terça-feira, 12 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11241: 9º aniversário do nosso blogue: Os melhores postes da I Série (2004/06) (3): O meu diário (José Teixeira, ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba e Empada, 1968/70) (Partes V/VI): Mampatá, agosto/outubro de 1968




Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250 , Os Unidos de Mampatá (1972/74) > Um foto aérea de povoação e aquartelamento... A unidade de quadrícula anterior terá sido a CCCAÇ 3326 (1971/73, Mampatá e Quinhamel) a que pertenceu o nosso camarada António Amaral Brum, há 36 anos emigrado no Canadá. Em 1968, no último trimestre, esteve aqui destacado o José Teixeira,

Foto: © José Manuel Lopes (2008). Todo os direitos reservados .




Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa > CCAÇ 2381 (1968/70) > O José Teixeira junto ao obus  14, "apontado para a fronteira".

Foto: © José Teixeira (2005). Todo os direitos reservados .

  

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cantanhez > Farosadjuma > 2011 > > Hoje, um homem de causas...

Foto: © José Teixeira (2011). Todo os direitos reservados .

1. Continuação da publicação de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo aux enf José Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70) (*):


Mampatá, 12 de Agosto de 1968

Mais uma vez mudei de sítio. Agora pertenço ao Destacamento de Mampatá, para onde vim ontem de tarde com o meu pelotão. Cerca de 50 tabancas [, moranças,] e alguns abrigos para militares. As camas são colchões pneumáticos colocados no chão dos abrigos. A cozinha e a enfermaria são tipo estrela.

Não sei o tempo que estarei por aqui. Em princípio será por um mês e isto não me desagrada. Pelo menos estamos mais livres do fogo IN pois os abrigos são muito seguros.

Mampatá, 14 de Agosto de 1968

Hoje acordei ao som do morteiro e das costureirinhas. O IN atacou ao amanhecer. Estava a lavar-me quando ouço um rebentamento perto de mim. Dei um salto, entro no abrigo. Aguardei uns minutos e quando acalmou saí para preparar o Posto de Socorros. Felizmente não houve qualquer azar.

Segundo se apurou estavam emboscados no cruzamento à espera da viatura que ia a Aldeia Formosa e no momento de rebentar a emboscada faziam fogo sobre Mampatá para que não fôssemos em socorro dos colegas. Felizmente um africano localizou-os e ao verem-se descobertos atacaram a povoação sem provocar danos.

Mampatá, 19 de Agosto de 1968

Hoje pelas 20 horas, tivemos a segunda visita do IN a Mampatá. Acabava de chegar da Tabanca com o Rodrigues,  de Torres Novas,  quando ouvi a primeira saída. Em cerca de 10 minutos mandou-nos 106 granadas de canhão sem recuo, como confirmámos pelos invólucros que deixaram na mata ao pressentirem a nossa perseguição. Queimaram uma tabanca [, morança].

De Aldeia Formosa as NT mandaram algumas granadas de obus que assustaram o IN. Mampatá defendeu-se com os Morteiros 81 e 60 e com a Breda. Montei rapidamente o Posto de Socorros, mas não chegou a ser necessário.

Mampatá, 23 de Agosto de 1968

Mais uma etapa díficil para a CCAÇ 2381. Quem diria que, após uma coluna a Gandembel na qual se levantaram 57 minas A/P e quatro fornilhos depois da passagem por Chamarra e sem ninguém contar, surge a terrível emboscada que provoca cinco feridos.

É sempre assim, onde menos se conta, quando a calma e a confiança volta ao espírito, quando se julga que o perigo já passou, surge de entre o arvoredo, traiçoeiramente o inimigo. Um viver constante em estado de guerra arrasa o espírito. A parte física ressente-se, as conversas entre camaradas tornam-se por tudo ou nada exaltadas, pequenos quezílias, tornam-se problemas.

O homem é fruto do ambiente em que vive. Se o ambiente é de paz, sente-se a vida nos corações, a calma e a confiança no "outro ", vive-se a paz. Quando o troar dos canhões se ouve longe ou perto, quando existe guerra entre os homens, existe guerra no seu espírito. O espírito torna-se selvagem. Trava-se uma luta entre o antigo e o novo, entre o amor e o sangue. Um jovem que ainda ontem só pensava em amar, hoje não vacila em disparar sobre um inimigo, mesmo ferido inofensivo, inutilizado, a precisar de uma mão salvadora...

