Capa do livro "Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial", de João Gaspar Carrasqueira (pseudónimo do nosso camarada A. Marques Lopes)
(Lisboa, Chiado Editora, 2015, 582 pp. ISBN: 978-989-51-3510-3,
Colecção: Bíos, Género: Biografia).
Dedicatória autografada: "Para o Luís Graça, com muita amizade.
A.Marques Lopes, 17.09.15"
Beja > Penedo Gordo > 30 de setembro de 1951 > O A. Marques Lopes,
aos sete anos, com a mãe e um "canito" ao colo.
"Lembranças de Julho de 1995. Eduardo, era o meu pai, avô do Francisco, morreu há 26 anos: Hélder António, meu sobrinho, filho do Fernando Vale, morreu há dois meses; Fernando Vale, meu cunhado, morreu há 13 anos. Francisco, meu filho, está vivinho da costa com 29 anos." (A. Marques Lopes, página do Facebook, 24 de dezembro e 2023, 18:57)
Fotos (e legendas): © A. Marques Lopes (2023). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
"O MEU HISTORIAL", por A. Marques Lopes (Lisboa, 1944-Matosinhos,2024)
(i) 1944-1951 – Nascido em Lisboa, na Mouraria, acabou por ir viver no Alentejo, até aos 7 anos (Penedo Gordo, arredores de Beja), por razões de saúde da mãe;
(ii) 1951/1955 – Instrução Primária nas Oficinas de S. José, em Lisboa;
(iii) 1955/1964 – Seminário;
(iv) 1964/1965 – Trabalha nos Armazéns da AGPL (Administração Geral do Porto de Lisboa) e frequenta a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa;
(v) janeiro 1966/julho 1966 - COM (Curso de Oficiais Milicianos) na EPI (Escola Prática de Infantaria) em Mafra, onde tiru a especialidade de atirador de infantaria ( o seueu instrutor foi o tenente Chung Su-Sing);
(vi) julho 1966 / dezembro 1966 – Aspirante no RI1 (Regimento de Infantaria nº 1) na Amadora;
(vii) dezembro 1966 / abril 1967 – Instrutor de um pelotão da CART 1690 (Companhia de Artilharia nº 1690) em Torres Novas e Oeiras, unidade mobilizada para o Ultramar;
(viii) 15abril1967 – Chegada à Guiné como alferes da CART1690; a companhia foi colocada, logo no dia seguinte, na zona do Oio (Geba, Banjara, Cantacunda e Camamudo);
(ix) agosto 1967 – Ferido por uma mina AC/: nesse período tinha participado, como comandante de um Grupo de Combate, em oito operações: numa delas (24 de junho de 1967) foi dado como “desaparecido em combate”;
(x) setembro1967– Evacuado para o HMP (Hospital Militar Principal), de Lisboa por ferimentos em combate;
(xi) maio1968 – Reenviado para a Guiné e colocado na CCAÇ 3 (Companhia de Caçadores nº 3, de naturais da Guiné) em Barro, a 3 kms. do Senegal; participou em 36 operações como comandante de um Grupo de Combate;
(xii) março 1969 – Regresso à Metrópole e passagem à disponibilidade; depois disso e até ao 25 de Abril teve participação em acções contra o regime e a guerra colonial;
(xiii) reingresso no Exército por disposições estabelecidas após o 25 de Abril (Decreto-lei 43/76 do Conselho da Revolução); passagem à Reforma Extraordinária como Coronel em 2000;
(xiv) Membro da Direcção da Delegação do Norte da Associação 25 de Abril.
Fonte: Adapt. de A. Marques Lopes (página do Facebook, 2 de abril de 2024, 17:15)
O pai e a mãe, bem como os seus avós, bisavós e trisavós nasceram todos no Alentejo, no Baixo, e talvez os de antes também, mas isso não sabia ao certo. Já falara sobre isso, sobre as raízes e a árvore genealógica da família, mas o pai riu-se dizendo-lhe que essa árvore era um chaparro com raízes fundas, como há muitos nos montados.
Quando tinha seis anos metera-se-lhe na cabeça que queria ser padre. Não havia pároco a residir no Penedo Gordo, devido à extrema miséria dos assalariados rurais que constituíam a grande maioria da população da aldeia e porque a maior parte deles não ligava grande coisa às questões da religião. Só aos domingos é que o seminário de Beja mandava um padre para que os crentes pudessem cumprir os seus deveres dominicais.
Quando completara sete anos regressou a Lisboa. No período seguinte, até completar a instrução primária, andou pelas ruas da capital. O seu fascínio e bulício substituíram o anterior encantamento das luzes e colorido da igreja da aldeia alentejana. Não foi, no entanto, porque deixasse de estar em contacto com padres e igrejas. Pelo contrário. Através de umas senhoras protectoras dos pobrezinhos entrou para uma escola dirigida por padres. O contacto com as coisas sagradas passou a obrigatório. Missa diária, oração diária, e grandes castigos para quem faltasse.
