segunda-feira, 27 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23389: A galeria dos meus heróis (45): uma história pícara de três “a(r)didos” - Parte I (Luís Graça)

 

Lourinhã > Zambujeira e Serra do Calvo > 25 de fevereiro de 2018 > "Homenagem da Zambujeira e Serra do Calvo aos seus combatentes"... Monumento inaugurado em 5 de outubro de 2013, numa iniciativa do Clube Desportivo, Cultural e Recreativo da Zambujeira e Serra do Calvo.

Desconhece-se o autor do painel de azulejos que representa a partida, no T/T Niassa, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa, de um contingente militar que parte para África. Ao canto inferior esquerdo a quadra: "Adeus, terras da Metrópole / Que eu vou pró Ultramar /, Não me chorem, mas alegrem [-se], / Que eu hei-de regressar"... No chão, em calçada portuguesa, lê-se: "Em defesa da Pátria". Abaixo do painel, há um livro metálico com os nomes de todos os nossos camaradas, naturais das duas povoações vizinhas (hoje praticamemte ligadas), que combateram no Ultramar.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2018). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



O autor, Luís Graça> Guiné, região de Bafatá, Contuboel,
c. junho de 1969


A galeria dos meus
heróis: uma história
pícara de três
“a(r)didos” - Parte I

 

por Luís Graça (*)






1. Eram três “desterrados”, ali, na Calçada da Ajuda, em Lisboa, no Depósito Geral de Adidos (DGA).

O quartel dos Adidos, criado no princípio dos anos 60, era uma espécie de “placa giratória” e “albergue espanhol” onde os militares do nosso exército de então, das diversas armas, de rendição individual, faziam tempo enquanto aguardavam a “guia de marcha” e a “ordem de embarque” para o ultramar.

Na época dizia-se “ultramar” e não “guerra”, e muito menos “guerra colonial. Era um eufemismo, ou então um questão de pudor, hipocrisia social ou até mesmo autocensura. Na realidade, o país não estava em guerra contra nenhuma potência estrangeira, mas parecia ser diabolizado por meio mundo (os países do chamado "terceiro mundo" mais os do bloco soviético ou comunista e até alguns "amigos ocidentais", como os países nórdicos). Sopravam, então, os "ventos da História"...

Em suma, "ir para o ultramar" significava, para a nossa geração, ir para a guerra, em Angola, Guiné e Moçambique.

Os três “desterrados” acabariam por ir comigo, em 24 de maio de 1969, por sinal num sábado, no T/T “Niassa”, com destino à Guiné. “Pior não nos podia caber na rifa”, concordavam tacitamente os três. Ou melhor, ou quatro, se eu me incluir no grupo.


2. Conheci-os, por mero acaso, no bar da classe turística do navio, misto de carga e passageiros, da carreira colonial, requisitado pelo exército para transporte de tropas. (Tinha pouco mais de 10 mil toneladas de arqueação bruta, e media centena e meia de metros de comprimento, da proa à ré, ou seja, umcampo de futebol e meio.)

Acabei por estabelecer com eles uma relação circunstancial de alguma cumplicidade e camaradagem, mesmo que depois nunca mais tenha sabido deles, quando cada um foi para o seu destino. (Ainda estaremos juntos dois ou três dias no Depósito de Adidos, em Brá, Bissau:)

O navio ia sobrelotado, éramos mais de 1700 homens, dos quais duas centenas de sargentos. Tínhamos cinco dias de enjoos e de tédio pela frente. E sobretudo de muita incerteza quanto ao nosso futuro.

Na realidade, sabíamos muito pouco daquele território, a então Guiné Portuguesa. E muito menos do que nos poderia esperar, com a guerra a entrar no seu 9º ano. A única exceção era o 2º sargento Parente (nome fictício), que já lá tinha estado por volta de 1961/63. Como ele dizia, com graça e ironia, “assistira aos ensaios e ainda à estreia da peça”, referindo-se à guerra que, oficial ou oficiosamente, teria começado a 23 de janeiro de 1963, com o atalabalhoado ataque ao quartel de Tite, na região de Quínara. (Na realidade, a guerra "surda e suja", já tinha começado muito antes. mas isso é outra história.)

Os “ensaios”, a que se referia o Parente, seriam os clássicos exercícios, em qualquer guerra de tipo subversivo, que passavam pelo aliciamento de (e terror sobre) as populações, pelas sabotagens (destruição de infra-estruturas, como pontões, postes telefónicos, abatizes nas estradas, etc.), pela preparação e organização político-militar da guerrilha, etc.

