Recorte de jornal: O Comércio do Porto, 18 de setembro de 1974. Gentileza do Mário Miguéis (que nos mandou, em 22/4/2009, o recorte completo com a reportagem). Este prestigiado jornal diário do Porto deixou de se publicar. Na foto acima, o "morto-vivo" António da Silva Batitsa (1950-2016), na sua terra, Maia, prestando declarações ao repórter. O texto da reportagem é de Helena Policarpo, e as fotos de Amadeu Botelho. A nossa gratidão a todos. Este também é um pedacinho da nossa história.
1. Mensagem do José Teixeira, um dos régulo da Tabanca de Matosinhos que tanto acarinhou o António da Silva Batista, no dia da sua morte "verdadeira (já que ele "morreu duas vezes"):
Texto com memórias que recolhi ontem, no velório do corpo do nosso infortunado camarada Batista, com valor histórico e afetivo, não lhe dei título e não sei se deva ser publicado, dado o seu conteúdo, mas vocês, editores, se entenderem que pode ser, tudo bem!... Acho que o Batista iria gostar de "relembrar" esta história ou gostaria de a ouvir no dia da sua morte, contada por um amigo e camarada da Guiné... É uma bela história de amor que merece ser partilhada com os demais amigos e camaradas da Guiné, onde o Batista morreu uma vez e nasceu outra vez para a vida. (JT):
- Sou eu! Não se assuste! Sou eu mesmo!
António da Silva Batista, sold at inf, foto da caderneta militar |
Foi assim que o António Batista se dirigiu à Camilinha, uma amiga da namorada que ele tinha deixado na Metrópole, mais propriamente em Santa Cruz do Bispo, Matosinhos, quando embarcou para a Guiné.
- Ó rapaz, não podes ser tu! Eu fui ao teu funeral! - respondeu-lhe a Camilinha, com o coração aos saltos.
- Sou eu mesmo e quero pedir-lhe um favor...
...
- Ele teve um “funeral” como nunca houvera em Crestins, Maia, ai se teve! - disse-me a Camilinha.
Toda a freguesia saiu para o acompanhar ao Cemitério de Moreira da Maia e fizeram-lhe uma campa bem linda. A mãe, coitadinha, não falhou nem um dia na sua visita à campa do filho, até ao dia em que ele lhe apareceu em casa.
- Era uma dor, ver a pobre mulher, magrinha, ela foi sempre muito magrinha, descalça, a fazer aquele caminho e olhe que ainda é longe! - disse um velhinho, que estava ao lado, velho amigo da família do António Batista.
- Pois ele chegou ao pé e a mim assim de surpresa e disse-me:
- "Camilinha! Vim falar consigo, porque sei que você é muito amiga da Lola e eu sei que ela gosta muito de si. Queria pedir-lhe para ir lá dentro e peça-lhe para ela vir consigo cá fora, mas não diga que sou eu que estou aqui".
Ele já devia saber que a Lola lhe guardou respeito enquanto ele esteve na Guiné, foi ao dito funeral quando foi dado como morto e entregaram o corpo à família, em julho de 1972. Depois de fazer o luto que ele lhe mereceu, partiu para outra. À data do seu regresso, em setembro de 1974, a Lola namorava para outro rapaz e estava em vias de casamento.
E continuou a Camilinha:
- Como ele me pediu, fui junto da Lola que estava sentada fora da porta ao sol, descalça, a conversar com umas amigas - era uma tarde de Setembro e estava um lindo dia de sol - e disse à Lola:
- "Anda comigo que está ali uma pessoa que quer falar contigo".
Ela calçou os chinelos e seguiu-me. Quando encarou com ele, ficou muda a olhar, a olhar, e passados uns segundos correram um para o outro e ficaram ali abraçados. Foi lindo vê-los abraçados, se foi!
E prosseguindo:
- Foi um dia muito lindo, sabe! Ela tinha outro namorado, mas desfez o namoro e voltou para o “morto vivo”. É por este nome que toda a gente o conhece.... Ó Lola, como se chamava o teu marido?... É que eu nunca sabia o nome dele - rematou a Camilinha -, sempre o conheci pelo “morto vivo”!...
- Chama-se António! António Batista!" - respondeu a Lola, ao meu lado.
A filha do António Batista ouvia em silêncio. As lágrimas teimavam em deslizar pela face, neste dia em que o António Batista faleceu de verdade, depois de um ano de intenso sofrimento.
