quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12627: O segredo de... (15): Processo concluído (Augusto Silva Santos, ex.fur mil, CCAÇ 3306/BCAÇ 3833, Pelundo, Có e Jolmete, 1971/73, e Depósito de Adidos, Secção de Justiça, 1973))

1. Mensagem do nosso camarada Augusto Silva Santos (ex-Fur Mil da CCAÇ 3306/BCAÇ 3833, Pelundo, Có e Jolmete, 1971/73), com data de 21 de Janeiro de 2014:

Olá Camarada e Amigo Carlos Vinhal!
Antes de mais, espero que esteja tudo bem contigo e que tenhas começado da melhor forma este início de ano.
Depois de mais algum tempo de ausência destas lides, aqui estou eu de volta. Desta feita porém, confesso que é com alguma dificuldade que o faço, e só após alguma reflexão ganhei coragem para o fazer, tendo em conta que o meu relato se enquadra no tema "O Segredo de...", já de si "complicado" por poder ferir algumas susceptibilidade. Mas olha, aqui vai (não quero deixar de partilhar convosco este meu segredo), deixando ao vosso critério a possível publicação do texto que envio em anexo, juntamente com duas fotos do tempo da minha passagem pelo Depósito de Adidos em Brá, para possível ilustração o mesmo.

Um Grande e Forte Abraço
Augusto Silva Santos


“O segredo de…”

Processo concluído

Depois de ter lido o recente poste do camarada António Graça de Abreu sobre esta série e, de igualmente ter consultado alguns dos postes anteriores sobre este mesmo tema por influência do que o Luís Graça escreveu, ganhei coragem para partilhar convosco algo que menos de meia dúzia de pessoas até hoje tomaram conhecimento.

No meu tempo de Guiné, mais propriamente aquando da minha passagem pela Secção de Justiça do Depósito de Adidos em Brá no ano de 1973, procedi a algo que, na altura a ser descoberto, no mínimo constituiria matéria do foro do direito penal militar, mas do qual ainda hoje não me arrependo por considerar que, em consciência, procedi de forma a aliviar um sofrimento desnecessário de um camarada.

A única situação que ainda me pode causar algum arrependimento, relaciona-se com o facto de ter traído a confiança do Chefe da Secção de Justiça, pessoa com idade para ser meu pai, que em mim confiava e que na realidade me tratava como um filho. Mantinha com ele uma relação muito franca e cordial, daí ainda hoje o meu constrangimento.

Conforme já mencionei em poste anterior, o facto de estar colocado no Depósito de Adidos, obrigava a que periodicamente fosse escalado para fazer Sargento de Dia à Casa de Reclusão Militar igualmente sita em Brá, tendo num desses serviços tomado conhecimento de que um Soldado Condutor do meu ex-BCaç 3833, mais propriamente da CCaç 3307, e que a mim se dirigiu, se encontrava detido há já seis meses, pelo facto de numa das suas últimas deslocações do Pelundo para Bissau numa coluna de reabastecimento, na estrada perto de Có, ter atropelado mortalmente um guineense, na sequência do qual lhe foi movido um processo. Depois do Batalhão ter regressado à metrópole em Dezembro de 1972, aquele mesmo processo transitou para a Secção de Justiça do Depósito de Adidos, na qual eu exercia então a função de escrivão.

O Soldado em questão encontrava-se numa situação delicada e sem perspectivas de o processo ter um fim breve e favorável a seu rápido regresso à metrópole, primeiro porque a vítima se tratava de alguém importante na tabanca onde habitava, e depois porque os testemunhos sobre como o atropelamento se havia dado há bastantes meses atrás, eram algo contraditórios relativamente às pessoas inquiridas. Os militares então ouvidos disseram que a culpa havia sido do guineense que atravessou a estrada de repente e entre as viaturas que constituíam a coluna, sem ter dado tempo a uma travagem, e os testemunhos dos guineenses então também inquiridos, diziam que a viatura conduzida pelo Soldado em questão seguia em excesso de velocidade e que nem havia tentado uma travagem. O Condutor que comigo várias vezes falou sobre o assunto, garantia-me que o infeliz se havia atravessado entre a viatura por si conduzida e a que seguia na sua frente a curta distância, facto que não permitiu que o tivesse avistado a tempo de travar, pelo que não se considerava culpado do atropelamento.