O sargento era um alentejano de Barrancos, terra de que eu nunca ouvira falar antes, perdida (vi mais tarde no mapa)  numa ponta da fronteira com a Espanha. Afinal, ficava mais perto de Badajoz do que de Beja, a capital do Baixo Alentejo, como comprovarei, muitos anos mais tarde, quando lá for de propósito para conhecer a terra, na véspera das festas em que havia touros de morte, mas a que eu não quis assistir.

Era um tipo simpático, afável, folgazão, brejeiro, bom conversador, com um sotaque que ele procurava disfarçar. Tinha "pinta de malandro"... E sobretudo era um “excelente copo”, o que naquela época tanto poderia querer dizer “bebedor excessivo” como “bebedor social”. Em África, todos nos iríamos, de resto,  tornar “excelentes copos”, destilando uísque  e água de Perrier por todos os poros, embora outros preferissem a cerveja. Na verdade, não há guerras sem álcool (ou outro tipo de droga).

O Parente, um das três dezenas de militares do Depósito Geral de Adidos, que viajavam connosco no “Niassa” (navio que levava diversas companhias ditas “independentes”, como a minha, incluindo uma companhia de polícia militar onde se integrava um soldado condutor que viria mais tarde a tornar-se secretário-geral do PCP – Partido Comunista Português), estava destinado a um pelotão de morteiros ou de canhão sem recuo, já não posso recordar.

Tinha feito duas anteriores comissões de serviço (outro eufemismo), a primeira na Guiné, altura em que “meteu o chico”, e uma segunda em Angola (como voluntário). Foi no regresso da Guiné que tirou a especialidade de armas pesadas de infantaria. Deu, entretanto, instrução, como monitor,no CISMI,  em Tavira, muito antes de eu também por lá passar (no último trimestre de 1968).


3. Já conhecia, pois, o território guineense, mas em 1961/63 não se podia falar ainda em “guerra a sério” (outro eufemismo, como se houvesse guerras a brincar!)… Para o final da comissão, em meados de 1963, o Parente já tinha a clara perceção de que “a coisa ia ficar preta”, queria ele dizer "feia", sem qualquer conotação racista.

Foi nessa altura que as nossas tropas terão acionado a primeira mina anticarro (na realidade um fornilho), na estrada São João-Fulacunda, na região de Quínara, de que resultarão ferimentos graves (e depois a morte) de um furriel cabo-verdiano ou açoriano, seu conhecido. 

 Além das minas, o Parente receava o armamento pesado de que o PAIGC passou a dispor, ao longo do tempo, incluindo “morteiros 82 e 120, canhões sem recuo 75 e 82” (e, mais tarde, em novembro de 1969, foguetões 122 mm).

Todavia, na época em que ele lá esteve, o episódio “mais cruel” de que se lembrava fora quando a nossa tropa chegara a uma tabanca da região de Quínara, abandonada pela população sob a pressão da guerrilha (ele raramente usava o termo, depreciativo, “turras”), no decurso de uma operação para “instalar lá uma força nossa”, um destacamento. Ou mais provavelmente, naquela época, ter-se-á tratado de um patrulhamento ofensivo, Entraram sem qualquer resistência, o único ser vivo com que depararam, no meio de palhotas calcinadas pelo fogo, era um cego, de etnia biafada.

Um dos alferes fez-lhe, por intermédio de um intérprete (e guia local), um interrogatório sumário. O pobre diabo, aparentemente ali deixado pela população em fuga, respondeu a tudo, e até deu pormenores descritivos que levaram alguns militares a desconfiar da sua cegueira… Não se trataria de um “falso cego”, deixado ali pelos “turras”, na margem direita do rio ou canal, frente à decadente cidade de Bolama (antiga capital até 1943), para despistar os “tugas”?

Mas o homem, de idade indefinida, era mesmo cego. Provavelmente sofria da cegueira dos rios, adiantou o furriel enfermeiro que tinha tido, em Coimbra, umas luzes sobre doenças tropicais. Ninguém sabia o que era a “oncocercose”, nem sequer o capitão, que pertencia ao batalhão sediado em Tite.

O interrogatório foi inconclusivo, o alferes não teve necessidade de usar de violência, verbal ou física, para com o desgraçado que se mostrara “colaborante”. E estava para o mandar embora, quando o capitão da força, não estando pelos ajustes, atalhou:

− O nosso alferes fez o seu trabalho. Eu, agora, como juiz, faço o meu. … Ouvi as duas partes. O homem é cego, ou parece sê-lo, mas não é surdo nem muito menos mudo… O que é que ele irá dizer sobre a nossa tropa quando os “turras” voltarem a encontrá-lo e lhe apertarem os calos ?... Vai dar à língua, está-se mesmo a ver…

Fez-se um silêncio de morte à volta do capitão e do cego. Mas não houve tempo para mais “perguntas e respostas”. Havia nervosismo no semblante dos milícias, que pressentiam a presença do inimigo, algures, não muito longe dali, na orla da bolanha ou da mata. O capitão deu de imediato a sua sentença:

− O nosso cabo A… − e apontou para um possante milícia, que empunhava uma catana − sabe o que tem a fazer. Leva-o a dar uma volta até ao rio, dá-lhe um encosto e o suspeito vai fazer companhia aos crocodilos… É, afinal, uma obra de misericórdia.