Na altura, os pais moravam numa parte de casa em Campo de Ourique. Sempre que conseguia uns tostões enfiava-se no Paris ou no Europa para ver filmes de aventuras. Mas o ambiente preferido era o jardim da Parada , aquele jardim era maravilhoso. Pequeno, mas cheio de gente, de rãs, de peixes e de carros a abarrotar de gelados era um jardim enorme para os miúdos. Permitia brincadeiras de índios e cowboys, polícias e ladrões, provas de resistência em corridas à volta do jardim, torneios de caricas nas bordas dos passeios, sessões de anedotas picantes promovidas pelos mais espigadotes, histórias de bruxas e lobisomens. Havia também jogos mais suaves com as miúdas da mesma idade, o jardim da Celeste, mais um par de jarras que na roda entrou, a vida do marujinho é uma vida amargurada, jogar aos casados…
Tinha saudades disso. Muitas recordações deixara naquele jardim. Célia, Maria João, Maria Emília, não conseguia esquecê-las. Nem queria. Principalmente a Célia com aquela trança caída sobre o peito, vestido de fantasia e olhos gaiatos.
O recurso a pseudónimos literários é muito frequente entre militares: Carlos Vale Ferraz (cor cav 'cmd' ref Carlos Matos Fomes), Manuell Andrezo (ten gen ref Aurélio Manuel Trindade, 1933-2024), João Gaspar Carrasqueira (cor inf DFA António Marques Lopes, 1944-2024)... E tantos mais, militares e civis: Carlos Selvagem (maj cav Carlos Tavares de Andrade Afonso dos Santos, 1890-1973), Miguel Torga (médico Adolfo Correia da Rocha, 1907-1995), Júlio Dinis (médico Joaquim Guilherme Gomes Coelho, 1839-1871), etc.
Nos últimos meses de vida, o António escreveu imenso no seu Facebook, e retomou algumas das melhoras páginas do seu livro autobiográfico, "Cabra Cega", entretanto publicado também no Brasil, com o seu nome verdadeiro, A. Marques Lopes, "Cabra Cega" (São Paulo: Paperblur, 2019).
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O melhor de... A. Marques Lopes (1944 - 2024) (2) >
Quando tinha seis anos metera-se-lhe na cabeça
que queria ser padre
O pai e a mãe, bem como os seus avós, bisavós e trisavós nasceram todos no Alentejo, no Baixo, e talvez os de antes também, mas isso não sabia ao certo. Já falara sobre isso, sobre as raízes e a árvore genealógica da família, mas o pai riu-se dizendo-lhe que essa árvore era um chaparro com raízes fundas, como há muitos nos montados.
Lembravam-se dos seus antepassados diretos mais chegados mas não conseguiam ir muito longe. A mãe foi ceifeira que andava à calma , lembrava-se bem desta canção, e o pai foi tratorista nos campos dos latifundiários, rasgando-os com aivecas . Pensa que foi por isso que lhe acrescentaram a alcunha Aiveca ao nome próprio, sendo conhecido lá na terra como Eduardo Aiveca.
Mas a vida era má, contaram-lhe da miséria e da fome passada, razão por que tinham vindo para Lisboa na tentativa de encontrar melhor. Foi por isso que nascera na maternidade Magalhães Coutinho, ali para os lados da Estefânia. O pai quis pôr-lhe o nome de António Aiveca mas o registo civil do Socorro não deixou acrescentar Aiveca, pois não era o apelido que ele tinha no bilhete de identidade. Mas a família sempre o tratou assim e assumiu esse nome toda a vida.
Até porque, após o nascimento, só passara um anito na Rua da Mouraria. A mãe adoeceu dos pulmões e o médico disse-lhe para ir apanhar ares para o campo, lá para baixo. Fora com ela, ainda bebé, e ali ficou sete anos. Lá na terra sempre foi tratado por António Aiveca, o filho do Eduardo Aiveca. Não desgostava do nome.
Quando tinha seis anos metera-se-lhe na cabeça que queria ser padre. Não havia pároco a residir no Penedo Gordo, devido à extrema miséria dos assalariados rurais que constituíam a grande maioria da população da aldeia e porque a maior parte deles não ligava grande coisa às questões da religião. Só aos domingos é que o seminário de Beja mandava um padre para que os crentes pudessem cumprir os seus deveres dominicais.