O processo continuava a arrastar-se sem fim à vista, embora o já mencionado Oficial de Justiça, de alguma forma por mim “pressionado”, já tivesse manifestado a intenção de dar conclusão ao mesmo após o seu regresso de férias à metrópole, o que representava a prisão efectiva do infeliz Soldado, no mínimo por mais dois meses. Aproveitando a ausência do Oficial em questão em gozo de férias, procedi ao “crime” de dar o processo como concluído e remetido o mesmo para despacho, falsificando a assinatura do Capitão. Desta forma, passado poucos dias o Soldado saiu da situação absurda de recluso, tendo o seu regresso à metrópole sido uma realidade passado pouco tempo.

Importa salientar que os processos na Secção de Justiça eram tantos que o Capitão (felizmente para mim) nunca mais se lembrou daquele, e que o Soldado em questão apenas tomou conhecimento que eu havia pedido para que a conclusão do seu processo fosse célere, e nunca da situação atrás relatada.

Apelo à compreensão de todos os camaradas por esta minha atitude tomada em tempo de guerra e em circunstâncias então vividas, e apenas levada a cabo com o intuito de auxiliar um camarada alegadamente inocente. Se o nosso camarada Joaquim Luís Fernandes que, tal como eu, prestou serviço naquela Secção de Justiça, ler este meu relato, espero igualmente a sua compreensão.



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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12545: O segredo de... (14): António Graça de Abreu (,ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74): Também fiz o curso de Minas e Armadilhas, em Tancos, ainda em 1971... E até sonhei um dia em ser... bombista!

9 comentários:

Joaquim Luís Fernandes disse...

Caro camarada Augusto Santos

Antes de mais a minha saudação amiga.

Gostei muito deste teu "Segredo"; Com ele, interpelas-me a decidir-me por avançar e contar também um dos meus, que anda a fervilhar-me na mente. Um dia destes aparece.

Gostei do que me recordas, do local de trabalho, do Chefe Capitão SGE..., excelente pessoa, que depois de me entrevistar, concluiu que eu não era suficiente duro e militar, para um lugar de que necessitava, não sei se para comandar uma das Companhias, se para a Casa de Reclusão Militar,(que foi um dos meus temores, sempre adiado) tendo-me colocado na Secção de Justiça. E fez ele muito bem.

Quanto à tua atitude e ação de safares um "desgraçado", só diz bem de ti, da tua humanidade, reflectindo também uma certa balda, que também existia na Justiça Militar, apesar das NEPES e do CJM. E ainda bem, que isto de Justiça dos Homens, tem muito que se lhe diga. Basta ver nos nossos dias, como vamos de Justiça.

Um forte abraço e até outro dia.
JLFernandes

Anónimo disse...

De: Augusto Silva Santos
Para: Joaquim Luís Fernandes

Camarada e Amigo,

Muito obrigado pelas tuas palavras amigas e de compreensão.
Como deves imaginar reflecti muito antes de me atrever a publicar este meu "segredo". Não foi fácil, não tanto por recear esta ou aquela crítica, mas mais por ser uma situação de abuso de confiança, de ter traído uma pessoa que em mim muito confiava.

Atreve-te, e conta também o teu "segredo"... Fico a aguardar.

Um grande e forte abraço e, mais uma vez, obrigado pelas tuas palavras.

Joaquim Luís Fernandes disse...

Caro camarada e amigo Augusto

Compreendo os teus escrúpulos, ficam-te bem; Também não me consigo imaginar a falssificar uma assinatura, mas... considerando o que estava em causa...

Às vezes temos que saber relativizar os assuntos; Neste caso e nas circunstâncias que nos contas, não sei se não teria feito o mesmo!...
Ou talvez me faltasse a coragem que a ti não faltou. Parabéns.

Um abraço
JLFernandes

Luís Graça disse...

Para os crentes, Deus escreve direito por linhas tortas. Para os menos crentes, como eu, e para mais sociólogo, a Justiça em Absoluto não existe, é uma construção dos homens, e evolui com eles e as suas sociedades... O conceito de justiça é uam "construção social", direu eu em "sociologuês"...