Antes de ontem e ontem, Buba foi atacada. Os Páras têm tido um trabalho intenso. Hoje bateram a zona de onde costumam atacar Aldeia Formosa. Há alguns dias que patrulham a zona envolvente de Gandembel e com bons resultados. vários mortos, manga de feridos e material apreendido.

Hoje escrevi para a Metrópole. As minhas últimas cartas não me agradam. Será que o meu amor está a diminuir ?... ou a ânsia de amar mais, me faz julgar que não consigo dar a entender quanto amo ?

Mampatá, 26 de Agosto de 1968

Estou preocupado. Seguiu hoje nova coluna para Buba e o Sector continua infestado de IN. Antes de ontem atacaram Aldeia Formosa, Gandembel e Nhala. Desta vez em Aldeia Formosa destruiram o morteiro 120. Nem os roncos dos Páras conseguem acalmar a situação, bem pelo contrário parecem enfurecidos.

Em Mampatá tudo está calmo. Os espíritos estão voltados para a estrada de Buba. Os ouvidos estão atentos a qualquer rebentamento... São camaradas que atravessam o perigo. Senti uma enorme alegria aquando do ataque a Chamarra: vi os meus camaradas correrem em socorro dos que estavam em perigo.

Ontem recebi uma carta de um amor em férias. Que bem me fez esta carta... Mostravas preocupação por estar magro, a mim parece-me o contrário, mas o mais importante foi o que escreveste "se precisares de alguma coisa diz, tua mãe ou eu mesmo te mando". Não preciso de nada a não ser voltar, no entanto não calculas quanto fiquei intimamente satisfeito e feliz com a tua atitude.

Parece incrível, desde manhã que há feridos na coluna para Buba, um dos quais sem um pé e só às 17 horas é que o Hélio fez a sua aparição para a evacuação. Não admira que haja mortos na Guiné. Vivem-se horas angustiantes na guerra.

Mampatá, 27 de Agosto de 1968

A coluna para Buba passou a noite em Nhala. De lá foi feita a evacuação do Alzira que ficou sem um pé numa A/P que pisou quando saltou da viatura ao cair debaixo de fogo, numa emboscada. Acabou a guerra para ele.

Manga de fogo durante o dia de ontem. A coluna de Buba foi atacada na bolanha, os páras estacionados em Gandembel andavam a patrulhar a zona e encontraram um caminho, seguiram-no e penetraram sem saber num acampamento IN, ainda desconhecido. Apanhados de surpresa , o IN reagiu. Mesmo assim sofreram 29 mortos. Os Páras tiveram dois feridos.

O IN atacou Aldeia Formosa, Gandembel (grande ataque), Guileje e Buba.

Mampatá, 31 de Agosto de 1968

Acabaram-se as colunas para Buba e Gandembel durante uns meses e ainda bem. Era um bom quebra cabeças, pois sempre que havia colunas havia emboscadas e minas A/P e A/C para nossa diversão.

Na última coluna a Gandembel foram detectadas 57 minas A/P [antipessoal] e alguns fornilhos num pequeno espaço. A coluna teve de regressar, sem atingir o objectivo (levar mantimentos à Companhia estacionada em Gandembel e Ponte Balana), depois de duas tentativas de encontro com os camaradas que em sentido oposto tinham vindo montar a proteção à minha Companhia.

Na primeira tentativa, há a lamentar seis mortos e um desaparecido na Companhia de Gandembel. Na segunda tentativa rebentou uma A/P que feriu um colega meu. Tudo porque havia minas na estrada, fornilhos nas bermas e a floresta estava armadilhada.

Mampatá, 7 de Setembro de 1968

Tenho que reagir. Estou-me portando pior que os outros. Onde está a minha força de vontade de viver segundo o meu projecto de vida ? Sinto-me só... recomeço a luta tanta vez... como fugir ?...Eu não quero matar. Eu não quero morrer. Quero viver, mas esta vida, não. Tenho de encarar as situações com naturalidade. Confiar. Reagir... reagir com todas as minhas forças.