Nessa altura ia à igreja com a avó Rosário. Os avôs Salustiano e João, materno e paterno, não ligavam, nem os tios, a mãe não ia porque estava doente, dizia ela, mas sempre lhe pareceu a ele que também não ligava muito àquilo. A avó Violante, a mãe do seu pai, nunca a vira na igreja. Mas ele gostava de ver o senhor prior com aquelas vestes bonitas, as campainhas, a solenidade, e o respeito de todos os que lá estavam impressionavam-no muito. Todas aquelas cores, luzes e sons eram uma maravilha. Os revérberos do sol através dos vidros coloridos das janelas exerciam o mesmo efeito que qualquer coisa extraterrestre poderia exercer, encantamento, espanto e redobrado respeito.
Era bonito, também queria ser padre. Tanto insistiu com a mãe que esta, num dia que teve de ir a Beja, levou-o ao seminário para lá ficar. O reitor ficou encantado, sorriu e afagou-lhe a cabeça. Mas recomendou-lhe, depois, com ar sério que tinha primeiro de tirar a 4ª classe e deu-lhe uma mancheia de rebuçados. Deixou-o contente e muito esperançado de um dia poder igualmente viver no meio de tantas maravilhas, numa casa enorme e bonita como aquela e ter sempre à mão quantos rebuçados quisesse.
Estas lembranças ainda agora eram agradáveis e o faziam sorrir. Mas queria ver mais algumas páginas.
A. Marques Lopes, quando jovem |
Quando completara sete anos regressou a Lisboa. No período seguinte, até completar a instrução primária, andou pelas ruas da capital. O seu fascínio e bulício substituíram o anterior encantamento das luzes e colorido da igreja da aldeia alentejana. Não foi, no entanto, porque deixasse de estar em contacto com padres e igrejas. Pelo contrário. Através de umas senhoras protectoras dos pobrezinhos entrou para uma escola dirigida por padres. O contacto com as coisas sagradas passou a obrigatório. Missa diária, oração diária, e grandes castigos para quem faltasse.
Mas o contacto com a cidade foi mais forte. Grandes e belas gazetas deram-lhe muitas tardes de brincadeira no jardim da Estrela, no Parque Eduardo VII, no Castelo de S. Jorge, por toda esta Lisboa, enfim. Com outros gazeteiros mais afoitos foram grandes caminhadas para tomar
banho, em cuecas, na praia de Algés.
Na altura, os pais moravam numa parte de casa em Campo de Ourique. Sempre que conseguia uns tostões enfiava-se no Paris ou no Europa para ver filmes de aventuras. Mas o ambiente preferido era o jardim da Parada , aquele jardim era maravilhoso. Pequeno, mas cheio de gente, de rãs, de peixes e de carros a abarrotar de gelados era um jardim enorme para os miúdos. Permitia brincadeiras de índios e cowboys, polícias e ladrões, provas de resistência em corridas à volta do jardim, torneios de caricas nas bordas dos passeios, sessões de anedotas picantes promovidas pelos mais espigadotes, histórias de bruxas e lobisomens. Havia também jogos mais suaves com as miúdas da mesma idade, o jardim da Celeste, mais um par de jarras que na roda entrou, a vida do marujinho é uma vida amargurada, jogar aos casados…
Tinha saudades disso. Muitas recordações deixara naquele jardim. Célia, Maria João, Maria Emília, não conseguia esquecê-las. Nem queria. Principalmente a Célia com aquela trança caída sobre o peito, vestido de fantasia e olhos gaiatos.
É triste ver tudo isso já atrás sem poder voltar, principalmente nos momentos em que a tristeza e o desalento ferem o coração e em que a vida real, com as suas vicissitudes, tortura o pensamento. Quem lhe dera voltar a ser criança como fora naquela altura, para não ser atormentado por pensamentos em luta, como estava agora.
A. Marques Lopes
(Seleção, revisão/fixação de texto, negritos, para efeitos de publicação deste poste: LG) (Com a devida vénia...)
PS - António Aiveca é o protagonista do livro "Cabra Cega", um "alter ego", do autor, que usou outro "alter ego", João Gaspar Carrasqueira, para "assinar" a obra...
Nos últimos meses de vida, o António escreveu imenso no seu Facebook, e retomou algumas das melhoras páginas do seu livro autobiográfico, "Cabra Cega", entretanto publicado também no Brasil, com o seu nome verdadeiro, A. Marques Lopes, "Cabra Cega" (São Paulo: Paperblur, 2019).
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Nota do editor:
Último poste da série > 6 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25720: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (1): O meu cruzeiro no N/M "Ana Mafalda": ficámos contentes por saber que era só até à Guiné, e não até Timor...
1 comentário:
Obrigado, Luis Graça.
O Marques Lopes era uma pessoa que muito prezei. Aquela dor profunda que o acompanhava tornava-o mais humano. Teve felizmente tempo para fazr o que sentia dever fazer. Fica a lembrança de um homem bom.
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