O que nos contas (e parabéns pela tua coragem ao fazê-lo!) passou-se há 40 anos. O enquadramento moral, disciplinar e penal para uma ação como a que acabas de relatar só pode ser visto no contexto da época e da instituição militar de que fazias parte...

Quem é que, hoje, em 2014, se atreveria a lançar a primeira pedra contra ti ? A pior punição dos nossos atos é sempre aquela que é ditada pelos nossos pares, amigos, parentes, patrícios, concidadãos... Em última análise é a sanção social...

Deixa-me antes sublinhar o teu altruísmo e empatia: fostes capaz de te pôr na pele de um outro homemm, teu camarado, enredado nas teias da burocracia do sistema judicial militar...

Felizmente não tenho toga para me disfarçar de juiz para te acusar e condenar. Por outro lado, neste blogue (e muito em particular nesta série "O segredo de...") é "proibido julgar", como sabes...

Não posso, evidentemente, impedir que alguém o faça. em nome da liberdade de pensamento e de expressão, um valor que nos é tão caro como a justiça. Mas gostaría mesmo que esta série "O segredo de..." tivesse uma longa vida, e que muitos outros camaradas nossos conseguissem seguir os teus passos e o exemplo de outros camaradas que já por aqui passaram, por este "confessionário" do blogue...

Se calhar a imagem do "confessionário" não é a mais feliz, porque o objetivo é tão só "confessar", revelar algo que estava escondido, oculto... e não propriamenet "pedir perdão", "pedir a remissão dos pecados"...

Eu entendo o teu receio inicial de ser mal interpretado e, pior, severamente julgado, em público, pelos teus camaradas para quem a lei é lei, igual para todos, e mesmo quando é dura... ("Dura lex, sed lex")...

Mas neste caso, seria uma hipocrisia, farisaica, alguém julgar-te... Quem de nós, na tropa e na guerra, teve um conduta impoluta, totamente isenta de "pecados" (maiores ou menores) ? Do general ao simples soldado ?...

Mereces o meu apreço, consideração e camaradagem pela tua "ousadia"... LG

Anónimo disse...

De: Augusto Silva Santos
Para: Joaquim Luís Fernandes
Luís Graça

Camaradas e Amigos,

Uma vez mais, muito obrigado pela vossa compreensão e palavras amigas.

Para ambos, um forte abraço com votos de bom fim de semana.

Anónimo disse...

Caro camarada A.S.Santos


Nem sempre o que é ilegal é eticamente reprovável.

A justiça tem os olhos tapados e às vezes é necessário pelo menos destapar-lhe um olho.

Julgo que não se deve sentir remorsos e muito menos pedir desculpa quando o acto praticado apenas visa repor justiça, sentido de solidariedade e humanismo.

Um grande alfa bravo

C.Martins

Anónimo disse...

De: Augusto Silva Santos
Para: C. Martins

Também para ti Camarada e Amigo, o meu muito obrigado pelas tuas palavras de compreensão e apoio.

Recebe um grande e forte abraço.

Júlio Duarte Lêdo disse...

Meu Amigo e camarada da Guiné. Augusto Silva Santos, através deste blogue no qual agradeço ao nosso amigo Luís Graça por esta magnifica pagina, ao fim de mais de 40 anos acabo de saber quem me soltou duma situação que ainda hoje me deprime, não foi fácil ficar mais de meio ano preso por não ter culpa nenhuma, a dois dias de vir para a metrópole, um dia eu vou contar a historia, um grande abraço para ti Santos e para o teu irmão da 3307 muito obrigado

Joaquim José Mendes Santos disse...

Ao ler o artigo do Silva Santos imediatamente retrocedi no tempo(40 anos ).Fui condutor tal como Júlio Ledo na 3307,vivemos 24 sobre 24 horas durante 24 meses ,isto quase que nos torna irmãos.O Júlio ficou lá e essa lembrança , não nos larga em cada almoço que fazemos nós os rodinhas temos de falar neste episódio.Quero através da Tabanca Grande dar um forte abraço ao Augusto Silva Santos, obrigado amigo.