Mampatá, 11 de Setembro de 1968

Desta vez foi Chamarra a escolhida para fazer a festa. Cerca das 20 horas o bandido abriu fogo com vários canhões e lança-roquetes. Durante uns minutos ouvimos ao longe o ruído característico do rebentamento de granadas. O pelotão da minha Companhia que aí se encontra destacado, comandado pelo Alferes Barbosa,  reagiu bem, pondo-os em debandada. Mesmo assim há a lamentar um soldado ferido e dois mortos civis, uma mulher e uma criança... Tantas vítimas inocentes nesta guerra que não quero fazer!

Mampatá, 15 de Setembro de 1968

Visitei Chamarra. O último ataque foi tremendo. Aproximaram-se do arame farpado para pregar aos meus colegas uma terrível partida, apanhá-los à mão. Felizmente os meus colegas reagiram em força e não permitiram.

Chamarra é o posto mais avançado de ligação com Gandembel, por Ponte Balana, o único caminho que permite chegar a este posto avançado, pois ninguém de bom senso se arrisca a fazer a ligação pelo corredor da morte – Guileje, Mejo e Gandamael Porto. Esse só para o Inimigo e para os Páras ou Comandos, de vez em quando e com muito cuidado, fazer os seus raides de aventura.

Consta que Mampatá vai ser atacado pelo mesmo sistema.

Mampatá, 16 de Setembro de 1968

Ontem Chamarra foi mais uma vez atacado. Desta vez não houve azar. Em Guileje também houve festa dura. A companhia de Páras tem trabalhado bem, no patrulhamento da Zona, mais usada pelos terroristas para introduzirem homens e equipamento, mas mesmo assim....

 Hoje na estrada de Chamarra-Mampatá ia-se dando mais uma catástrofe. O IN estava a montar minas A/C na estrada quando uma patrulha de milícias apareceu e abriu fogo pondo o IN em fuga deixando duas minas de 15 Kg. Todos os dias passa nesta estrada uma viatura com 10 homens a caminho de Aldeia Formosa.

Mampatá, 17 de Setembro de 1968

Dia de correio. Ainda cedo sentiu-se a avioneta de Sector em direcção a Aldeia Formosa. Aguardamos com ansiedade a viatura que partiu para lá....

O Vitor escreveu-me. Por Bissorã nem tudo corre bem. Segundo ele, num pequeno incidente ficaram dois soldados inutilizados para toda a vida, ambos com uma perna amputada e um outro com a cara cheia de estilhaços. Além destes, uma nativa morta e outra sem uma perna. Tudo por rebentamento de minas A/P, montadas pelo IN. Numa saída em patrulha a malta vingou-se fazendo sete mortos e dois prisioneiros. O último a morrer foi o tipo que montou as minas e, pelo que ele conta, teve morte honrosa. Todos os africanos verificaram a eficiência das suas facas no seu corpo.

Mampatá, 23 de Setembro de 1968

Tudo está calmo, há dias que o IN não ataca. Todos estamos convencidos que o próximo objectivo é Mampatá e com o seu novo sistema de ataque nos vai dar que fazer.

Uma das coisas que me agrada fazer, embora perigosa, é a ronda nocturna pelos postos de sentinela. No princípio detestava, mas agora dá-me prazer. Normalmente passo um quarto de hora em cada posto, a conversar baixinho com o camarada que está de sentinela. Assim, ajudo-o a passar o tempo e a manter-se atento. Esta missão nocturna é distribuída pelo Alferes, pelos Furriéis e por mim.

Ontem aconteceu-me uma cena que dá para rir. Como é hábito, avisei com um pequeno assobio (a senha) o primeiro sentinela que me estava a aproximar. Sentei-me ao lado dele no chão e ficamos a conversar. Não notei que me tinha sentado em cima de um carreiro de formiga preta e quando me levantei senti o corpo todo a ser ferrado. Que dores horríveis pelo corpo todo !

