Régua, 24 de Março de 2016
(i) O José António [Almeida Rodrigues, 1950-2016] era, para a maioria, mais um louco que veio da Guiné. Um apanhado pelo clima, um problemático que se devia evitar.
Sim, para nós, ex-combatentes, o Zé António também foi um herói, não reconhecido como tantos outros.
Também um muito obrigado à Dona Jovelinda, da casa de acolhimento que o acolheu nestes últimos 8 anos, pela forma como o tratou e cuidou.
José António, descrever os momentos difíceis que viveste, as aventuras e agruras da tua vida não é fácil nem de contar nem de entender. Resta-nos procurar lembrar ao mundo as tuas memórias e honrá-las.
Sabes, José António? Ontem de madrugada, tal como tu, morreu também o António Batista, teu companheiro de prisão em Conacri e no Boé.
Até um dia,
José António
(ii) Conheço a sua versão dos acontecimentos, pois quando da recolha de dados para procedermos a um pedido de um subsídio de prisioneiro de guerra, o mesmo foi recusado pois ele foi considerado desertor.
Estranhei o facto, pois ele foi tratado pelo PAIGC da mesma maneira que os outros prisioneiros, enquanto que, no caso dos desertores, o tratamento era diferente, eles conseguiam ser colocados em países que os escolhessem e que lhes davam asilo político.
Falei com ele e a sua versão foi de que, sendo ele um apaixonado pela caça (e já o era cá no Douro), saía com frequência para fora do aldeamento [, e aquartelamento de Cancolim,] para ir à caça. Da ultima vez que o fez, o seu grupo de combate tinha saído para uma missão. Quando regressou a Cancolim, foi duramente repreendido pelo capitão. Em resposta disse que, se eles tinham saído, ele também era homem para os encontrar!... E foi ao encontro do grupo, mas deparou primeiro com um bigrupo do PAIGC... Pensavam ser os seus camaradas, só dando pela realidade quando estava no meio deles.
Perante tal situação, a justificação para um acto tão irreflectido era a versão da deserção. Tentei confirmar a esta sua versão com um elemento da sua companhia [, a CCAÇ 3489,] que me disse apenas muito vagamente que ele era um tanto louco, mas também que não podia afirmar que ele tinha desertado.
Por tudo aquilo que ele passou, pelas conversas e recordações que partilhamos, gostaria de propor que ele fizesse parte da lista mortos da nossa Tabanca Grande.
José Manuel Lopes
2. Comentário do editor:
(i) O José António [Almeida Rodrigues, 1950-2016] era, para a maioria, mais um louco que veio da Guiné. Um apanhado pelo clima, um problemático que se devia evitar.
Para mim e muitos dos nossos camaradas, que conheceram de perto as situações que viveu, nos tempos de guerra, e que mais tarde soubemos do seu sofrimento nas prisões de Conacri e do Boé, da épica fuga deste último local, numa canoa, rio Corubal abaixo!...
Nove noites e nove dias, escondendo-se de dia no mato, por vezes vendo e sentindo as tropas IN que o procuravam e, de noite, descendo o rio até encontrar dois nativos que cultivavam numa bolanha perto do Saltinho e o levaram até ao quartel.
Sim, para nós, ex-combatentes, o Zé António também foi um herói, não reconhecido como tantos outros.
Quero nesta pequena homenagem que lhe fazemos, salientar o apoio da Tabanca de Matosinhos, o carinho e amizade que lhe dedicaram nos poucos convívios das Quartas-Feiras, em Matosinhos, em que esteve presente.
Também um muito obrigado à Dona Jovelinda, da casa de acolhimento que o acolheu nestes últimos 8 anos, pela forma como o tratou e cuidou.
José António, descrever os momentos difíceis que viveste, as aventuras e agruras da tua vida não é fácil nem de contar nem de entender. Resta-nos procurar lembrar ao mundo as tuas memórias e honrá-las.
Sabes, José António? Ontem de madrugada, tal como tu, morreu também o António Batista, teu companheiro de prisão em Conacri e no Boé.
Até um dia,
José António
José António Almeida Rodrigues (1950-2016) |
Estranhei o facto, pois ele foi tratado pelo PAIGC da mesma maneira que os outros prisioneiros, enquanto que, no caso dos desertores, o tratamento era diferente, eles conseguiam ser colocados em países que os escolhessem e que lhes davam asilo político.
