domingo, 29 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25993: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (37): "Vidas por um fio"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


Vidas por um fio

Eu acabara de comer a canja. Na minha juventude, os casamentos da minha aldeia tinham canja, frango estufado com ervilhas e vitela assada. Mas nem ao frango eu cheguei. Alguém me veio chamar para ir ver uma mulher que estava muito mal lá para os confins da Serra da Gralheira.

Enfiei-me no meu velho Hillman Minx e fui até Junqueira, no alto da serra, onde um homem me esperava. Daí em diante o trajeto seria feito a pé por montes e vales. Quase uma hora depois, chegámos a um casebre: em cima uma humilde habitação e em baixo o curral da vaca.

Uma mulher, ainda nova, jazia numa enxerga em posição de opistótono. Uma posição em que o corpo se encontra arqueado, em forma de gatilho de espingarda, apoiado apenas pela nuca e pelos calcanhares, em razão de uma forte contractura dos músculos da espinha. Logo deduzi tratar-se de uma meningite grave ou de um tétano em estado avançado. Após algumas perguntas a duas ou três pessoas que rodeavam a cama, cheguei à conclusão de que seria mesmo um tétano, cuja porta de entrada dos esporos e da toxina teria sido uma cova de um dente, escarafunchada com um pau do quinteiro da vaca.

Fiquei paralisado e senti-me, eu próprio, por momentos, com todo o meu corpo em contractura. Outra coisa não era de esperar num jovem médico, receoso e perdido no fim do mundo, perante situação tão inesperada, quanto complicada. Sentei-me num pequeno banco e pensei: se tentasse retirar dali a mulher, para onde a levaria? Os únicos hospitais que havia ficavam muito longe, em Águeda ou no Porto, o velho Santo António. A mulher teria de ser transportada em padiola até onde pudesse ser recolhida por uma ambulância, se existisse. Mas nestes estados, todos os movimentos e estímulos agressivos são perigosos. Aos trambolhões pelos caminhos da serra, seria profundamente penoso e poderiam facilmente ocorrer fraturas, nomeadamente da coluna. Além disso, como pressupunha que a doente, naquele estado, tinha lavrada a sua sentença de morte, achava tal decisão injusta, imprudente e mesmo atrevida para a época.

Decidi fazer, ali mesmo, tudo o que estivesse ao meu alcance. Felizmente, para sorte dela, os músculos respiratórios não tinham sido afetados e, por outro lado, para minha sorte, havia entre as pessoas presentes, um rapaz que tinha sido enfermeiro na tropa.

Precisávamos de uma algália, de uma sonda nasogástrica para alimentar a doente, de soros, de antibióticos, de relaxantes musculares, de sedativos, de clisteres, de seringas e agulhas, de álcool e de outros desinfetantes. Precisávamos, acima de tudo, de soro antitetânico, embora, numa fase tão avançada, a sua eficácia fosse mais do que duvidosa. E aqui é que residia o grande problema. Uma dose de 300.000 unidades não existia em lado nenhum. Só num hospital central. Nas farmácias das redondezas, havia ampolas de 1500 unidades, utilizadas na profilaxia. Por mais ampolas que conseguíssemos, só por milagre juntaríamos tal dose.

Mãos à obra. O enfermeiro, que tinha em Junqueira uma motorizada, correria todas as farmácias que houvesse no concelho de Arouca e Vale de Cambra. Pelo meu lado, iria a Sever do Vouga, S. João da Madeira e Oliveira de Azeméis.

Era já noite quando chegámos de novo à beira da doente. Trazíamos dois caixotes cheios, daqueles que, antigamente, constituíam as embalagens de sabão amarelo. Conseguimos tudo o que queríamos, menos a dose necessária de soro antitetânico que se ficou pela metade, não chegando a 100 ampolas.

Ao ver a doente algaliada, com a sonda nasogástrica no nariz, com uma garrafa de soro em cada braço, com tanta agulha espetada nas veias, nos músculos dos braços e na face lateral das coxas, um a encher seringas e outro a injetar, o enfermeiro, de olhos desmesuradamente abertos, disse-me ao ouvido: “Sr. Doutor, eu nunca vi fazer tal coisa!” Ao que eu respondi: Pois, eu também nunca na vida fiz tal coisa!

Lá para a meia-noite, com as mais pormenorizadas indicações e todas as recomendações possíveis ao valioso enfermeiro, caído do céu, abandonei o local com todas as esperanças de rastos, mas com uma sensação de alívio que me havia de acompanhar durante muito tempo.

Um mês depois, a doente passou no meu consultório a caminho de Fátima, a pé, trazendo-me um queijo.

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Nota do editor

Último post da série de 22 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25966: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (36): "Terra e poesia"

4 comentários:

Eduardo Estrela disse...

Um queijo com sabor a solidariedade e amor pelo próximo, mas acima de tudo de reconhecimento.
Obrigado Dr . Adão Cruz
Abraço
Eduardo Estrela
.

Valdemar Silva disse...

Nem toda a gente tem a sorte que nós temos, de ler estes contos do Dr. Adão Cruz nosso
camarada na guerra da Guiné.
Valdemar Queiroz

Anónimo disse...

Há tanta gente que desiste logo que as coisas não são tão fáceis como desejariam. Tem a minha admiração meu caro Dr. Adão por não ter desistido e ter feito tudo o que nas circunstâncias podia fazer. Tiro -lhe o meu chapéu ( ou, se preferir faço-lhe a minha continência!)
João Crisóstomo

Anónimo disse...

Um grande ser humano, mais do que um excelente médico, este nosso humilde camarada, que releva especialmente o mérito do enfermeiro que o coadjuvou. E a estória é digna de ser emoldurada num caixilho dourado, pela riqueza moral e brilho literário.
Parabéns , caro Adão Cruz

carvalho de Mampatá