Tirei a roupa toda, arranquei as formigas como pude, coloquei a roupa na ponta da espingarda e continuei a ronda completamente nu. Estava no primeiro posto, faltavam cinco. Os meus camaradas ao verem-me chegar ao posto com o fato que a minha mãe me deu ao nascer gozaram em cheio e durante uns dias não se falou noutra coisa.

A formiga preta faz carreiros de quilómetros à procura das suas presas. Na família desta formiga existem várias funções e tamanhos físicos. Assim as batedeiras são grandes e gordas. Normalmente andam fora da fila a procurar as presas e são as mais agressivas. A fila é composta por duas alas laterais e duas alas interiores, sendo as laterais como que soldados, mais fortes que as que vão no interior, as escravas que transportam o alimento para um esconderijo debaixo da terra

Quando as batedeiras localizam a presa morta ou viva, esta por qualquer razão em estado imobilizado, automaticamente a fila abre-se em duas e começa o envolvimento e a tomada de assalto sem que a vítima dê por nada. Quando esta se mexer sentirá milhares de ferradelas. Os cornos das formigas ficam de tal maneira cravados, que muitos ficam agarrados ao corpo, quando a vítima se tenta libertar. Foi isso que me aconteceu. Dizem que gostam muito de atacar os ‘tomates’ e eu que o diga !

Disse-me a Aliu Djaló que a jiboia depois de asfixiar a presa explora a zona num raio de 20 a 30 metros e se sentir que há formigas, abandona o alimento. Acontece que como fica vários dias a deglutir o animal que caçou, se as formigas forem atraídas pelo sangue da vítima, ou a descobrirem cobrem-na e no momento em que com o estômago cheio tenta abandonar o local, as formigas atacam e ficam com alimentação para vários dias.

São milhões de formigas. Eu vi uma cobra apanhada pela formiga, melhor, vi uma mancha negra do que fora uma cobra.

Mampatá, 25 de Setembro de 1968

Como é belo sentir nas próprias mãos o pulsar de um coração novo que acaba de vir ao mundo. Um corpo pequenino, branco como a neve, puro como os anjos e no entanto, este corpo vai crescer, a pouco e pouco a natureza encarregar-se-á de o tornar negro como os seus progenitores, negro como os seus irmãos que hoje não cabiam em si de contentes. É puro como os anjos, a sua alma está imaculada, mas virá o tempo em que conhecerá o pecado, terá de escolher entre o bem e o mal.

Um novo ser que ri e chora. Um novo ser que é feliz porque não sente, não houve o troar das armas, não foge para o abrigo aterrorizado, não se deita no chão para fugir às balas assassinas e traiçoeiras. Vai com os outros e se morrer ?... não conhece, não sente, não ama... Ontem fui chamado para assistir a uma mulher que estava a ter uma criança e se sentia muito mal. Assisti-a o melhor que pude. Mãe e filho estão bem.

Na minha ronda de ontem apanhei um susto que no fim deu para rir às gargalhadas. Estava na ponta norte da aldeia, pelas duas da madrugada, quando avisto um clarão na ponta sul. Parecia uma tabanca a arder. Por vezes diminuía de intensidade e não se ouvia qualquer indício de movimento de pessoas. Pensei: é o inimigo que atacou o posto do morteiro, num golpe de mão e apanhou os meus colegas. Vou mandar uma rajada para acordar o pessoal. Depois decidi ir ver o que se passava atravessando a aldeia com todo o cuidado por entre as tabancas e fui dar com os meus colegas todos nus a tirar palha das tabancas, incendiá-la e queimar milhares de formigas que aproveitando-se do seu sono os visitaram e quando um deles se mexeu foi uma autêntica catástrofe, ao sentir dezenas de corninhos a picarem-lhe o corpo todo. O vizinho acordou com o grito que o desgraçado deu e sentiu o mesmo. O chão era um tapete negro, pelo que quando puseram os pés no chão tiveram outra surpresa.. Então começou a luta entre o soldado Português e a formiga preta da Guiné. Houve milhares de mortes por parte do inimigo, um grande susto que eu apanhei e por pouco não pus a Tabanca toda em alvoroço às duas da manhã.

