quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23856: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte VII - Que mal fizemos nós?! e As minhas únicas férias

1. VII parte da publicação do excerto que diz respeito à sua vida militar do livro "Um Olhar Retrospectivo", da autoria de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 - Gadamael e Quinhamel, 1970/72.


VII - Que mal fizemos nós?!...

O Comando de Bissau destacou um major para assumir o comando da companhia e, uns dias depois, vem um novo capitão, um profissional de artilharia e de comandos, como fazia questão de evidenciar, para comandar a companhia.
Este novo capitão entrou com postura de chefe, apoiado nos galões, e não como líder, o que nada ajudou na recuperação psicológica da companhia, ainda doente pela perda do capitão Assunção e Silva e já um pouco desgastada pelos frequentes ataques agressivos dos guerrilheiros do PAIGC.
Aquela atitude de chefe veio a revelar-se, cada vez mais, ao longo do tempo.

Os conflitos surgiram, as manifestações de revolta atingiram níveis impensáveis, o que nada ajudava na conjugação de esforços para ultrapassarmos as adversidades naturais daquela guerra.
No que me dizia respeito, empatia zero, logo de início, tendo dado origem a um divórcio antes de qualquer ‘relação’, com um convívio tóxico por circunstância, notado por todos, divórcio que se mantém, pois o meu íntimo nunca me permitiu ceder ou esquecer aquele comportamento…

Perseguição constante aos graduados e ameaças de tudo e mais alguma coisa aos soldados, com ‘piçadas’ (rabecadas) por tudo e por nada, sem esquecer agressões físicas.
A toda a hora prometia ‘porradas’ (castigos) e tentava impor a sua autoridade através dos galões, a única forma de conseguir alguma coisa da companhia.
Só por curiosidade, não era bem vindo na Tabanca, pela população nativa…

Também salientava que dois capitães do seu curso tinham morrido, facto agravado pela morte do nosso capitão, também, mas ele tudo faria para manter-se vivo, talvez uma desculpa para o seu comportamento…
Se todos tivessem este mesmo comportamento, só porque queriam manter-se vivos, imaginemos o cenário social e emocional da companhia…

Um militar profissional é suposto ter aprendido técnicas de liderança que permitam fazer face a circunstâncias deste tipo, mas não era o caso, claro…
As operações eram asseguradas por nós, milicianos, enquanto o capitão tratava dos assuntos da companhia, dentro do arame farpado, mais cómodo e um pouco mais seguro…

Desculpe, Daniel, mas lá vou eu falar naquela dos homens, que são todos iguais mas, felizmente, não pensam todos da mesma forma…

Entretanto, chega um 2º sargento, não me recordo porque razão, mas julgo que por uns tempos, apenas.
Algum tempo depois, por incompatibilidades e, ao deparar-se com a filosofia deste capitão e com as dificuldades daquela zona de guerra, cujas operações estavam na mão dos milicianos, acaba por sair de Gadamael Porto.

Segundo informações que me chegaram, logo que chegou a Bissau, este sargento relatou a autoridades militares de Bissau o cenário que se vivia em Gadamael Porto.
Conclusão: ordem de Bissau para que o capitão passasse a fazer parte de toda a actividade operacional, fora do aquartelamento…

A vida continuou e estava-me reservada mais uma surpresa: tanto andou, tanto andou, que foi inventando desculpas e pretextos que me impediram de vir de férias as duas vezes a que tinha direito, o que reforçou a minha revolta, bem notada, por grande parte da companhia.
Mas um pequeno esforço mental e uma certa dose de perseverança, a par de me sentir um pouco mais maduro, permitiu que já conseguisse viver melhor com o que não conseguia mudar.
E eu tinha a certeza - optimismo natural - que nada iria abalar o meu carácter, a minha personalidade, e tudo acabaria bem, pois era certa e forte a amizade e ligação fraternal com os homens da companhia, o mais importante.

E nunca esquecerei aqueles homens, fiéis, leais, apesar da condição humilde de muitos deles, a par de uma revolta natural, principalmente, dos que já vinham de uma experiência de prisão, como Penamacor, por vicissitudes da vida.


As minhas únicas férias!

Passou um ano e vim de férias, uma única vez, claro.