E ameaçou:

− E, psst!,  não quero barulho!

E ao que parece, ninguém tugiu nem mugiu.

O Parente registou esta cena e arquivou-a no fundo da memória. Numa noite de animada conversa e muito uísque, já ao largo das Canárias, com mar encapelado, falou deste e doutros “faits divers” (sic) da guerra… E repetia, tamborilando com os dedos na mesa, as palavras do capitão:

− O gajo era cego, mas não era surdo, nem muito menos mudo…


4. Os três eram de rendição individual, razão por que se haviam conhecido, umas semanas antes,  nos “Adidos”, na Calçada da Ajuda… “A(r)didos”, emendava, sarcástico, o furriel miliciano, o “Matosinhos” que conhecia, pela primeira vez, a “capital do império”.

− A(r)didos, f... e mal pagos! − gozava ele, com o pagode.

Já não me lembro do seu nome, ao fim destes anos todos. Sei que era de Matosinhos, filho de pescador, e que a mãe era vendedora de peixe, ambulante. “Varina” ou “ovarina”, oriunda de Ovar. Não escondia o seu sotaque nortenho nem as suas “humildes raízes populares”. Mas quem era “conde, marquês ou duque” ali, naquela “caixa de sardinhas”, anfíbia, a caminho da Guiné ?! − ironizava o Parente.

O “Matosinhos” estava destinado a uma companhia de caçadores, instalada no sul, na região de Tombali, disse-me o nome da localidade, que não fixei de todo. E dessa subunidade só sabia o SPM, o código do correio militar. Ao longo da viagem foi escrevendo aerogramas e aerogramas de saudade, para a família, a namorada, os amigos...

Na época todos os topónimos da Guiné eram exóticos, para nós, “periquitos”, mas havia alguns mais falados do que outros quando chegámos a Bissau: Madina do Boé, Gandembel, Guileje, Choquemone, Morés…

O “Matosinhos” estava apreensivo, tal como todos nós, pela sorte que lhe coubera, para mais tratando-se do temível sul da Guiné. Além disso, era de operações especiais (e de pouco lhe valeu ter ficado bem classificado), e ainda por cima com o curso de minas e armadilhas tirado em Tancos. “Não podia ser pior, carago!”, brincava ele connosco na popa do navio, fustigado pelo vento e pela espuma das ondas.

O terceiro dos “a(r)didos” era outro furriel miliciano, atirador de infantaria, como a maior parte do pessoal embarcado. Julgo que ia render alguém que “lerpara em combate” (sic), na região do Cacheu (“lerpar” era outro termo da gíria da tropa que cedo nos habituámos a ouvir e repetir). 

Também não me lembro do seu nome. Chamemos-lhe o “Algarvio”. Passara igualmente por Tavira, no mesmo turno que eu, mas pertencíamos a companhias de instrução diferentes. Seguramente que nos cruzámos várias vezes, dentro e fora do quartel, mas sinceramente não me lembrava da cara dele. 

O “Algarvio” fazia, entretanto, a meu pedido, o retrato-robô do “Matosinhos” nestes termos:

− Olha, é um gajo ‘reguila’, com piada, com muita ‘lata’, talvez um pouco ‘desbocado’ para o meu gosto… Como sabes, a malta do sul não diz asneiras…

Eu, de vez em quando, desenfiava-me da minha mesa e do convívio com os meus camaradas de companhia, e juntava-me aos três "a(r)didos, a quem achava alguma piada. Estávamos os quatro a aprender a geografia (e a etnografia) da Guiné através da consulta de uma pequena brochura que nos deram na hora da partida, e onde havia um minúsculo mapa com as principais regiões e localidades da Guiné.

Lá estava Contuboel, acima de Bafatá, não longe da fronteira com o Senegal, que seria o meu poiso durante cerca de mês e meio, segundo informação do capitão da minha reduzida companhia (éramos uns sessenta gatos pingados, metropolitanos, entre graduados e especialistas, que se deveriam juntar, em Contuboel, a uns cem soldados guineenses, fulas, do recrutamento local, que haviam acabado, em abril de 1969, de jurar bandeira, diante do “homem grande de Bissau”).