Mampatá, 27 de Setembro de 1968

Há alguns dias que a guerra parece ter parado. As povoações deixaram de ser atacadas. As colunas fazem-se sem incidentes, só as minas continuam. Desta vez foi um alferes em Gandembel que pisou uma bailarina que o cortou pela cintura. Para ele como para tantos outros acabou a guerra...

Os dias sucedem-se no seu marchar monótono, uns mais fáceis de passar, outros mais difíceis, mas a realidade é que eles vão passando e com eles vai o sofrimento de quem se vê longe dos seus e anseia que chegue o último dia, o dia em que de novo se aproxima dos seus entes queridos, os abraça e se fica com eles, jurando a si mesmo, nunca mais se afastar.

Porquê este desejo enorme que o tempo passe se com o seu andar nos torna mais velhos ? A felicidade só é possível onde haja amor, onde haja paz. Num ambiente de guerra onde somos uns estranhos, numa terra que não é nossa e que desconhecemos, onde nos consideram e respeitam porque precisam de nós, porque lhes tratamos as feridas e matamos a fome e sobretudo porque temos a força das armas, neste ambiente de desamor, onde muitas vezes impera o ódio e o terror, não pode haver felicidade e o que é a vida sem uma réstia de felicidade ?

Que vale a vida se não vemos o "outro" ou passamos por ele e porque as circunstâncias o exige, fingimos não o ver ?... Vivemos na esperança que o tempo, uns escassos meses da nossa vida, passe depressa para uma liberdade duradoira e uma paz excelente...

Apanhei mais um susto. Na Guiné há noites que mais parecem dia, tal é a luz do luar. Quantas cartas eu escrevi de noite enquanto fazia horas para iniciar a minha ronda. Noutras ocasiões a escuridão é tão profunda que não se vê um palmo à frente do nariz. Numa dessas noites ia eu de um posto de sentinela para outro, às apalpadelas e por vezes contra as palhotas, quando sinto que bati em algo que se mexeu. Tive um pressentimento e gritei:
- Tem calma pessoal fricano, é fermero (enfermeiro) qui na vai !- Ouço a voz do Suleimane (#):
- Tu na tem sorte, djubi (estás com sorte, olha). - Mostrou-me a catana que tinha na mão. Disse-lhe eu:
- Sorte na tem tu!- e mostro-lhe o dedo no gatilho da G 3, pronta a disparar. Demos um abraço e ficamo-nos a rir. Tinha vindo fora da tabanca urinar, mas como estava muito escuro houve um choque que podia dar mau resultado.

Mampatá, 21 de Outubro de 1968

Recomeçaram os ataques a Gandembel. Há algum tempo que paira no ar uma atmosfera tensa.. A dúvida e a preocupação vê-se em todos os rostos. Podiam começar em qualquer lugar.

Ontem, em Bacardado, pequeno povoação que só tem um pequeno grupo de milícias com mausers, a dois quilómetros de Mampatá, junto à estrada onde passamos todos os dias. O terrorista apareceu de noite e queimou toda a povoação e feriu alguns nativos. A pouca população juntou-se e defendeu-se bem, pondo o bandido em fuga. Apenas ficaram de pé três palhotas. Animais, dinheiro e haveres, foi tudo queimado.

Mampatá, 23 de Outubro de 1968

Passei em Bacardado. Triste abandono, palhotas queimadas, animais mortos, nem uma viva alma, só os abutres, medonhos, anunciantes da morte e da desolação, procurando os restos de carne para com avidez saciarem a fome e um cheiro nauseabundo e pestilento...(##)

A estrada está vazia. O medo fez a população abandonar o que porventura lhes restava e vieram acolher-se a Mampatá. Deixou de haver movimento humano na estrada. Quando passávamos de viatura, as crianças, nuas e sujas de lama, mas com a alegria no rosto acorriam a dizer adeus e a desejar bom biaje. Agora vejo-as todos os dias à minha frente esfomeadas, a mendigar migalhas para matarem a fome.