Falei com ele e a sua versão foi de que, sendo ele um apaixonado pela caça (e já o era cá no Douro), saía com frequência para fora do aldeamento [, e aquartelamento de Cancolim,] para ir à caça. Da ultima vez que o fez, o seu grupo de combate tinha saído para uma missão. Quando regressou a Cancolim, foi duramente repreendido pelo capitão. Em resposta disse que, se eles tinham saído, ele também era homem para os encontrar!... E foi ao encontro do grupo, mas deparou primeiro com um bigrupo do PAIGC... Pensavam ser os seus camaradas, só dando pela realidade quando estava no meio deles.
Perante tal situação, a justificação para um acto tão irreflectido era a versão da deserção. Tentei confirmar a esta sua versão com um elemento da sua companhia [, a CCAÇ 3489,] que me disse apenas muito vagamente que ele era um tanto louco, mas também que não podia afirmar que ele tinha desertado.
Por tudo aquilo que ele passou, pelas conversas e recordações que partilhamos, gostaria de propor que ele fizesse parte da lista mortos da nossa Tabanca Grande.
José Manuel Lopes
2. Comentário do editor:
Há aqui uma proposta do Zé Manel Lopes, da Régua, o nosso poeta de Mampatá, que ajudou também o Zé António a sair da miséria em que se encontrava... A proposta é simples: admitir o Zé António como grã-tabanqueiro n.º 713, indo diretamente para o "talhão" onde estão os nossos mortos, na grande maioria combatentes, alguns dos quais entraram diretamente por este processo, ou seja, "post mortem", como se diz, ou seja, a título póstumo.
O Zé António partilhou, em vida, a sua história connosco através do Zé Manel... Parece que os burocratas do exército o consideravam (ou chegaram a considerar) como "desertor", e não como "prisioneiro de guerra". Enfim, não temos acesso ao seu processo individual, e admitimos que a questão seja técnica e juridicamente complexa... De resto, quem é que se interessa hoje pela "honra e glória" de um pobre Zé Soldado que fez uma guerra já esquecida ?!...
O Zé António partilhou, em vida, a sua história connosco através do Zé Manel... Parece que os burocratas do exército o consideravam (ou chegaram a considerar) como "desertor", e não como "prisioneiro de guerra". Enfim, não temos acesso ao seu processo individual, e admitimos que a questão seja técnica e juridicamente complexa... De resto, quem é que se interessa hoje pela "honra e glória" de um pobre Zé Soldado que fez uma guerra já esquecida ?!...
A pergunta é: foi um desertor, foi um louco, foi um herói, ou foi um simples combatente como todos nós? Merece ser nosso grã-tabanqueiro? A sua odisseia, a sua história, a alguns de nós, tocam-nos. O que é que os nossos amigos, colaboradores permanentes do blogue, "guardiões do templo", pensam sobre este caso? E os demais camaradas e amigos da Guiné? Todos têm uma palavra a dizer...
Aguardamos as vossas respostas.
Boa Páscoa, melhores amêndoas (doces).
Os editores.
Aguardamos as vossas respostas.
Boa Páscoa, melhores amêndoas (doces).
Os editores.
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Notas do editor:
5 comentários:
Caros camaradas da Guiné.
José António Almeida Rodrigues,se foi um "louco,um desertor um herói...onde haverá dúvidas ?É claro que merece ser um dos nossos nesta "TABANCA GRANDE". Não esquecer que acima de tudo foi um jovem como a maioria de nós que foi OBRIGADO a interromper a sua juventude para ser um homem responsável na Guerra da Guiné.
Bem vindo José António estejas onde estiveres,sê por mim bem vindo.
Um abraço a todos e Boa Páscoa.
Henrique Cerqueira
Não acredito que tenha sido um desertor.Os desertores tinham tratamento VIP,pois conheço alguém que o foi.Portanto sou de opinião que o Zé Antonio seja integrado na nossa tabanca,como ex combatente que foi,e mais que isso,pelo que passou no cativeiro.
Bem vindo Zé Antonio.