O 2º sargento Parente era o nosso professor, embora ele só conhecesse Bissau e arredores, Bambadinca e Bafatá na zona leste, bem como a regão de Quínara e a bacia hidrográfica dos rios Geba e Corubal, até ao Saltinho. Faltava-lhe conhecer as zonas talvez “mais quentes” da guerra, as regiões do Cacheu e do Oio, a Norte, e de Tombali, a sul.

− Mas em terra de cegos, quem tem um olho, é rei – gostava ele de repetir, gozando connosco, “periquitos”.

Via-se que tinha um “natural ascendente” sobre os outros dois “a(r)didos”, como eles se tratavam uns aos outros na galhofa. Não só era o mais velho (ia fazer 30 anos, e já com duas comissões), como tinha um posto acima e, sobretudo, conhecia Lisboa. Apesar de alguma deferência, o “Matosinhos” e o “Algarvio” tratavam o 2º sargento por tu, o que não era então prática corrente, mesmo entre a classe de sargentos, e muito menos entre oficiais e sargentos milicianos. 

− Cada macaco no seu galho! − lembrava o Parente, sarcástico.

Curiosamente, o Parente não se mostrava próximo dos outros sargentos, e muito menos dos 1ºs sargentos, alguns dos quais ele seguramente devia conhecer, pelo menos de vista.  A "chicalhada", como dizíamos, alguns de nós, milicianos, que cultivávamos o humor de caserna.

Nada tinha de “chicalhão”, o Parente, pensei eu cá com os meus botões. E até comecei a simpatizar com ele. Pelo decorrer das nossas conversas, ao longo daquela viagem ("o cruzeiro das nossas vidas”) , comecei a aperceber-me que ele, tal como eu, não morria de amores por Spínola e torcia o nariz à evolução dos acontecimentos político-militares da Guiné. Eu não gostava de Spínola pelo seu passado de leal servidor do salazarismo e pelos seus tiques prussianos, a começar pela sua pose (que só conhecia, e mal,  da RTP).


5. Era inevitável falarmos da tragédia, ainda recente, ocorrida em 6 de fevereiro de 1969 no rio Corubal, que custara a vida a quase uma meia centenas de militares. Ninguém sabia pormenores, só o que a censura autorizara que se soubesse através dos jornais, da rádio e da televisão. Eu estava nessa altura no BC 6, em Castelo Branco, a dar instrução de recrutas, enquanto aguardava também o momento da ordem de mobilização para o ultramar, o que viria a acontecer na véspera do sismo  de 28 de fevereiro de 1969... (Era a única certeza que eu tinha então na vida, a de que seria mobilizado muito em breve, só me restava saber para onde, Angola, Guiné ou Moçambique.)

O Parente garantia que tinha sido um “acidente” com uma jangada. O “Matosinhos” julgava saber algo mais, e falava-nos da retirada de um quartel, Madina do Boé. Era também o que eu sabia. Mas insinuou que o pessoal da jangada, sobrelotada, com excesso de peso, se terá desequilibrado e caído ao rio, quando se ouviram disparos de morteiro que terão vindo “do interior da mata” (sic).

− Onde é que ouviste ou leste isso ?

− Na rádio “Voz da Liberdade”, que emite de Argel…

− Também eu sintonizei a rádio Argel, na altura, mas não me lembro desse pormenor…− comentei eu, cético.

− Seja como for – atalhou o Parente – foi uma meia centena de camaradas nossos que não regressaram a casa… nem muito menos no caixão de chumbo.

− Para mim – acrescentei eu – o Spínola ficou mal na fotografia, um acidente desta gravidade não podia (nem devia) ter acontecido. Imaginem o rombo que provocou no moral da nossa tropa! Lá e cá…  Eu fiquei abalado, confesso...

− Já não o apanhei em Angola, esteve lá antes de mim – disse o Parente, referindo-se ao Spínola. – Mas contavam-se histórias de bravura (e de crueldade) do seu batalhão… Nunca fui de ‘emprenhar’ pelos ouvidos. Nem de pôr rótulos em ninguém… Vou dar-lhe o benefício da dúvida. De qualquer modo, vai ser (ou já é) o meu comandante-chefe.

− O nosso com-chefe, segundo a ordem de serviço que eu li… − completei eu.

− Quando lá chegarmos, logo veremos. Parece que lhe chamam o “Caco Baldé” e é agora muito amigo dos africanos… É também o terror de todos os oficiais superiores que não sejam da arma de cavalaria… A todos os que se mostrem fracos comandantes, e incompetentes, põe-lhes logo um ‘par de patins’ (como se diz em Bissau) e manda-os para casa, o que para alguns até será uma bênção, senão mesmo um prémio!... Isto pelo que me contam alguns sargentos com quem falei, e que já estiveram sob as ordens do general Spínola… − arrematou o Parente.