O vazio da estrada transmitiu-se à alma. Também ela sofre. O coração chora tantos inocentes que procuravam viver a sua vida em paz, só queriam uma bolanha para trabalharem a terra e tirarem o seu sustento. De um momento para outro viram surgir junto de si, um inimigo traiçoeiro que, escondido no alto capim, esperou que a noite viesse, como uma fera que espera a sua presa , para protegido pela escuridão, incendiar, ferir, matar, arrasar tudo - se meia dúzia de valentes não lho impedissem - e depois fugir cobardemente à procura de protecção para lá da fronteira.

Porquê atacar e matar os seus irmãos de raça ? Não sei .


Guiné > Região de Tombali > Carta de Xitole (1955) (Escala de 1/50 mil) > Posição relativa de Mampatá, Bacar Dado, Afiá, Quebo e Chamarra.

Explicação dada hoje pelo Zé Teixeira sobre Bacar Dado: "A tabanca de Bacar Dado foi incendiada durante a noite. A sua defesa estava entregue a três homens, creio que ligados ao Gr Comb de milícias de Mampatá Forreá. Tinham como arma de defesa a velha mauser, das mais antigas que se possa imaginar. A luta foi curta, pois a população abandonou o local. No dia seguinte de manhã apercebemos-nos de um movimento anormal. Era parte da população que se refugiou nesta tabanca. Sei que de Aldeia Formosa vieram dois Gr Comb bater a zona e encontrou a tabanca queimada. O médico que estava em Aldeia Formosa acompanhou a força e comentou comigo que houve feridos no PAICG por indícios no terreno. Fotografias, só as que retenho na mente. Antes do ataque, as crianças que corriam atrás do "boguinhas" e as pessoas às portas das moranças a dizer-nos adeus. Depois, o silêncio, os esqueletos das moranças e das árvores carbonizadas e o cheiro a queimado como escrevi no Diário".

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


Mampatá, 29 de Outubro de 1968

Quase seis meses se passaram, já, desde que deixei a Metrópole. Parece que estou a ver à minha frente o cais de embarque e milhares de pessoas que com as lágrimas nos olhos e lenços a esvoaçar,  diziam adeus aos jovens familiares que se lentamente se afastavam com destino à Guiné.

Este tempo, os primeiros meses da guerra, sempre o mais difícil, tem-me custado imenso a passar. Ambientes diferentes, um clima doentio que me marcará para sempre, a guerra com todos os seus perigos. Até a própria natureza parece diferente. Tudo isto são factores, que a par das saudades da família que ficou preocupada, da namorada que lá longe sofre na incerteza, influem no meu estado de espírito.

Já corri muitos perigos. Balas e estilhaços que mãos criminosas, inconscientes ou talvez conscientes do direito de terem a sua Pátria livre, lançaram sobre mim. Já percorri muitos quilómetros, conheci terras, povos e culturas, paisagens maravilhosas. Por muitos anos que viva, jamais esquecerei a Guiné, a forma natural como os seus povos vivem, a fraternidade que comungam entre si, a sua forma simples de Ser, em que o Ter não é importante, mas o viver cada dia como que o seguinte não existisse.

A família do sargenti di milícia Hamadu estava toda reunida. No meio, um alguidar cheio de vianda (arroz) com um pequeno bocado frango frito:
- Teixeira Fermero, vem na cume (Enfermeiro Teixeira vem comer). - Sentei-me meti a mão no alguidar, fiz uma bola com arroz bem temperado com óleo de palma e meti à boca (Em Roma sê romano). Estava apetitoso e eu estava cheio de comer massa com chispe que o cozinheiro confeccionava na cozinha improvisada ao ar livre, porque não havia mais nada. Estamos no tempo das chuvas, a Bolanha dos Passarinhos está intransponível pelo que não há colunas a Buba para trazer mantimentos.

A refeição animada com a conversa sobre a forma de viver em Lisboa, quando chega um estranho elemento, carregado de panos e bujigangas, era um gila (contrabandista oriundo da Guiné Conacri). Começou o diálogo em Mandiga:
- Na pinda . .. Jame tum … - . O homem sentou-se e começou a comer connosco. O ditado Português diz “para mais um chega sempre”, agora para mais dois… mas chegou.