José Teixeira
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Nota do editor:
Vd. os dois poste anteriores desta série >
24 de março de 2016 > Guiné 63/74 - P15896: In Memoriam (248): Morreu também, ontem, o José António Almeida Rodrigues (1950-2016), natural da Régua... Foi companheiro de infortúnio, no cativeiro, em Conacri e no Boé, do nosso António da Silva Batista (1950-2016)... Fugiu dos seus captores, em março de 1974, andou 9 dias ao longo das margens do Rio Corubal até chegar ao Saltinho... Teve uma vida de miséria, mas também conheceu a compaixão humana, a solidariedade e a camaradagem... É aqui evocado pelo José Manuel Lopes.
23 de março de 2016 > Guiné 63/74 - P15894: In Memoriam (247): António da Silva Batista (1950-2016)... A segunda morte (esta definitiva!) de um camarada a quem carinhosamente chamávamos o "morto-vivo do Quirafo". O funeral é amanhã, às 15h45, na igreja de Santa Cruz do Bispo, Matosinhos
14 comentários:
Para os camaradas que deram sempre o seu apoio e ajudaram estes nossos camaradas o meu abraço de pesar.
BS
António Batista e todos os Combatentes, sempre PRESENTES!
Olá Camaradas
Seria bom que os jornalistas "cá do bairro" em vez de se andarem preocupar com os filhos do vento e outros temas igualmente tolos se tivessem debruçado sobre a vida destes e de todos os outros homens que ficaram prisioneiros do PAIGC e recolhessem os seus depoimentos. A tropa (em especial os psiquiatras militares) que eu saiba não o fez, mas os historiadores e outros investigadores...
Agora é tarde.
Pensemos no momento da captura e da "fuga" para o Senegal ou para a Rep. Guiné e imaginemos o sofrimento. E a primeira noite de prisão!
Não sabemos nada dos "esforços" para a sua libertação feitos pelas "autoridades". Provavelmente nenhuns.
Não sabemos nada sobre a fome e o frio - físico, mas especialmente espiritual - que passaram encafuados numas "prisões" vigiados pelos guerrilheiros devidamente mentalizados acerca da maldade dos colonialistas.
E as datas festivas de cada um: anos, Páscoa, Natal, aniversários dos familiares, festas das respectivas terras, etc.
E a incerteza de como tudo ia acabar. Sendo certo que não estavam a coberto de eu um diligente guerrilheiro resolvesse purificar o mundo...
Mas acima de tudo: aquilo nunca mais acabava...
Se houver gente habilitada por aí talvez fosse boa ideia dar-lhe os contactos deste sobreviventes a ver se ainda se aproveita algo.
Um a ba Páscoa para todas
António J. P. Costa
Parabéns, Zé, pela delicadeza, sensibilidade e carinho com que recolheste e trataste estas "confidências" da Camilinha... Na realidade, acabas de dar densidade poética e humana a uma linda história de amor que enobrece os seus protagonistas, o António e a Lola (Maria da Glória)... Seria bom fazeres chegar uma cópia em papel para entregarm oportunamente à filha deles, que vive em Santa Cruz do Bispo, e à Camilinha...
É um lindo texto este do Zé Teixeira, e revelador de um drama que acabou em bem. O nosso Baptista, por momentos, ter-se-á esquecido dos horrores que viveu, e com a sua amada, deve ter sentido que vale a pena viver, enquanto a vida nos reservar surpresas agradáveis, como diria Ortega y Gasset.
Para o Zé Teixeira e os restantes camaradas de Matosinhos vai o meu apreço pela solidariedade demonstrada.
Abraços fraternos
JD
Um jovem, um militar, um soldado na guerra, um morto na guerra, um prisioneiro ignorado e um ressuscitado. Ontem foi sepultado, anonimamente, um dos nossos irmãos do mato. Até um dia destes, Baptista - irmão do mato.
Carvalho de Mampatá
Ò Zé, adorei a frase: "À data do seu regresso, em setembro de 1974, a Lola namorava PARA outro rapaz e estava em vias de casamento"...
Zé: há subtilezas do "falar do norte" que os gajos do sul, os "mouros", não apanham facilmente... Eu, mouro, esforço-se por entender as vossas idiossincrasias... mas nem sempre alcanço...
Consultado o dicionário, vejo que o verso namorar é: (i) transitivo (namorar um rapaz); (ii) namorar com um rapaz; e (iii) pronominal (namoro-te).