Segundo o primeiro-sargento Moreira, o meu historial não permitia as duas vezes, dada a má relação com o capitão, que tudo arranjou de forma a eu só gozar um período de férias.
O que ele queria era ver-me a reclamar e contestar, não sabendo a que ponto poderíamos chegar, o melhor caminho para a probabilidade de entrarmos em processo disciplinar…
Mas, apesar de tudo e mais alguma coisa, eu estava preparado para situações de conflito e cenários adversos, pelo que não cedia a tentações.

Aproveitei uma pequena avioneta que tinha vindo trazer correio e documentação para a companhia e lá fui, até Bissau, partilhando a avioneta com o Padre da Tabanca, o que significava segurança, para mim…
Dizia-se que, sempre que o padre se ausentava, tínhamos ataque mais cerrado, e ainda tive tempo de avisar alguém sobre essa probabilidade.

Voo da TAP marcado e lá vim até à Metrópole.
Uma escala inesperada, em Cabo verde, na ilha do Sal, por avaria técnica do avião, que durou umas duas ou três horas.
Aeroporto da Portela, Lisboa, parecia imaginação!

Foram trinta e cinco dias de recuperação, de conforto, de civilização, carregando pilhas para mais um ano ‘daquilo’…
Revi e abracei família e amigos, evitando comentários sobre aquela realidade que acabara de deixar e que voltaria a viver.

A minha mãe estava muito preocupada, claro, tanto mais que o Flórido, logo que chegou à Figueira da Foz, foi visitá-la e dizer-lhe que tinha estado comigo, antes de eu partir para o mato, frisando-lhe que ia para o pior sítio da Guiné!
Eu nem queria creditar nisto, pois tinha o Flórido como inteligente e de bom senso.

Ao mesmo tempo, logo que soube que eu tinha vindo de férias, a tia Jú telefona-me a agradecer a minha ajuda e a relatar a atitude do tal filho dos marchantes de Vieira do Minho, logo que chegou.
Antes da família, foi visitar a minha avó Júlia e tia Jú, felicitando-as pelo neto e sobrinho que tinham e dizendo que eu lhe tinha salvado a vida, pois poderia ter sido preso, mais uma vez, ou pior do que isso, se matasse o capitão e o alferes, como tencionava.
Mas, infelizmente, não ficou por ali, pois não deixou de dizer que eu estava no pior sítio e que tinha pena de mim e medo que me acontecesse alguma coisa!
Eu ia lá imaginar que alguém ia falar destas coisas à minha família, sem pensar no que poderia causar de preocupação e instabilidade emocional!

Isto faz-me lembrar aquela do Descartes: ‘se penso, logo, existo’…

Mas o que diria o Descartes se soubesse que pessoas que não pensam também existem…

"Realmente, Adolfo, com amigos assim, que não pensam um pouco, antes de falarem, é preferível termos inimigos!
Mas também podemos colocar a possibilidade de o fazerem debaixo de instabilidade emocional, logo, merecedores de algum desconto ou, pelo menos, do benefício da dúvida…"


Tem razão, mas há temas que requerem um pouco mais de ponderação, de discernimento…

O meu irmão já tinha regressado de Moçambique, há muitos meses, e estava a tentar reorganizar a vida, embora as dificuldades decorrentes do tal caso Guiomar e Carla tivessem tido tanto impacto na nossa família que os obstáculos cresciam e tornavam tudo mais difícil.
E eu não queria dar a entender aos meus pais que conhecia ou dava importância ao caso, estratégia pessoal.
Caso viesse a lume, defenderia a posição do meu irmão, o mais possível e de forma natural.
Só podia, em função da história que o meu irmão acabou por contar-me, mesmo não concordando ou aplaudindo, claro.

Uma aventura com uma menina, a Guiomar, professora de Liceu, durante as férias que tinha vindo passar à Metrópole, deu mau resultado, digamos, pois a menina ficou grávida.
As circunstâncias que os envolviam não permitiam tal responsabilidade, ideia comum aos dois, segundo falaram.
Apesar de ela dizer que o meu irmão era o homem da vida dela e de se ter convencido de coisas que não ofereciam garantia de ninguém, muito menos do meu irmão, lá acabou por aceitar resolver o assunto, para o que foram falar com uma médica amiga, pagaram os tratamentos, a meias, e cada um seguiria o seu caminho, como pessoas civilizadas.
Mas a menina fingiu que tratou do assunto e deixou vir o bebé, a Carla.

