domingo, 22 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14399: Brunhoso há 50 anos (3): Festejos do Entrudo (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Brunhoso - Com a devida vénia


1. Em mensagem do dia 17 de Março de 2015, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), fala-nos dos festejos do Caranaval de antigamente da sua terra, Brunhoso.


Brunhoso há 50 anos

3 - Festejos do Entrudo

Como em quase todas as terras do nordeste transmontano e provavelmente na maioria das aldeias do interior do país, em Brunhoso celebravam-se três festas anuais: o Carnaval, o Natal e festa a um santo que nem sempre coincidia com o santo padroeiro.

No Carnaval, festa do tempo frio de Fevereiro, comia-se em excesso, sobretudo ao almoço, era o tempo das casulas com o bulho, noutras terras chamado butelo, o pé de porco, a orelha, a linguiça, tudo cozido numa grande panela de ferro à lareira. Bebia-se em excesso sobretudo vinho, durante o dia e noite, até as forças e as pernas o permitirem.

Os rapazes todos os anos faziam um grande boneco, com roupas velhas, que enchiam de palha, muitos deles vestiam-se com roupas de mulher ou disfarçados doutras formas, eram os caretos, passeavam pela aldeia, esse boneco, que era o Entrudo, num carro de vacas ou às costas de uns e outros, ao som de quadras improvisadas referidas ao dia e à figura, com muitas bombas de carnaval e bombas de lágrimas coloridas (rasca-pés na gíria do povo). Essa figura, da qual desconheço a origem e a idade, ganhou tanta importância que só recentemente entendi por que é que os meus conterrâneos falavam sempre no dia de Entrudo e não no dia de Carnaval. No Carnaval o rei era o Entrudo, um rei maltratado com violência física e verbal.

Acredito que quase toda a aldeia perdeu a memória da palavra Carnaval para se fixar somente no Entrudo, essa figura trágica, tão maltratada. O Carnaval ou Entrudo que dizem alguns eruditos terá origens em cultos anteriores ao cristianismo, tem um pouco de todos esses excessos dalgumas festas gregas, celtas, romanas e doutros povos, é pois natural que tenha uma origem muito antiga. Sendo uma festa popular, de brincadeiras, excessos vínicos e outros, sobretudo masculinos, pois era uma festa de rapazes e homens.

Festa que as mulheres toleravam e em que passivamente participavam, mostrando bastante medo, real ou ficticio pelo Entrudo e pelos caretos, e na alimentação melhorada em doces e petiscos que faziam, sabendo que estavam a contribuir para melhorar essa grande farra que era sobretudo deles, dos seus homens e dos seus filhos.

Caretos de Trás-os-Montes

O trabalho era muito, era duro, quase não havia dias de folga, os homens tinham direito a esse dia de descontração e de abandono das regras a que essa vida dura os obrigava. A Igreja, embora contrariada, também tolerava essa festa que não era dedicada a nenhum Deus ou Santo do seu calendário. A Quaresma estava à porta e os homens seriam obrigados a cumprir muitas penitências.

O antigo regime sendo tão austero e pouco tolerante com manifestações populares, sempre admitiu esse desvario, esse excesso com tanto álcool, bombas e arruaças.

Nunca se deve impedir a respiração da alma de um povo, Salazar, um ditador bastante erudito, criado junto do povo, compreendeu isso. A democracia, oxalá se mantenha, tem procurado acabar com o Carnaval. Para mim isso é das ofensas mais mesquinhas que têm tentado fazer ao povo, e estou a falar do povo mais humilde, que é o que mais se diverte nesse dia. É muito grave tirar-lhe o pão, mais grave ainda é querer tirar-lhe a alma e a alegria de viver.
Quem quis ou quem quer acabar com o Carnaval, nunca bebeu um copo de vinho numa roda na praça de uma aldeia, a passar de boca em boca, nunca conheceu nem amou esse povo simples e trabalhador.

Quando se fala tanto e se promovem patrimónios materiais e imateriais de Portugal para turista estrangeiro ver, ouvir, apreciar, porquê querer destruir a alma de um povo naquilo que ela tem de mais antigo, tão antigo, que ele encontra e abraça, uma multidão de parentes e amigos, que consigo vêm confraternizar nessa grande festa, nesse convívio tão pleno de emoções, tão alargado aos que partiram para longes terras, aos que continuam a sobreviver lá, em condições cada vez mais difíceis e aos que partiram para lá da vida.

VIVA O CARNAVAL! VIVA O ENTRUDO!

Saudações Transmontanas!

Um abraço
Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14381: Brunhoso há 50 anos (2): As Autoridades - Continuação (Francisco Baptista)

4 comentários:

José Botelho Colaço disse...

O entrudo como se diz cada terra com seu uso cada roca com seu fuso mas no entrudo pelo que conheço os usos não diferiam muito por exemplo na minha terra no sul além do boneco de palha havia sempre um elemento vivo a fazer de morto e a improvisada padiola era uma escada que quando acabava a cerimónia fúnebre o morto vivo ficava com o costado todo empenado.
Um abraço.

Anónimo disse...

Caro Francisco:
Belíssima descrição de mais um aspecto da cultura de Portugal. Gostei ainda daquele remoque aos governantes que, inebriados pela doutrina de uma Europa igual para todos, ousam atacar os costumes mais ancestrais das comunidades locais, ajudando assim à desertificação do interior.
Continua amigo Francisco.
Carvalho de Mampatá.

JD disse...

Caríssimo Francisco,
Com o enriquecimento de fotografias ricas de cores, fazes nova incursão sobre a alegria festeja do Entrudo na tua terra.
E se bem o fizeste, melhor despertaste a vontade de uma deslocação pela fresca, para partilhar do convívio alegre que lá se pratica.
Para aquecer as almas, cada um que se sirva da quantidade energética confeccionada na panela metálica, e temperada pela pinga regional.
Já tenho visto pela televisão algumas imagens dessas festas, pelo que não me passa pela cabeça qualquer intervenção de quem manda, no sentido de "atacar os costumes mais ancestrais", mas falta-me o conhecimento. Sobre as razões que presidem à ideia do despovoamento e desertificação do interior, isso já é diferente, e radica nos negócios que prosperam pelo litoral, numa política cega de amiguismo e partilha de lucro, susceptível de hipotecar grandes regiões do país no que respeita ao ordenamento do território. Mas isto é já derivar para outra conversa.
Abraços fraternos
JD

Anónimo disse...



Esqueci-me da quarta, festa, festa do renascimento, da primavera.
Esqueci-me da Páscoa.
Enfim, esquecimento, talvez causado pela roda dos anos, em que a vida já parece não se querer renovar!
A todos uma feliz primavera.
Francisco Baptista