6. Do Parente vim a saber algo mais, já que me interessava a história de vida, por muito insignificante que fosse, daqueles homens que iam para a Guiné comigo. Mas nós cumpríamos o serviço militar obrigatório, e íamos contrariados para a Guiné. Pelo contrário, aquele homem escolhera a tropa como profissão. Como tantos outros, de resto, quer sargentos quer oficiais do quadro permanente.

Não foi difícil perceber que ele “metera o chico” para fugir à miséria e ao abandono daquelas terras raianas do Alentejo. Não escondia que aprendera, cedo, a sobreviver graças ao pequeno contrabando transfronteiriço numa altura, no pós-guerra, em que o escudo de Salazar “valia mais” do que a fraca peseta do Franco. Aprendeu a ganhar uns tostões nas barbas da GNR, da Guarda Fiscal e da Guardia Civil.” Desde puto, aprendi a lidar com o medo”, confidenciara-me ele.

Pelo que apurei das nossas conversas avulsas, ao longo daqueles cinco dias (e cinco noites) que durou o “nosso cruzeiro”, a família do pai refugiara-se em Barrancos ou num “pueblo vecino”, aquando do início da guerra civil espanhola, em 1936. Ele, o Parente, viria a nascer uns anos depois, por volta de 1940, filho de mãe portuguesa. Foi, entretanto, batizado e registado como português.

O pai, sem ofício certo, e sem grande jeito para o contrabando, acabaria por assentar arraiais em Badajoz, atraído pela boémia, a “fiesta” e os “trajes de luces”. No entanto, morreria cedo, de “soledad y cirrosis hepática”, nunca tendo chegado a pisar a arena como bandarilheiro de verdade, tal como havia sonhado quando era novo. Creio que ele era da Estremadura espanhola.

Com uma bolsa de uma confraria religiosa, que amparava viúvas e órfãos de toureiros e outros artistas tauromáticos, o filho (não sei se tinha mais irmãos) ainda conseguiu estudar num colégio de padres, jesuítas, em Badajoz, onde vivia com a mãe, criada de servir num “hostal”, não longe da praça de touros. Mas seria expulso, aos dezasseis anos, por alegadas ofensas ao bom nome e à honra do generalíssimo Franco, “caudilho de España, por la gracia de Dios”.

Alguém, certamente um “bufo”, o terá ouvido cantarolar ou dizer, no páteo do recreio, numa roda de colegas de turma, umas “coplas”, brejeiras mas de teor pública e notoriamente antifranquista, do tempo da guerra civil, e como tal proibidas em Espanha na altura… A cantilena, “Ay, Carmela!”, rezava assim:

“La mujer de Paco Franco / No cocina com carbón,/ Ay, Carmela, ay, Carmela ,/ Pues cocina com los cuernos / De su marido, el cabrón…/ Ay, Carmela, ay, Carmela”.

Denunciado, chamado ao reitor (para mais um conhecido falangista da cidade), o jovem Parente protestou, em vão, a sua inocência, alegando nem sequer  quem era o tal Paco Franco… 

Voltou com a sua mãe a Barrancos. A “pobrecita” ficou desolada pela “vergonhosa” expulsão do filho, que “se tivesse tido sorte na vida” (sic), bem poderia ter chegado a ser um grande seguidor do Inácio de Loyola.

Regressaram, ambos, com uma mão à frente e outra atrás.. Mas, antes da tropa, o Parente ainda andou por Lisboa. Conheceu um galego que lhe dei a mão, tinha um tasco (com carvoaria) no Bairro Alto, famoso pelas suas "iscas com elas"... Arranjaria depois um emprego como paquete ou moço de recados na redação de um dos jornais diários que lá tinha as suas instalações. Talvez o “Diário de Lisboa” ou o “Diário Popular”, já não sei ao certo. Chegou a levar aos serviços de censura as provas tipográficas do jornal. Fez conhecimento e amizade com alguns dos melhores jornalistas da época. E, claro, arranjou uma miúda, na rua da Atalaia, a “Sissi”.

Mesmo depois da tropa e da 1ª comissão, de passagem por Lisboa, visitava-a sempre que podia e ela estava “livre”. Era uma “rapariga da vida” (sic) que, mais tarde, já depois da extinção das casas de passe em 1963, haveria de montar o seu próprio negócio.