Após ter comido connosco a pouca vianda que havia tentou vender os panos que trazia, depois foi-se embora, com muitas saudações e com um Djarama nani (muito obrigado) no final
Quem é? - perguntei.
- Ká sibi - É Gila vem de Conacri, tinha fome. Quando pessoal tem fome …

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Notas de JT:

(#) Tive o prazer de reencontrar o Suleimane em Abril de 2005 no Saltinho. Estava o mesmo, parece que os anos nem passaram por ele.

(##) Em Abril de 2005 visitei Bacardado [, ou Bacar Dado] e como fiquei feliz ao verificar que a vida logo depois do fim da guerra recomeçou e hoje liga com Áfia e Mampatá Forreá  fazendo como que uma única aldeia!

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Nota do editor:

8 comentários:

Luís Graça disse...

Zé, na altura (6/1/2006, já lá vão sete anos!) escrevi:

Zé Teixeira:

Olha, estou muito sensibilizado pela leitura do teu diário. Apesar da tua juventude, revelaste na guerra, na Guiné, ser um grande homem, um grande português, um grande profissional e um grande cristão... Como homem e como português, eu também tinha as mesmas angústias éticas do que tu...

O meu diário não era tão detalhado. Só escrevia de tempos a tempos... Tenho aqui publicado alguns excertos... Os meus parabéns pela tua postura… Tu transmites, pela escrita, simples, sincera, a quente, em cima dos acontecimentos, muito do que todos nós sentíamos e pensávamos...

Sei que havia mais jovens, como tu e eu, que passavam para o papel as suas perplexidades e angústias, ao longo da comissão na Guiné... Não era fácil: havia um censor em cada um de nós, tínhamos medo de expressar, por escrito, o que víamos, ouvíamos, sentíamos e pensávamos... Houve cartas que nunca cheguei a pôr no correio... Eram tempos de castração mental, de repressão política, de intimidação...

Bom, espero que os nossos camaradas hoje saibam contextualizar a tua escrita, e sobretudo tenham sensibilidade para te ler e compreender, sem preconceitos... Podes mandar mais fotos da época se as tiveres: eu vou publicando o teu diário, por meses e lugares…
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... Sete anos depois, (re)descubro nomes de lugares de lugares, topónimos, que fizeram parte do nosso "calvário" (e nosso e das populações que sofreram, na pele, aquela guerra maldita)...

Bacardado!...Dizes tu que foi reconstruída depois da guerra, e que fica entre Mampatá (carta do Xitole) e Afiá (carta de Guileje)... Ainda não consegui localizá-la no mapa, até porque a carta de Guileje tem os nomes dos lugares com letra muito miudinha)...

Também o Américo Estorninho se refere a Bacardado, como tabanca originalmente em autodefesa... Temos que a pôr no mapa. Até por que foi e é terra de gente valente. É curioso, este processo: as "terras que desapareceram do mapa", em consequência da guerra, acabaram por ser reocupadas... Tu dás o exemplo de Bacardado, destruído pelo PAIGC... E eu estou a lembrar-me, no setor de Bambadinca, da grande tabanca de Samba Silate (com cerca de 2 mil almas) que foi destruída pelas NT no início da guerra...

Temos que fazer uma série sobre estes lugares, que foram verdadeiras fénix renascidas...

Luís Graça disse...

Zé e Arménio: Lá descobri Bacar Dado...

No Google vê-se, bem nítido, o eixo Mampatá-Aldeia Formosa... Passámos por lá em 2008...eu e o Zé... É onde acaba o alcatrão...



https://maps.google.com/maps?q=luis+graca&aq=f&sugexp=chrome,mod%3D0&um=1&ie=UTF-8&hl=pt-PT&sa=N&tab=wl

Luís Graça disse...

Zé Teixeira:

Falas em 50 (!) tabancas (ou moranças, ou casas ou fogos...) no teu tempo em Mamptá, em 1968... Quatro ou cinco anos depois, no tempos da CART 6250 , Os Unidos de Mampatá (1972/74), a aldeia parece maior... Pela foto aérea do Zé Manel Lopes, parece haver mais de 50 fogos... Provavelmente agregou gente fugida de Afiá e Bacar Dado...

Anónimo disse...

