terça-feira, 11 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10365: Do Ninho D'Águia até África (8): O "Arroz com pão" (Tony Borié)

1. Oitavo episódio da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (8)

O Arroz com pão!

O dia tinha sido de calor tórrido e abafado, à noite, por volta das nove e meia, dez horas da noite, mais próximo das dez do que das nove e meia, o Cifra, sai do centro cripto, dá uma volta pela cozinha do aquartelamento, para roubar um naco de pão, aliás, como fazia quase todos os dias, que ia comer com um bocado de chouriça de conserva, que ao meio dia, lhe deu o sargento da messe, a quem o Cifra ajudava a acertar as contas no final de cada mês, pois as contas tinham que terminar em zero. Não podia haver lucros, nem perdas, e esse acerto, por vezes era complicado. Tinham que arranjar produtos, que quase sempre eram caixas de cerveja, ou cigarros, às vezes até chegavam ao descaramento de incluir garrafas de “Vat 69”, para no final, dar tudo em zero.

Era bom comer fora de horas, e havia sempre alguém no dormitório que tinha uma cerveja morna, que no caso sabia deliciosamente. Quando o Cifra ia à cozinha, fora de horas, o cabo do rancho, o “Arroz com pão”, era assim que lhe chamavam derivado a sempre que alguém dizia que não gostava da comida ele logo se aproximava da mesa de onde tinha vindo a reclamação, e com um farrapo amarrado à cinta, servindo de avental, que todos sabiam alguns meses atrás ter sido uma camisa, dizia:
- Qual é a reclamação? A comida está limpa e muito bem confeccionada. Se não gostam, façam sandes de arroz com pão.

Como era possível fazer sandes de arroz com pão? Ainda bem que o Curvas, alto refilão, tinha boa boca e comia de tudo, porque de contrário havia conflito, e grande.

Mas continuando, quando o Cifra se aproximava da cozinha, fora de horas, e o “Arroz com pão”, andava por perto, logo lhe dizia:
- Oh Cifra, se vens aqui mais, depois da cozinha fechar, e eu venha a saber, dou-te um tiro. Se eu não posso entrar no centro cripto, tu também não podes entrar aqui. Que raio. Que gente mais gulosa e descarada.

Ao que o Cifra, lhe dizia:
- Oh “Arroz com pão”, parece que isto é teu.

Nessa altura ficava mau, barafustava mas de repente lhe passava e depois desse barulho todo, ia buscar uma caneca de café, cheia de vinho para os dois.

Nessa noite que o Cifra não mais esqueceu, ao entrar na cozinha encontrou o “Arroz com pão” a fazer as últimas tarefas, preparando as coisas para o café da manhã, quase pronto para fechar. O argumento foi o mesmo de sempre, a resposta do Cifra, foi a mesma e no final a mesma caneca do café cheia de vinho para os dois.

Já fora da cozinha, a caminho do dormitório, tentando ferrar o naco de pão, o Cifra ouve uma forte rebentação numa área próximo da cozinha, seguida do som de tiros de metralhadora. Nesse momento também lhe pareceu ouvir alguns gritos de aflição, mas fica em pânico, larga o naco de pão e foge para o abrigo mais próximo. Quando ia a entrar no abrigo, fica como que paralizado e lembra-se.
- Oh meu Deus, é o “Arroz com pão”.

O Cifra era um militar razoável, mas um fraco guerreiro, disso tinha ele a certeza, mas com uma coragem que não sabia que existia nele, volta-se e vai de novo em direcção à cozinha, onde o “Arroz com pão”, já vinha ao seu encontro, quase arrastando-se, com um lado do seu corpo com algum sangue. Com a ajuda do Cifra, foram os dois para o abrigo, onde entretanto, já se encontravam outros colegas.

Seguem-se mais rebentamentos de granadas de morteiro nas áreas próximas, tiros de metralhadora e outra arma que lhe parecem ser de pistola. As forças de intervenção saem para bater a zona, mas são paradas mais ou menos a duzentos metros do aquartelamento, do lado das matas. Resistem ao fogo cerrado, aguentando quase quinze minutos, até os guerrilheiros se deslocarem para o interior das matas, que nalgumas áreas circundavam o aquartelamento.