No final dos anos 50, e até à tropa,  fora ele o seu “faia”, o seu “fadista”. E reaprendeu a usar a “naifa”, dos tempos do contrabando, para se precaver das investidas traiçoeiras da “fauna da noite”. Ainda conheceu o Bairro Alto no tempo em que não era lá muito recomendada a sua frequência, sobretudo à noite, a “meninos de coro”. E ainda conheceu os calaboiços do Governo Civil mas, “felizmente” (sic) nunca chegou a ter cadastro, o que o impossibilitaria, legalmente, de concorrer à carreira militar.

Para mim, era uma sargento “atípico”, pelo pouco que eu ainda conhecia da classe de sargentos do quadro permanente.

− Há três sítios onde gosto de parar e entrar, quando vou na rua: a igreja, a tasca e a livraria… É uma hábito que me vem do tempo em que vivi em Espanha. O meu pai, que era supersticioso como toda a gente da ‘afición’, ensinou-me certas coisas, algumas delas a respeito destes três sítios, também para ele, ‘sagrados’, para além da ‘arena’… 

E depois de mais um gole de uísque, adiantou:
− A ‘arena’ deixei-a de frequentar, desde que o meu pai morreu e eu vim a saber que  as arenas tinham sido num passado recente, locais onde foram fuzilados milhares de espanhóis, durante e depois da guerra civil, coisa que só soube quando li, com emoção, no “Diário de Lisboa”, muitos anos depois, as reportagens de Mário Neves sobre os massacres de Badajoz em 1936…

Confesso que me surpreendeu ouvi-lo, certa noite, dizer alguns poemas do Frederico Garcia Lorca e do Pablo Neruda. Dizia muito bem, ao modo teatral do João Villaret, de cor, e quase por  inteiro (!), o espantoso “Llanto por Ignacio Sánchez Mejías”, depois de molhar a garganta com um uísque duplo:

A las cinco de la tarde.
Eran las cinco en punto de la tarde.
Un niño trajo la blanca sábana
a las cinco de la tarde.
Una espuerta de cal ya prevenida
a las cinco de la tarde.
Lo demás era muerte y sólo muerte
a las cinco de la tarde. (…)

(Continua)

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Nota do editior:

(*) Último poste da série > 19 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23094: A galeria dos meus heróis (44): O "mô camba" Jorge Levi, natural de Luanda, levado por engano pela "garota de Ipanema" a desertar do exército colonial... Um filho de pai ausente, que foi quase tudo na vida, não se achava mau ator de todo mas que, afinal, não sabia como sair de cena... (Luís Graça)

6 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Ver aqui foto aérea do Depósito Geral de Adidos, na Calçada da Ajuda:

http://ultramar.terraweb.biz/03historia_04Adidos_Lisboa.htm

O nosso camarada António Pires, ex-Furriel Mil Mecânico Auto, CSM/QG/RMM (Moçambique 1971/1973), fundador do portal UTW - Ultramar TerraWeb (Dos Veteranos da Guerra do Ultramar,Angola-Guiné-Moçambique, 1959 a 1975), também lá passou, antes de embarcar para a Região Militar de Moçambique:

(...) No dia 31 de Maio de 1971, o autor apresentou-se na Depósito Geral de Adidos, em Lisboa (Calçada Ajuda), foi-lhe entregue a Guia de Marcha.

Dia 14 de Junho de 1971, pelas 14 horas, o autor apresentou-se no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa, para embarcar no navio "Pátria" com destino ao porto de Nacala / Moçambique e, depois, seguir de comboio para a cidade de Nampula.

O navio "Pátria" tinha a saída prevista para as 16 horas. (..) Desembarcou em Nacala no dia 11 de Julho de 1971. (...)

Tabanca Grande Luís Graça disse...


Do sítio "Toponímia de Lisboa", com a devida vénia:

https://toponimialisboa.wordpress.com/2014/09/29/a-calcada-do-sitio-da-ajuda/

29 de Setembro de 2014 > A Calçada do sítio da Ajuda

(...) Esta comprida e íngreme Calçada, que outrora vencia a passagem de uma ribeira quase seca no Verão denominada Ribeira dos Gafos, tem cerca de um quilómetro de extensão contando desde o Museu dos Coches até ao muro do Jardim Botânico, onde existiu um marco, pouco acima do respectivo portão, com as iniciais CMB (Câmara Municipal de Belém), uma das poucas recordações desse Concelho que após a sua extinção em junho de 1885 persistiram na freguesia da Ajuda.

O topónimo foi atribuído pela deliberação camarária de 21 de setembro de 1916 e consequente Edital municipal de 26 desse mesmo mês, tal como o Largo e a Travessa da Ajuda, oficializando assim a edilidade os topónimos tradicionais do local que perpetuam o nome do sítio: Ajuda.

