terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P10911: Do Ninho D'Águia até África (42): O Cifra encontra um inimigo (Tony Borié)

1. Quadragésimo segundo episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA (42)


O Cifra, quando da sua instrução básica, num quartel da província, e ainda se chamava Tó d’Agar, no seu último dia de instrução já tinha guia de marcha para se deslocar, ao outro dia, para um quartel nos arredores da capital, mas nessa última noite passada nesse quartel, na formatura do recolher, um militar, primeiro cabo, que já fazia de sargento de dia, pois estava à espera de promoção a furriel, tinha umas divisas parecidas com as de furriel miliciano, mas não era miliciano, era um primeiro cabo, que devia ter assistido a um curso, que lhe daria a promoção ao posto imediato, fez de todos os militares presentes no quartel, nessa formatura de recolher, “gato e sapato”, como se costuma dizer.


Mandava pôr em sentido, chamava pelo número e vinha ver se era a pessoa, pedindo a identificação, enfrentava-a com cara de mau, mas ridícula, pois fazia rir a pessoa com quem falava, depois dava uma volta em seu redor, revistava o cabelo, a barba, a farda, os emblemas limpos, as botas engraxadas e depois passava um raspanete agressivo, mesmo sem motivo.
Isto tudo na parada e numa formatura de recolher, portanto à noite, prolongando-a por mais de uma hora, pois fazia os militares ficarem em sentido, às vezes por cinco minutos. Às tantas, alguns mais atrevidos, começaram a mandar “bocas”, como por exemplo, “queres promoção”, “cabrão”, “lateiro”, “toma lá disto”, “filho da p...”, e mais uns tantos nomes que envergonhavam qualquer um. Falavam de uma ponta da formação, e quando ele corria a ver quem era, logo outro chamava da outra ponta, fazendo rir toda a formatura. O homem queria mandar, tinha mesmo sede de mandar, e com os seus excessos, tornou-se ridículo. Talvez tivesse sido treinado para isso.

O tempo passou, e estando o Cifra sentado no patamar de cimento, em frente ao centro cripto, no aquartelamento de Mansoa, a olhar o horizonte, a pensar na sua aldeia em Portugal, esperando que alguma mensagem viesse do centro de transmissões, ouve um barulho. Levanta os olhos e vê chegar umas tantas viaturas com tropas novas. Levanta-se, fecha a porta do centro cripto e vai ver se vinha alguém da sua zona em Portugal, dando de repente de caras com o tal primeiro cabo, que só era mesmo primeiro cabo.

Primeiro, olhou bem, sim era ele, pois usava óculos graduados, depois fez tal e qual como ele lhe fez na parada do tal quartel na província em Portugal, deu uma volta em seu redor, e depois certificando-se que era a mesma pessoa, e vendo as divisas de, só, primeiro cabo, disse-lhe, tirando o cigarro três vintes da boca:
- O que é que passou? Eras comandante.

O homem, não perdendo a compostura, encara o Cifra, e pergunta:
- De que é que o nosso cabo, está a falar?
- Olha, de uma noite miserável que me fizeste passar num quartel da província, em Portugal.

Ele, então baixa um pouco os olhos, e diz:
- Eu sei, não és só tu que me tem dito isso, fui treinado e instruído para isso, e essa noite era uma das provas da minha promoção, não fui muito feliz e castigaram-me, não me promoveram, e tenho sorte em ser primeiro cabo, porque depois disso já fui castigado outra vez, por assuntos que não gosto de lembrar. Agora estou aqui, com estas divisas, e tenho que provar mais alguma coisa. Olha, por favor ajuda-me, onde posso beber água? Isto aqui é difícil? Onde é que vamos dormir?

O Cifra não sabia onde é que iam dormir, mas guiou-o o melhor que pôde, e também lhe disse que não tinha que provar nada, tinha mas era que tentar sobreviver e deu-lhe todo o apoio que era possível durante o tempo em que esteve em Mansoa. Também lhe explicou que às vezes, depois da hora do recolher, os guerrilheiros costumavam dar tiros e atacar o aquartelamento com granadas de morteiro, e que nessa altura estávamos todos unidos para nos proteger, pelo que não havia recolher nenhum. Desejou-lhe a maior sorte do mundo, pois foi para uma zona de combate, como tantos outros.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P10900: Do Ninho D'Águia até África (41): Outra vez, a menina Teresa (Tony Borié)

3 comentários:

Luís Graça disse...