Quando achou conveniente, pediu a transferência para Coimbra, pois estaria perto da Figueira da Foz, logo, no caminho da entrada em casa da nossa família.
Mas só se aproximaria, quando o caminho estivesse livre de qualquer obstáculo, claro.
Porquê? Porque o meu irmão lhe tinha dito que nunca pensasse em compromissos ou casamentos, depois da falsidade que ela tinha cometido, e que o próprio irmão não aceitaria o casamento deles.

O meu pai, pelos seus princípios e posição profissional e social, logo que ela se apresentou, de menina ao colo, preparou a recepção e disse que o Victor era um rebelde, mas de bom coração, pelo que tratariam da união, com apoio.
Ela aproveitou logo para dizer ao meu pai que o Victor nunca casaria com ela porque o irmão ‘não deixava’...

Matou vários coelhos com uma só cajadada: armou-se em vítima, agravou a incompatibilidade entre o meu pai e o meu irmão e pôs o meu pai contra mim.
Mas foi aproveitando o patrocínio do meu pai: prendas para ela e filha, ajuda financeira em várias situações, fora o que não cheguei a saber.

Perto do final da comissão, o meu irmão foi confrontado com um documento que o comandante da unidade, em Moçambique, lhe apresentou: ou assina ou vai ter dificuldade em sair do serviço militar!
Ora, o meu irmão já estava com quase seis anos de serviço militar e logo respondeu que assinava tudo o que quisessem.
Pois é, assinou a perfilhação da miúda!

O que não sabia é que tudo tinha tido a mão de um primo da Guiomar, muito influente na TAP, naquele tempo.
Quando chegou ao aeroporto de Lisboa, a recepção foi calorosa: os meus pais, a minha irmã, a mãe da Guiomar, a Guiomar e a Carla.
O meu irmão, perante tal surpresa, cumprimentou todos e decidiu surpreender, também, desandando, sem perda de tempo - eu faria o mesmo…
A partir daí, a relação com o meu pai piorou, não mais voltando ao normal.

O meu irmão, controlador de tráfego aéreo, especialidade OCART, da Força Aérea, à semelhança de outros colegas, candidatou-se a controlador, no aeroporto de Lisboa.
Entregou o dossier uma vez, duas vezes, três vezes, mas sempre desapareciam!
Descobriu que o tal primo da Guiomar andava metido na coisa e nada havia a fazer.
Bem dizia ela ao meu irmão que lhe faria a vida negra!

Viu anúncios e candidatou-se a um lugar na Agência de Viagens Holitur, na Av Duque d’Ávila, Lisboa, tendo sido admitido e logo iniciou o trabalho.

Como eu tinha esses dias de férias, aproveitei para passar alguns com ele, o que me deu para espairecer um pouco, sem ficar limitado à Figueira da Foz.
Ele estava hospedado na Residencial Parisiense, no Rossio, e lá fiquei com ele, esses dias.

Mas estas curtíssimas férias não acabaram sem que me dessem uma má notícia: o meu amigo Vítor Caldeira tinha morrido, na Guiné, pouco tempo antes de eu vir de férias.
Era piloto da Força Aérea e sofreu um acidente fatal, na descolagem da avioneta, por ter batido nos arames farpados de um aquartelamento.
Voar baixo, por razões de segurança, pode dar acidente…

Mesmo absorvido por cenários como acabei de lhe descrever, ainda consegui ler umas coisas sobre os negócios do petróleo, um caso que começava a atormentar alguns países, pois as repercussões dos conflitos económicos à vista não deixavam antever outros resultados.

Como o Daniel se recordará, nesta altura, os EUA negociavam com a Arábia Saudita um tratado que visava absorver toda a sua produção de petróleo, mas com a cotação em usd, como moeda de transacção, em troca de armamento e protecção militar - era o início de uma nova moeda de transacção, o petrodólar!

O usd, criado pela reserva federal americana, independente do estado, era lançado no mercado sem limite, mas com o valor de papel, apenas, pois não apresentava o contraste em ouro ou prata, como sabemos.
Este acordo comercial obrigava todos os países interessados na compra de petróleo à Arábia Saudita a usarem os petrodólares, uma forma simples de valorização do usd.
Não conseguia imaginar o que isto iria dar, uns bons anos mais tarde, como todos constatámos!...