(...) Antes do Terramoto de 1755, era este sítio despovoado e nele se cultivavam oliveiras, pomares, vinhas e trigo e só após o cataclismo foi esta artéria aberta. Depois, ao lado de prédios que ainda hoje conservam varandas de sacada e varadins de ferro forjado, numerosos quartéis aqui se estabeleceram.

A Calçada da Ajuda deu passagem ao séquito da Família Real aquando do seu embarque para o Brasil, aos círios de Nossa Senhora do Cabo e à procissão do Senhor dos Passos de Belém que ia até à Patriarcal da Ajuda. E grandes ornamentações nela se fizeram aquando da celebração, no ano de 1886, do casamento do Príncipe Real D. Carlos com a Princesa D. Maria Amélia de Orleães.

Ao longo de mais de dois séculos e meio de existência, a Calçada da Ajuda foi assim palco de cortejos reais, procissões e desfiles militares.(...)

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Decreto-Lei n.º 42943, de 25 de abril de 1960

https://dre.tretas.org/dre/254446/decreto-lei-42943-de-25-de-abril

Considerando a conveniência em reunir num só órgão os meios necessários à direcção, enquadramento e assistência do pessoal militar não pertencente à guarnição de Lisboa que aqui deva permanecer, temporàriamente ou em trânsito, por exigências de serviço;
Considerando que actualmente algumas destas actividades estão simultâneamente atribuídas ao Depósito de Tropas do Ultramar e à companhia de adidos do Governo Militar de Lisboa;
Usando da faculdade conferida pela 1.ª parte do n.º 2.º do artigo 109.º da Constituição,
o Governo decreta e eu promulgo, para valer como lei, o seguinte:

Artigo 1.º São reunidos num só órgão, com a designação de Depósito Geral de Adidos (D. G. A.), o Depósito de Tropas do Ultramar e a companhia de adidos do Governo
Militar de Lisboa.
Art. 2.º O Depósito Geral de Adidos terá a sua sede em Lisboa, competindo-lhe:
a) Fornecer alojamento, alimentação, vencimento e outros meios de manutenção às praças não pertencentes aos quadros das unidades, formações ou estabelecimentos militares da guarnição de Lisboa e em serviço nos vários órgãos do Ministério do Exército com carácter de permanência;
b) Receber o pessoal não pertencente à guarnição de Lisboa que deva permanecer temporàriamente nesta cidade no cumprimento de qualquer missão de serviço, provendo os meios adequados à sua manutenção em conformidade com as suas situações;
c) Fornecer alojamento e alimentação às praças apresentadas aguardando embarque
para o ultramar ou ilhas adjacentes ou destino para a sua nova situação, quando ali
regressadas;
d) passar requisições de transporte, pela via adequada, conforme as conveniências de
serviço ou determinações superiores, para os militares não integrados em forças
destinados ao ultramar e ilhas adjacentes e providenciar pela sua satisfação;
e) Informar e dar seguimento aos requerimentos do pessoal nomeado para o ultramar,
solicitando os abonos legais e transportes a que tenha direito para sua família, satisfazendo os primeiros e providenciando a satisfação dos segundos, logo que
autorizados;
f) Fornecer requisições de transporte, nos termos da regulamentação em vigor, para
os militares e suas famílias regressados à metrópole;
g) Promover a vacinação do pessoal apresentado com destino ao ultramar e providenciar o fornecimento às unidades organizadas para o mesmo fim das doses de vacinas que lhes sejam necessárias;
h) Promover a recepção e evacuação dos detidos, doentes ou estropiados que regressem do ultramar ou ilhas adjacentes;
i) Proceder à distribuição dos artigos de uniforme e equipamento, ao pessoal apresentado destinado ao ultramar e, no regresso, efectuar os respectivos espólios, de harmonia com a regulamentação vigente;
j) Prestar ao pessoal apresentado a necessária assistência moral e religiosa e proporcionar-lhe, quando em trânsito, em especial às praças naturais do ultramar,
visitas culturais ou recreativas, excursões e assistência a espectáculos públicos de
carácter educativo;
l) Orientar devidamente o pessoal apresentado e nomeado para serviço no ultramar, por forma a esclarecê-lo, tão completamente quanto possível, sobre o meio ambiente da província a que se destina;

(Continua)

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Decreto-lei 42943, de 25 de Abril de 1960