... A vingança, dizem, é um prato que se deve servir frio. Muitos de nós tivemos ganas de o fazer, ajustar contas com instrutores sádicos que apanhámos na recruta e na especialidade...O Cifra dá-nos uma grande lição de humanidade, camaradagem e inteligência emocional.

Afinal, e parafraseando o Darwin, não é o mais forte, nem o mais belo nem o mais inteligente que sobrevive, mas sim o que sabe adaptar-se às mudanças...

zeca disse...

todos noz uns mais outros menos temos histórias destas para contar, tudo porque ainda hoje, se conhecem muitos, que depois com outras fardas, fazem o mesmo!!!!!! resultado quando e velhice se aproxima, parecem cães abandonados!!!!infelizmente é realidade, mas cada um come do que semeia.
Eu na minha recruta em Braga, sendo eu de BARCELOS, conhecia muitos oficiais, jogava futebol com eles, mas de muitos saiu-me na rifa um artista de Amares, terra da boa laranja, e certamente de boas pessoas, mas como disse saiu-me a fava, nunca mais me esqueço tinha um carro de cor grana o citro boca de sapo, portanto devia ser de gente rica, mas como ia dizendo, tornei-me braço direito dele, em tudo que eram actividades do pelotão, até que certo dia, tendo eu nesse fim de semana um casamento de um irmão, na sexta feira disse-lhe meu alferes, queria pedir-lhe um favor, tenho um casamento de meu irmão, e queria que me deixa-se ir fim de semana, assim com o cabelo composto, não estava grande, mas para uma cerimónia, estava bem, e eu segunda feira apresento-me com ele cortado, pois já tinha combinado com o meu barbeiro, e o senhor alferes diz-me com todo o desplante, aproveite que a barbearia está aberta, pedi licença e foi maquina ZERO, cheguei apresentei-me e disse dá licença meu alferes, ao que ele respondeu, não era necessário tanto, e eu respondi, infelizmente tenho que cumprir o serviço militar, e sujeitar-me aos caprichos de certos senhores, e como devem calcular, a colaboração que até ai existia foi-se, pois esse senhor nunca mais teve o meu contributo, para nada, eu também tinha as minhas influência no pelotão, como todos sabem, no fim da recruta, normalmente entre todos, era normal dar-se um prenda ao alferes, o nosso pelotão devia ser o único que não o fez, independentemente de tudo o que foi o resto da recruta, formaram-se dois grupos, pois eu era soldado mas já na altura não me considerava burro nenhum, e não era muito bom de roer, não era dos considerados "REGUILAS", mas não permitia que fizessem pouco de mim, sempre cumpri com as minhas obrigações, para que nunca tivesse problemas, fui sempre cumpridor de regras, ainda hoje procuro andar sempre dentro da legalidade, foi sempre o meu principio, e nunca me arrependi de o seguir. O nome do dito cujo, era "MACEDO" nunca mais o pude esquecer, não porque me tenha feito mal, não, foi pela atitude, pois mal nunca fazia, porque eu cumpria, mal de outra natureza não lhe dava tempo, pois eu já na altura com quase 22 anos já me sentia um verdadeiro "HOMEM", devido há idade e há vivência da vida. Desculpem este meu desabafo, mas senti necessidade depois de ler a história do "CIFRA". Abraços para todos, Bom ano e muita saúde.

JD disse...

Outro belo naco do Cifra. Parabéns ao Tony.
E os comentários anteriores, se não esgotam a adição de pontos de vista e análise, deixam-nos uma primeira conclusão: é da condição humana a ambição pelo poder, que chega a exibir, como no caso, as formas mais rídiculas de traição.
às vezes sem os resultados esperados, claro!
Abraços fraternos
JD