Como sabe, a Líbia e o Iraque resolveram adoptar o mesmo esquema, seja, adquirir petróleo à Arábia Saudita, mas usando a sua própria moeda.
Os EUA não gostaram e foi o que se viu, nomeadamente, invasão do Iraque, liquidação da Líbia, etc.

Engraçado que, no caso do Iraque, o pretexto dos EUA foram as armas de destruição massiva do Iraque e o facto de terem invadido o Kwait, geoestratégia…
Os EUA, pela mão do Bush filho, com a companhia de Blair, Aznar e Durão Barroso, na Cimeira das Lajes, em 2003, decidiram e formalizaram a invasão ao Iraque…

Este Durão Barroso, ‘um patriota puro e desinteressado’, como sabemos, teve a compensação - sair de Portugal, passar por Bruxelas, até ocupar o cargo importante no banco que sabemos, nos EUA… Patriotas destes, dispensamos!
Tudo isto ficará na História Universal, claro, embora saibamos que ‘pintado’ à maneira de cada um…

Quanto à China, a coisa foi diferente, pois usou o mesmo esquema, mas sem a oposição dos EUA, claro, e começou a comprar todo o ouro do mundo, permitindo aos agentes económicos a troca do Yuan por ouro ou prata.
A Rússia seguiu o exemplo da China, também, sem oposição dos EUA, da mesma forma, claro.
Tanto a China como a Rússia passaram a ser uma forte concorrência aos EUA.
Isto foi o primeiro dia do início da queda dos EUA, como primeira potência mundial da economia!

Nessa altura, pelas circunstâncias, tive pena de não ter acompanhado todo este assunto, em tempo útil, pois era bem interessante…

"Mas o Adolfo tinha de ocupar a mente com outos assuntos, melhor, problemas, não é?"


Diz bem, outros problemas me esperavam, infelizmente…

(Continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 6 de Dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23850: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte VI - Gadamael Porto... Continuando

2 comentários:

Valdemar Silva disse...

Cruz, cá temos a parte VII do teu "Um Olhar Retrospectivo", que embora não perceba muito bem quando foi escrito, parece ter sido em 2018. Certo?

Nesta parte VII aparece aquela cena da criança nos braços e toda a envolvência que dava para uma boa telenovela das nove da noite
Mas, o que me saltou mais à picada foi aquela descartadeada '..se penso, logo existo'
Bem, se o "Um Olhar.." é escrito em 2018, já o nosso cientista António Damásio tinha comentado sobre o 'se penso, logo existo', como: é um disparate as pessoas se convencerem que a inteligência vem do cérebro (sic).
No seu livro "O Erro de Descartes", António Damásio escreve que terá sido a não apreciação de que o cérebro não foi apenas criado por cima do corpo, mas também a partir dele e junto com ele.
Então, o correcto será "...se existo, logo penso".

Julgo que parte deste VII do "Um Olhar......" se passa na Figueira da Foz. Em 1968 estive no RAP3 a dar instrução de aplicação militar a soldados da especialidade de condutores auto de artilharia. Foi um ano, fui mobilizado em Dez.1968, a viver fora do Quartel como quase todos os Cabos Mil.. Eu mais outros dois vivíamos na Rua do Hospital, num quarto alugado na casa de uma senhora leiteira. Aquela casa estava constantemente ser procurada por malta que já tinham estado na tropa, mas no tempo deles teria sido uma casa de "meninas".

Saúde da boa
Valdemar Queiroz

antonio graça de abreu disse...

As coisas que eu vou aprendendo neste blogue!|Diz o camarada:

"Como sabe, a Líbia e o Iraque resolveram adoptar o mesmo esquema, seja, adquirir petróleo à Arábia Saudita, mas usando a sua própria moeda.
Os EUA não gostaram e foi o que se viu, nomeadamente, invasão do Iraque, liquidação da Líbia, etc."

A Líbia e o o Iraque a adquirir petróleo à Arábia Saudita. E depois vem a guerra. És capaz de explicar isto melhor, que eu não entendo...

Abraço,

António Graça de Abreu