Obrigado, pelos vossos comentários. A malta da Tababanca de Matosinhos teve ocasião de, um ou outra vez, conviver com o José António, levado pelo Zé Manel que foi, para ele, um verdadeiro camarada, amigo e irmão... Também pelo que fez o nosso Josema (o poeta Zé Manel de Mampatá), pelo seu exemplo de solidariedade, acho que devemos admitir, a título póstumo, este camarada, o José António, a quem a vida foi madrasta.
No Arquivo Amílcar Cabral, não vejo nenhuma referência ao seu nome. Há fotos e documentos a relativos outros "prisioneiros de guerra" que estiveram com ele e com o Batista (na "Montanha", a prisão do PAIGC em Conacri, e depois no campo do Boé) - caso do António Teixeira, da Lixa, ou do Duarte Dias Fortunato, de Pombal...
Estes nossos dois camaradas, os dois primeiros a serem apanhados e levados para Conacri, depois da Op Mar Verde (22/11/190), constam de uma lista, manuscrista (com a letra do Amílcar Cabral!) em que se discriminam os seis prisioneiros, do PAIGC, que estão na "Montanha", em 1971 (em data posteriro a agosto de 1971=, por nome, data de entrada, proveniência, acusação, data de saída e observações... Sendo a lista de 1971, ainda não poderiam constar os nomes do Batista e do José António... Mas o que é interessante o tipo de acusação... Há portugueses (2) e guineenses (4)... Dos guineenses, um é "desertor", outro acusado de "homicídio", um um terceiro de furto, e o último de ter "contactos com o inimigo"... Os portugueses são dois, ambos "prisioneiros de guerra" (sic): O António Teixeira (entrado em 21/1/71) e o Duarte Dias Fortunato (24/2/71)... O Fortunato tem a palavra "desertor" riscada; o Amílcar Cabral escreveu por cima "prisioneiro" (a azul) e acrescento0u (a lapiseira preta) "de guerra"... O mesmo se passa com o Teixeira: primeiro era simples "prisioneiro" e depois passou a ser "prisioneiro de guerra"...
O Amílcar Cabral utilizava habilmente uns e outros, os prisioneiros de guerra e os desertores, para fins de propaganda diferentes ... Se o pobre do José António fosse considerado "desertor", nunca teria ido parar à "Montanha" nem muito menos ao campo do Boé... E muito menos ainda teria necessidade de fugir aos seus captores... Noutro país, a sua história, a sua fuga, dava um filme...
Tal como o meu amigo Cancela também não acredito que o nosso camarada Zé Rodrigues fosse um desertor. Era sim um homem que convivia mal com regras e muito menos as da tropa que nós bem sabemos como eram, gostava de mijar fora do penico e ser ele a escolher o copo por onde bebia. Era seguramente um homem de grande coragem pelo que ouvi dizer dele quem o conheceu.Quando muito era um bocado maluco mas isso não era só ele.Uma das vezes que o vi na Tabanca de Matosinhos com o Zé Manel, ele acabou de almoçar e enquanto nós ficamos a conversar ele levantou-se da mesa e começou a patrulhar a sala de ponta a ponta até que o Zé Manel disse é pá vamos até à Régua.Não era homem de grandes conversas.Sinto-me honrado com um Tabanqueiro como o Zé Rodrigues.
Manuel Carvalho
Sobre a proposta acima apresentada:
Pelas referências que têm vindo a aparecer aqui sobre a sua maneira de ser, J.A.Almeida Rodrigues era um soldado com comportamento imprevisível e com uma nítida falta de domínio das próprias emoções, alguém incapaz de actuar racionalmente perante situações em que se via envolvido.
Nada aponta para que tivesse decidido desertar. O seu acto mostrou, sim, ser ele mais um homem sem condições mentais para integrar uma força militar numa guerra.
Comparo esse seu gesto de sair do quartel para ir ao encontro dos seus camaradas com o que teve mais tarde, fugindo da prisão do IN também para encontrar os mesmos camaradas.
Vejo no seu comportamento a incapacidade de resistir a impulsos, actuando à margem de qualquer avaliação; fosse ela sobre o perigo de vida que corria, fosse sobre ética social e/ou militar.
Assim, concordo com a opinião de que este nosso camarada da Guiné venha a integrar o blog, a título póstumo.
Manuel Joaquim
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