Mensagem do José Teixeira, acabada de chegar e que quero partilhar com todos (LG):

13:31

Luís.
Espero que as tuas espectativas não saiam furadas. O que eu escrevi durante a guerra não creio que prenda a atenção dos camaradas, pois são vivências que todos nós sentimos. Talvez possa ter algum interesse para um ou outro historiador que se queira debruçar sobre os sentimentos de quem foi obrigado a fazer uma guerra. Mas como é tão comum que a grande percentagem dos que vão para a guerra, o fazem numa primeira fase de forma forçada... é chão que dá pouca uva.
De qualquer modo junto mais algumas fotos e já telefonei ao Estorninho a pedir para te enviar mais, pois ele era o fotografo da Companhia.

Deve-te um obrigado muito grande pelo carinho como me acolhes e acolhes os meus escritos. És para mim um grande homem e sobretudo um grande amigo. Creio que todos nós os combatentes e porque não os portugueses estamos em dívida para contigo. Através do blogue não só deste forma à história da guerra da Guiné, na sua verdadeira dimensão, como abriste portas a um reencontro de cada um consigo próprio, com os camaradas e com o passado que muitos teimavam em esquecer senão negar. Testemunhos concretos são os convívios abertos as Tabancas solidificadas e o que eu chamo tabanquinhas, ou seja os almoços informais aqui e além de grupos que através do blogue e das tabancas se foram formando.

Obrigado Luís
Beijos e abraços para a família.
Mentenhas afetuosas para ti.

admor disse...

É mesmo assim como diz o Teixeira, nas nossas vivências de enfermeiros na Guiné. Eu também fazia muita prospecção na tabanca ao ponto de deparar por vezes com os meus colegas feiticeiros a fazerem o seu trabalho.
Acho que os espantei por diversas vezes ficando a ver o serviço até ao fim. Só nessa altura é que me retirava despedindo-me de todos. Mas por incrível que pareça nunca reparei em nenhum sentimento de hostilidade por parte deles, quer em Guidage, quer em Barro.
Acho que por vezes as mães das crianças é que ficavam mais embatucadas do que eu ou os meus concorrentes naturalistas.
Também nunca lhes disse para recorrerem só a mim ou só a eles.
No fundo eu achava que qualquer um de nós estava a fazer o melhor que podia.
No fim disto tudo do que eu me recrimino foi de não ter feito um diário apontando os factos mais relevantes, porque a minha memória(que eu achava elefantina) afinal não era tão elefantina como isso.
Um grande abraço para os dois e para os restantes camaradas do blogue.
Adriano Moreira

Zé Teixeira disse...

Luís. Ao viajar pela Mata do Cantanhez podemos localizar muitas tabancas que o deixaram de ser e renasceram. Outras como Farim do Cantanhez que tu bem conheces nasceu pelas mãos de antigos guerrilheiros do PAIGC que vieram do Norte para nos fazer cara a vida e acabaram por se fixarem no Cantanhez.
Changue Laia antes de Ponte Balana foi um lugar de terror durante a guerra. hoje tem uma tabanca e por aí fora. é um bom desafio para sociólogos e historiadores.
Abraço
ZÉ Teixeira

Luís Graça disse...

Dizes tu, Zé:

"O que eu escrevi durante a guerra não creio que prenda a atenção dos camaradas, pois são vivências que todos nós sentimos. Talvez possa ter algum interesse para um ou outro historiador que se queira debruçar sobre os sentimentos de quem foi obrigado a fazer uma guerra. Mas como é tão comum que a grande percentagem dos que vão para a guerra, o fazem numa primeira fase de forma forçada... é chão que dá pouca uva." (...)

Apesar da tua modéstia, deixa-me reforçar a ideia de que poucos, como tu, alimentaram um diário... E 40 e tal anos depois podemos ter o privilégio de ler o que escreveste... Podias tê-lo destruído, ao teu diário, mas não, quiseste partilhá-lo com os os teus filhos, a tua família, os teus camaradas, os teus contemporâneos... Estou-te obrigado por isso, pela parte que me cabe. LG

Bispo1419 disse...

Meu caro Zé Teixeira,
venho agora aqui só para te enviar um grande abraço e para te felicitar pelo homem que hoje és e pelo soldado que foste.

Manuel Joaquim