animista, que marca
as suas representações colectivas e influencia grande número de
práticas e de rituais dos seus membros. Quando numa dessas etnias
alguém nasce com uma deformação física marcante (cabeça
desproporcional, amolecimento ósseo, olhar oscilante, etc.) ou com um comportamento estranho (emite sons estranhos, desaparece
durante a noite, apenas com um mês de vida é encontrado debaixo da
cama procurando ovos etc.) as pessoas, sobretudo pertencentes à
família da mãe, podem duvidar de que se trate verdadeiramente de
uma pessoa. A primeira ideia que imediatamente se retém é a de que,
para adquirir o estatuto de pessoa, não basta naquelas comunidades alguém ter nascido vivo de um ventre humano. O ser que nasce com características humanas pode tratar-se de um mau espírito, de um "ucó", que se apoderou da mãe e que, caso não seja afastado, poderá causar-lhe a morte ou continuar a afectá-la em futuras gestações. A
existência do "ucó" é, portanto, uma fonte de perigos para a mãe e
não para a comunidade e é a sua família a encarregar-se do
problema, algumas vezes contra a vontade da própria mulher que é
pressionada a participar ou a não opor resistência. A razão pela qual
a família da mãe assume aqui o protagonismo merece ser explicada. (...) Continua

Luís Graça disse...

Continuação)

(...) Para confirmarem ou infirmarem a suspeita suscitada pelos sinais acima descritos consultam normalmente em primeiro lugar o espírito do ancião da família, representado, muitas vezes, por uma estátua de madeira situada na "morança". Se dele não obtiverem qualquer resposta satisfatória procuram em seguida um
"Djambacosse", um curandeiro
11 com poderes mágicos. Se após as
diligências por este feitas não se chegar a uma conclusão segura, a
uma certeza sobre a qualidade humana do ser, a família da mãe, mais exactamente as mulheres da família da mãe, realizam o último teste que serve também como processo de afastamento se numa das fases anteriores se comprovar que se está na presença de um "ucó". (...)

Luís Graça disse...

Duas ou três notas notas de pé de página, retiradas da comnunicação de Augusto Silva Dias (*):

- Em geral o nascimento é um fenómeno estranho e por isso é comum na Guiné-Bissau o
recém nascido ser sujeito a um tempo de observação no qual lhe é posto, inclusivé, um
nome provisório ("ospri" -hóspede; "muridu" -morto; "bemparbai" -veio para voltar) com vista a simular desinteresse pela sua sorte e, assim, assim a iludir os maus espíritos e a esconjurar a má sorte. Sobre isto v. PINTO BULL, ob.cit., p. 158.

- O nascimento de albinos e de gémeos é cada vez menos indício da existência de "ucó". Foi-nos explicado que para isso muito contribuiu o facto de alguns terem escapado às "provas" tradicionais e se ter visto mais tarde que cresciam e viviam como pessoas
normais. Sobre o problema dos gémeos na Guiné-Bissau e em África v. PINTO BULL, ob.cit., p. 159; ANTÓNIO CARREIRA, O infanticídio ritual em África, in Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, nº101, 1971, p.167 e ss.; B. OTLHOGILE, Infanticide in Bechuanaland: a footnote to Schapera, in Journal of African Law, vol 35 (1991) ns.1 e 2, p.159 e ss.

- Os depoimentos que recolhemos não permitem estender aos grupos étnicos analisados a explicação de ANTÓNIO CARREIRA de que a permanência de maus espíritos
representa também um perigo para toda a comunidade e para as mulheres do grupo, criando nelas uma espécie de "estado de possessão" - v. ob.cit., p. 163.

______________

Disponível em:

http://www.fd.ul.pt/Portals/0/Docs/Institutos/ICJ/LusCommune/DiasAugusto2.pdf

Anónimo disse...

E também, meu Caro Luís Graça, pelo simples facto de a mãe não ter leite suficiente para alimentar os dois.
Triste mas real..simples lei da sobrevivência.

C.Martins

Anónimo disse...

Peço desculpa aos camaradas, mas o tema "Filhos do Vento" ou "Portugueses Suaves" (analogia com o tabaco do tempo) É tema fraco. O infanticídio enquanto prática ritual não se verifica nas etnias espiritual e religiosamente mais evoluídas e, como método anti-concepcional (tipo pílula do dia seguinte) nem aproximadamente era aceite.
Claro que sucedeu. Há "Filhos do Vento" em todas as guerras, mas,no nosso caso é residual. Além disso, há o racismo - nós até nem éramos - que é, acima de tudo, uma divergência cultural...
Um ab
António Costa