Quando essas forças de intervenção, regressaram ao aquartelamento, o Curvas, o tal soldado atirador, alto e refilão, continuava a gritar e dizia:
- Filhos da puta! Eu penso que matei dois. Já não tinha mais carregadores cheios. Eu creio que alguns tiros vinham do lado aldeia que fica perto do aquartelamento.

Todos diziam, que era só basófia. Não tinha matado ninguém, mas o Curvas, alto e refilão, continuava a afirmar que alguns tiros tinham vindo da aldeia próximo do aquartelamento.

O resultado deste ataque foi um morto civil natural da província, que era habitante da tal aldeia, com casas cobertas de colmo, que ficava perto do aquartelamento, pois uma dessas granadas de morteiro foi cair à aldeia, ferimentos com balas em dois militares das forças de intervenção que saíram a bater a zona, um foi de raspão, numa perna, o outro tinha uma bala alojada num braço, perto da clavícula. Dos outros quatro militares feridos, o mais mal tratado era o “Arroz com pão”, que tinha estilhaços de granada de morteiro de um lado corpo, num braço e nas pernas, felizmente não foi atingido na zona da cara. Os restantes militares ficaram feridos, com escoriações ligeiras, nos quais se incluía o Cifra, também com estilhaços de granada de morteiro, na parte superior da perna direita, que só se apercebeu da situação, quando ao deitar-se, tirou a bota, vendo-a húmida, reparou no rasto de sangue que vinha da parte superior da perna. Recebeu os estilhaços de granada no momento em que fugia, sobre pânico e angustiado, para o abrigo. Os feridos foram evacuados nessa mesma noite para o hospital da capital da província.

O Cifra e mais dois militares não foram evacuados. O Cifra curou o ferimento e, uns tempos antes de regressar a Portugal, veio ao hospital da capital tirar o fragmento da granada. Cicratizou e não teve mais complicações, por Deus. Ao outro dia, o café da manhã foi feito mais tarde que o habitual, numa cozinha que se improvisou, pois a original ficou com uma parte inutilizável pelas granadas de morteiro que caíram próximo. Ninguém mais disse que não gostava da comida, mas continuaram a chamar o cabo do rancho de “Arroz com pão”, o qual recebeu uma grande salva de palmas no dia em que se apresentou de novo no aquartelamento, já restabelecido dos ferimentos e com o seu habitual avental, que tempos atrás, tinha sido uma camisa.

Durante um tempo, os militares brincavam com a situação, dizendo:
- Até que enfim que os guerrilheiros acertaram com o aquartelamento. E desta vez queriam matar-nos à fome, pois o alvo deles era a cozinha.

Só o Curvas, é que continuava refilão, e dizia.
- Aqueles filhos da puta que eu matei não voltam cá mais, isso eu garanto-vos.

Quase todos sabiam, que era só basófias.
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10336: Do Ninho d'Águia até África (7): O abastecimento ao aquartelamento

8 comentários:

Anónimo disse...

"Arroz com pão"........
Interessante.
Linda história
Filomena

paulo santiago disse...

Boa história,Tony.
O "arroz com pão"bem caracterizado...
o pormenor do avental que fora camisa

Por falar de rancho,na semana passada,aqui na nossa terra,houve a
Feira do Leitão,não sei se o aroma do
bácaro chegou até aí...

Abraço

Anónimo disse...

Camaradas:

No meu e no vosso tempo, cada de um nós, militar no TO da Guiné, tinha direito a 24$50 para comer por dia, fosse oficial, sargento ou praça.

Os meus soldados, desarranchados, recebiam igual importância, mas quando iam para o mato, em operações, não tinham direito a ração de combate...

24$50 era muito dinheiro naquele tempo, em que ainda não se falava de "inflação" (ou "inflacção")... Dava para um almoço bem regado na Transmontona, em Bafatá, e com com mais algum para ir ao Bataclã, às meninas...

