1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua magnífica série.
Fernando Rodrigues, furriel miliciano, com efémera passagem pela Guiné.
Um camarada que assistiu à entrega do Cumeré ao PAIGC.
Conhecemo-nos há décadas! Somos moços de uma geração onde a guerra no então Ultramar impunha restrições objetivas a uma juventude cujos olhares se fixavam numa imensurável procura de um futuro perpetuamente próspero. Porém, nem tudo era assim. O conflito de além-mar, em plena efervescência, suscitava razões óbvias que entrosavam num rol de preocupações e que se entrelaçavam com respostas invariavelmente inacabadas.
Fernando Augusto Rodrigues, ex-furriel miliciano, natural de Beja, após o 25 de Abril de 1974 deparou-se com a sua mobilização para a Guiné. Uma comissão inesperada, tendo em conta que a guerra nas antigas províncias ultramarinas já sinalizava o seu fim. Todavia, a sua hora chegou e o camarada lá partiu.
Estávamos em junho do 1974 e a sua rendição individual tinha como objetivo substituir um 1º sargento que se encontrava em Bafatá. A decisão do nosso sargento não terá sido pacífica, uma vez que o antigo camarada recusou sair, sendo que a decisão final sobre o Fernando foi uma estadia temporária num outro quartel.
Desta situação inesperada, eis o bom do meu amigo Fernando, nosso camarada de armas, a fazer parte do expediente normal do conhecido quartel do Cumeré. Um aquartelamento que normalmente recebia os piriquitos recém chegados a solo guineense. Um sítio, aliás, onde eram dadas à rapaziada as primeiras instruções básicas para o conflito real que se seguia num palanque indesejado.
Acontece que na fase de evacuação das nossas tropas, o Cumeré registou um maior afluxo de soldados que esperavam desalmadamente o seu embarque para o nosso País, agora livre, onde a família, em uníssono, aguardavam os seus ente queridos.
Sintetizando: o nosso antigo camarada furriel miliciano Fernando Rodrigues não foi um soldado de guerra, mas um militar que se confrontou com um regime de transição e de subsequentes entregas dos nossos antigos quartéis. Assim, teve o privilégio em assistir, “ao vivo e a cores”, não obstante o dia apresentar-se cinzento e chuvoso, à entrega do Cumeré ao PAIGC.
Cumeré, onde o pessoal da minha companhia aguardou pela hora do regresso à nossa Pátria Lusa. Recordo que foi justamente nesta derradeira estadia na Guiné que me deparei com o meu último “ataque” de paludismo. Sei que a febre não deu tréguas, os arrepios de frio muito menos, restando porém a certeza que a guerra no terreno tinha, finalmente, acabado.
A guerra, aquela com a qual então me deparei, era sim em “vale de lençóis”, sobrando a certeza que não fiz parte de um grupo de camaradas que, na altura, dizimavam líquidos fresquinhos para aconchegar mágoas passadas. Tanto mais que já cheirava a “Lisboa Menina e Moça” e a um “Cravo Vermelho”, símbolo da Revolução, esperar-nos-ia em solo firme.
Neste relato o nosso camarada lembra duas das suas viagens, já em tempo de paz, sendo uma delas a Nhacra, onde foi jogar futebol e comer leitão assado e uma outra que o levou a conhecer Mansoa e a sua ponte, um local apetecível para imagens fotogénicas, asseguravam os conhecedores da zona.
Por outro lado, o Fernando reconhece que embora o tempo fosse de paz, as histórias de guerra teimaram em persistir. Fala sobre um caso mortal de um furriel miliciano que se encontrava no QG, mas que “ao entrar de serviço e ao acender um cigarro, ter-se-á encostado a um arame e inesperadamente a arma que transportava disparou, sendo o seu fim trágico”. Outro camarada que fará parte de um infindável rol de falecidos e cujo fim foi uma comissão militar na guerra do ultramar.
Resquícios de uma peleja onde a facilidade do pessoal permitia descuidos que, humanamente, eram considerados impensáveis. Contudo, a verdade que todos nós conhecemos, diz-nos que houve camaradas que partiram para o além face às suas pretensas fragilidades em saber lidar com um conteúdo de uma guerrilha extremamente traiçoeira. O facilitismo permitia devaneios, depois lá vinha a desgraça.
Faltou, talvez, uma preparação profícua a contingentes de soldados que partiam para os campos de batalha mal preparados, desconhecendo os conteúdos que a guerra impunham. Sei, e reconheço, que essa era a verdade amiudadamente constatada. Só o tempo do conflito permitia uma adaptação aos horrores a cada instante deparados.
O nosso antigo camarada Fernando Rodrigues, acabou a sua curta comissão na Guiné a prestar serviço no QG (Quartel General), sendo o seu regresso a Lisboa no dia 3 de outubro de 1974.
Para trás ficou a certeza que foi um dos militares portugueses que se deparou com o içar da bandeira do PAIGC no Cumeré, precisamente no mastro que fora antes ocupado pela bandeira nacional portuguesa.
Fotos do furriel miliciano Fernandes Rodrigues
Aspeto geral do quartel do Cumeré
Atrás as tropas do PAIGC perfiladas para cerimónia
O dia da entrega do Cumeré ao PAIGC e o içar da bandeira
No quarto
Com o furriel Joaquim Fernandes de Vila de Condes
Como cenário de fundo o rio Geba
Passeando numa rua em Bissau
Um abraço camaradas,
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
8 DE FEVEREIRO DE 2015 > Guiné 63/74 - P14230: Memória dos lugares (285): a ponte-cais de Binta e o madeireiro Manuel Ribeiro Carvalho (José Eduardo Oliveira / Antº Rosinha)
2 comentários:
Bem, caro José Saúde
A alguém teria que calhar a tarefa e nesse caso até parece que foi bem melhor ser um 'periquito' já que não carregava na memória 'sementes de ódio' que poderiam tolher-lhe as acções.
Às vezes procuramos aqui depoimentos de quem "fechou a porta" e este caso torna-se curioso pois afinal trata-se de alguém que já "foi para lá" depois ter "ter acabado".
Relativamente ao teu último ataque, de paludismo, claro, sinto que isso foi mesmo para te dar uma 'recordação de despedida'. Curiosamente também eu tive um 'mimo' desses antes de regressar definitivamente, mas foi relativamente leve....
Abraço
Hélder S.
Boas recordações do Cumeré.
Em Novembro de 1969 fui várias vezes ao Cumeré.
Ao restaurante do "Branco do Cumeré" que tinha um excelente camarão e cerveja bem gelada.
O destacamento militar era constituído por uma Secção da CCAÇ 2615, comandada pelo Furriel Orlando Nunes, o "Dog", que em 1971 dizia aos piriquitos que tinha sido Comandante do Cumeré e ninguém acreditava.
Sim, em Abril de 1974 o Cumeré era um dos polos mais importantes da presença portuguesa.
Abraço
Manuel Amaro
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