(Continuação)

m) Facultar aos militares em trânsito e suas famílias os possíveis meios de transporte
para si e suas bagagens dentro de Lisboa e prestar-lhes todos os esclarecimentos
inerentes à sua nova situação militar na altura dos embarques e desembarques;
n) Estabelecer contacto com os comandos militares ultramarinos, quando tal for
solicitado e as circunstâncias o justifiquem, por forma a possibilitar o restabelecimento
de ligações entre os militares ali em serviço e suas famílias residentes na metrópole,
procurando satisfazer, por seu turno, os pedidos de informações que com idêntico
objectivo lhe sejam dirigidos pelos mesmos comandos;
o) Intervir na entrega às respectivas famílias dos espólios dos militares falecidos no
ultramar ou ilhas adjacentes;
p) Diligenciar pela regularização da situação militar dos mancebos naturais do ultramar e residentes na metrópole, estabelecendo a necessária ligação com os comandos militares ultramarinos.
§ 1.º Quando for julgado conveniente e determinado superiormente, o D. G. A.
receberá pessoal em condições diferentes das indicadas, designadamente unidades
constituídas, devendo, porém, ficar a seu cargo apenas a instalação daquelas cujo
efectivo seja comportado pela sua capacidade.
§ 2.º Pode ser ainda incumbida ao D. G. A., por determinação do Estado-Maior do
Exército, por intermédio da 4.ª Repartição ou pela Direcção-Geral do Serviço de
Transportes, a organização do transporte de forças de pequeno efectivo.
Art. 3.º O D. G. A. depende do Governo Militar de Lisboa para efeitos de justiça,
disciplina e ordem pública e do director do Serviço de Pessoal para todos os outros
efeitos, de harmonia com o artigo 64.º do Decreto-Lei n.º 42564, de 7 de Outubro de
1959.
Art. 4.º O quadro orgânico do D. G. A. será estabelecido em portaria a publicar pelo
Art. 4.º O quadro orgânico do D. G. A. será estabelecido em portaria a publicar pelo
Ministério do Exército, dentro dos quadros gerais aprovados.
Art. 5.º O serviço prestado pelo pessoal do quadro do D. G. A. é considerado, para
todos os efeitos, como serviço nas tropas.
Art. 6.º São transferidas para o D. G. A. as disponibilidades à data existentes nas
dotações e verbas destinadas no corrente ano económico ao Depósito de Tropas do
Ultramar e à companhia de adidos do Governo Militar de Lisboa, bem como as verbas
dos seus orçamentos privativos.
Art. 7.º A partir da data da entrada em vigor do presente diploma consideram-se
extintos o Depósito de Tropas do Ultramar e a companhia de adidos do Governo Militar
de Lisboa.
Art. 8.º Fica revogada toda a legislação em contrário, continuando a reger-se pelas
normas aplicáveis estabelecidas do antecedente os casos não previstos neste
decreto-lei.
Publique-se e cumpra-se como nele se contém.
Paços do Governo da República, 25 de Abril de 1960. - AMÉRICO DEUS RODRIGUES
THOMAZ - António de Oliveira Salazar - Pedro Theotónio Pereira - Júlio Carlos Alves
Dias Botelho Moniz - Arnaldo Schulz - João de Matos Antunes Varela - António Manuel
Pinto Barbosa - Afonso Magalhães de Almeida Fernandes - Fernando Quintanilha
Mendonça Dias - Marcello Gonçalves Nunes Duarte Mathias - Eduardo de Arantes e
Oliveira - Vasco Lopes Alves - Francisco de Paula Leite Pinto - José do Nascimento
Ferreira Dias Júnior - Carlos Gomes da Silva Ribeiro - Henrique Veiga de Macedo -
Henrique de Miranda Vasconcelos Martins de Carvalho.
Para ser presente à Assembleia Nacional.

Valdemar Silva disse...

Agora, com a guerra outra vez na Europa, voltaram à cena os crimes de guerra. Os crimes de guerra mais usuais são os cometidos contra prisioneiros e população civil, com fuzilamentos ou mortes propositadas.

Na Guiné estávamos em guerra, ".... sabe o que tem a fazer. Leva-o a dar uma volta até ao rio, dá-lhe um encosto e o suspeito vai fazer companhia aos crocodilos…"
Coitado do homem cego, que ouvia e falava, mais lhe valia ver e ser surdo mudo.

Luís, venha a continuação.

Abraço e boa recuperação do ministro
Valdemar Queiroz

Fernando Ribeiro disse...

Prezado Luis Graça,
A letra que apresentas da canção "Ay, Carmela" não é a letra original. Será antes uma versão humorística, provavelmente já do tempo do franquismo, pois "Ay, Carmela" era uma canção de combate, das várias que se cantaram no campo republicano. A gravação original desta canção, feita no tempo da guerra civil de Espanha, pode ser ouvida aqui:

https://www.youtube.com/watch?v=3U-ibd-_9JI