Agora essa do "namoro para um rapaz" (por conta de ?), nunca tinha ouvido dizer... Mas quem faz a língua é povo falante... Ah!, grande Camilinha!... E grande Zé, que registou e reproduziu a fala ... É por isso é que eu continuo a ser "fã" dos blogues... Devo ser dos últimos, os blogueiros estão em vias de extinção com o aumento exponencial do feicebuqueiro.... Ebntendo o "Facebook": é fácil, é barato, e dá milhões... Tenho que me conformar... A Tabanca Grande está a "desertar" para o "Facebook"... Valerá a pena a continuar, por aqui, teimosamente, ingloriamente ? O "Facebook" é, sme dúvida, muito mais amigável, interativo, e agradável como o pudim instantâneo... Quem é que tem a pachorra de ler um texto sublime como este, do Zé Teixeiro ? Quanto tempo leva a escrever (e a editar) um bom texto, com qualidade ?... Acho que está na hora de me reformar, Zé, e começar a olhar só para o meu umbigo... O mundo lá fora está feio, triste e inumano... LG
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namorar | v. tr. | v. intr. | v. pron.
na·mo·rar - Conjugar
verbo transitivo
1. Andar de namoro com; requestar.
2. Seduzir, encantar.
3. Cobiçar.
verbo intransitivo
4. Fazer namoro.
5. Ser namorador.
verbo pronominal
6. Sentir amor; apaixonar-se.
"namorar", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://www.priberam.pt/DLPO/namorar [consultado em 24-03-2016].
Amigo e camarada Luís Graça:
A expressão "namorar para" é uma expressão popular que só conheci aqui na região do Porto. Em Trás-Os-Montes não é usada e soa mal, tal como em Viana do Castelo terra da minha mulher. No Porto é frequente ouvirmos essa expressão, inclusivé ainda hoje, entre as moças de 14 ou poucos mais anos que frequentam a E.B 2,3 aqui perto da minha casa. Já há muitos anos que me deixei encantar por ela e pelo significado mágico que comporta. Talvez tu, que gostas de tocar muitos instrumentos, ou um linguista teu amigo o saiba decifrar.
Um abraço. Francisco Baptista
Tive algumas conversas com o camarada Batista que não se cansava de falar sobre a sua terrível aventura, lembro-me de ele dizer que no momento em que foi capturado o guerrilheiro a primeira coisa que fez foi apalpar o cano da G3 e ele percebeu que se estivesse quente ( sinal que tinha disparado) já não saia dali vivo. Na viagem até ao acampamento onde ficou também foi muito cansativa e com muita fome e cede. Não foi muito ou nada agredido fisicamente porque também procurava não criar problemas.Já o camarada José Almeida Rodrigues foi agredido várias vezes porque era mais rebelde e tentava fugir.Este camarada quando vinha à Tabanca com o Zé Manel era muito pouco falador, não me lembro de lhe ouvir uma palavra.
Que Deus os tenha num bom lugar porque enquanto andaram por aqui já sofreram bem a sua parte.
Manuel Carvalho
Achei estranho o escasso número de camaradas a acompanharem o Batista à última morada,mas é uso dizer-se "só faz falta quem cá está"...
Boa Páscoa.
Santiago
Meu caro Luís Graça.
Sobre o que escrevi "namorava para outro rapaz" o Xico já deu uma explicação cabal.É isso mesmo. Sobre o texto, tentei apenas ser fiel ao que a senhora Camilinha me disse,numa conversa franca e aberta sobre "morto vivo", como o Batista era conhecido em toda a freguesia de Santa Cruz do Bispo. Estava eu, a esposa do Batista e a Camilinha, mais um casal de Crestins, amigo da família do Batista, que acompanhou de perto todo o drama da "morte" do enterro e do regresso à vida, passados vinte e tantos meses. Foram momentos de fazer regressar à vida tempos de mágoas, dores e sofrimentos de quem viveu de perto o terrível drama.
Nota que faço minhas as palavras do Santiago. O Batista não era um camarada qualquer. Transportava com ele uma história de dor e sofrimento. Foi feita uma tentativa de dar a conhecer o seu falecimento, nomeadamente pelo nosso Blogue de modo a que o maior número de ex-combatentes tomassem conhecimento. Ele pelo que sofreu merecia mais solidariedade.
Aproveito para desejar a todos os camaradas uma Santa Páscoa.
Zé Teixeira
Obrigada a todos os presentes, e as mensagens enviadas.
Foi um lutador.....
Sandra Batista
Fez seis meses que o meu pai foi embora....fica uma saudade intensa...um aperto muito grande, quero acreditar que está num cantinho "bom", agradeço a todos mais uma vez, e sim essa história que o srº Zé Teixeira contou foi verdade.
A Camilinha é uma senhora amiga da minha família...
obrigada a todos...
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