Digam-me lá por é que se passava fome nos nossos aquartelamentos e destacamentos ?... Problemas logísticos, dificuldades de abastecimento, burocracia, etc. Sem dúvida, mas também por que do BINT (batalhão de intendência, ou muito antes, logo na Metrópole...) até mesa do rancho, havia malta que roubava à boca do desgraçado do soldado...

Sempre foi assim, dir-me-ão... Em todas as guerras!... Não quero insinuar nem acusar ninguém (capitães, 1ºs sargentos, vaguemestres, cozinheiros...).

Mas... mas será que alguém quer abordar este tema... delicado ? Ou tem histórias para contar neste capítulo ?

Luís Graça, com humor, sem ressentimentos...

PS1 - Declaração de conflito de interesses: Acho que cheguei a ser gerente de messe um mês... Mas não deu para comprar um tê zero na Reboleira...

PS2 - Obrigado, Tony, por mais esta história... E tu, Paulo, és um sádico por estares agora a fazer publicidade da passada Feira do Leitão na tua terra...

Luis Faria disse...

Caro Tony


"Arroz com pão"!bem apanhada esta alcunha e na certa única nos anais da guerra!

Quanto às sandes de pão com arroz...eram bem boas,á falta de melhor,claro está.Comi algumas,bastantes, enquanto estive por Binar.Que bem que sabiam!!E as de casqueiro da tropa com pão normal? Tambem não eram de deitar fora por aquelas bandas!Aquela diferenciação de sabores de cada vez que se metia o dente...era uma surpresa!!

Um abraço
Luis Faria

paulo santiago disse...

Já em tempos contei o caso do Saltinho quanto à comida.No tempo da
CCAÇ 2701,corria a fama,espalhada
principalmente,por pilotos de heli,
que no Saltinho se comia bem!!!e era
verdade.Claro,com o atrazo de alguma
coluna,houve dias de aperto,mas foram
poucos.A Companhia teve sempre um
"rebanho"de vacas,compradas aos djilas,em trânsito pelo quartel.Os
24$50 chegavam,e ainda havia lucro.
No final da comissão,parte desse lucro,deu para oferecer,a cada militar da 2701,um conjunto Parker
constituído por caneta e esferográfica,e os elementos da
comissão liquidatária ficaram no hotel.
Veio a CCAÇ 3490,e em Maio/72,o Gen.Spínola recebeu uma carta com
queixas da comida.Dizia a carta,que
na sobreposição das companhias,se
comia bem,acabada aquela,perdera-se
a qualidade.Não estive na sobreposição,mas comparando,aquela
queixa era uma realidade.No dia da
visita do General,o comandante estava ausente,em férias,o Vaguemestre não se soube explicar,e
naquele dia deixou de o ser,sendo
substituído por um Atirador.Por
absurdo,nos dois meses de "reinado"
da 3490,o prejuízo era notável...
A CCAÇ 2701 era comandada por um
Capitão QP,a CCAÇ 3490 por um Capitão Mil...é uma constatação,
nada mais.

PS-Não mandei o cheiro do leitão ao
Tony por sadismo,só para lembrar a terra dele e minha.Já tenho um local,cá em Águeda,para ele apresentar o livro.

Abraço

Anónimo disse...

Posso estar enganada, mas parece-me ser um prato típico de Mansoa. Não me perguntem porquê.
Filomena

Hélder Valério disse...

Caro Tony, confesso que nunca tinha ouvido essa expressão de "arroz com pão" mas olha que está 'bem esgalhada' e ajusta-se muito bem ao que se passou aqui e ali, em termos de dificuldades de alimentação e conforme também já tem sido relatado.

Abraço
Hélder S.

zeca disse...

É realmente verdade, que o dinheiro chegava!!!!!!, infelizmente muitos se governavam, com a desgraça dos outros, eu pessoalmente passeio fome, muitas vezes a comida era intragável, vinha muitas das vezes a BISSUA, tanto aos paras como aos fuzileiros, pois tinha lá amigos, matar a fome, tudo devido á ganancia de uns tantos, que eram felizes com a desgraça de outros??????.