1. Mensagem de José Manuel M. Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679,
Bajocunda, 1970/71, com data de 6 de Agosto de 2009:
Carlos,
Não vais de férias? Olha que esta malta não contemporiza. E eu também não, apesar da estima e do reconhecimento das tuas qualidades. Talvez por isso, se não tivesses qualidades... ia chatear outro.
Quero dizer que o que se segue, é mais um pedaço de história das andanças na Guiné.
Um abraço Tabancal.
J Dinis
História da CCAÇ 2679 - 23
Questão bicéfalaA fila de pirilau devia alongar-se pela picada fora, guardando as distâncias convenientes, e preservando a atitude de grupo organizado, não fosse o diabo tecê-las, que isto de guerra de guerrilha tem mais é que ver com a surpresa. À frente quatro picadores que batiam no chão sem vontade para ouvir um som diferente, ou de fazer aparecer uma latinha, cumpriam a tarefa de detectar algum engenho explosivo e traiçoeiro. Logo atrás seguia eu, como de costume, ora prestava alguma atenção à picagem, ora me distraía com as cores vivas da mata, com algum chamamento de aves, com o esvoaçar do pensamento até uma ramagem na Europa, o poiso sonhado. No alto, o sol inclemente atingia-nos com raios escaldantes.
Seguiam-me cinco homens alinhados convenientemente, provavelmente com os sentidos na mata e os pensamentos nos braços das namoradas. Mas depois, um quase longo espaço, quebrava a homogeneidade do pelotão, até divisar um grupinho. Dei indicação para prosseguirem com atenção, que já os alcançaria. Troquei graçolas com os que passaram por mim, e deixei-me ficar à espera do grupo. Alguns momentos, e aproximou-se o alferes, acompanhado por três elementos que o ladeavam, mais dois que o seguiam de perto, todos em amena cavaqueira. Mais afastados ainda, vinham quatro ou cinco com ar de velhos cansados, e que fechavam a contagem.
Bonito grupo de combate, pensei. À aproximação dos primeiros interpelei o pessoal porque é que vinham a chatear o nosso alferes, em vez de terem cuidado com a progressão em linha e com distâncias adequadas. "
Vamos! A andar como deve ser!". Ainda ameacei umas biqueiradas naqueles cús manhosos e displicentes. O Lopes sorriu-me sem intervir.
Depois esperei pelos últimos e indignei-me com a bandalheira. Desculparam-se que os outros iam logo ali, e que os turras não se atreviam a meter connosco, como que a amenizar a situação, paleio que tinha o paradoxal efeito de me irritar. Com maus modos obriguei-os a seguirem-me para ocuparem a dianteira do pelotão.
Dias após, pela tarde, o alferes comunicou-me que não nos acompanhava para Tabassi, porque no dia seguinte teria que seguir para os reordenamentos. Depois passou a ser frequente não nos acompanhar e, até, não prevenir. Dava umas ordens ao pessoal, por vezes contrárias às que eu transmitia. Estas contradições e a sua ausência quase permanente, causavam algum mau estar e originavam conflitos que o pessoal explorava e eu tinha que resolver, por vezes a raiar o limite da paciência.
No meu diário registei várias vezes a crescente desorganização no seio do Foxtrot, e sentimentos antagónicos sobre o grupo. As coisas não corriam bem, decididamente.
Um dia, o ambiente azedou perante uma insistente imprecassão, relativa a uma contradição entre nós. Que cada cabeça, cada sentença, ou que cada um mandava pelo seu lado. Foi o transbordar do copo. Dirigi-me ao capitão que, inicialmente, quis desviar o assunto, adiar a resolução. Insisti que tinha que tomar uma atitude urgente, no próprio dia, que a situação era inaceitável para mim que, afinal, estava novamente só com o pelotão, mas com mais dificuldades no relacionamento. Até que o
Trapinhos, como que baralhado, enfadado e displicente, mas a querer livrar-se de mim, perguntou-me, mais ou menos nestes termos: "
Mas você não quer o alferes Lopes no pelotão?".
Respondi-lhe com a calma possível, que o alferes teria que fazer uma escolha, ou ficava nos reordenamentos sem interferir nos assuntos do pelotão, ou alinhava connosco, assumindo o comando e decidindo sobre a actividade e as pessoas, no sentido de harmonizar e homogenizar, no que me propunha dar colaboração. Comandante à distância é que não, dados os inconvenientes e incongruências já registadas.
Nesse dia o capitão referiu-me que o alferes era necessário para acompanhar as obras de reordenamento em curso em Amedalai, pelo que não voltámos a partilhar posições no Foxtrot. Ali se definiu o futuro.
Tive excelente cooperação, no que aos serviços no aquartelamento respeitava, na articulação e desempenho de funções, que me dispensava, a maioria das vezes, de andar a distribuir e controlar tarefas. Atingia-se a maturidade, e cada um sabia e assumia a sua responsabilidade perante o grupo. Os cabos passaram a ter um papel relevante e harmonizador. Eu passei a ter uma grande tranquilidade, com uma reserva de energia que extravasava para o grupo.
Movimento de pessoal no FoxtrotDesde o inicio da comissão registaram-se as seguintes baixas ao efectivo:
- O alferes Guerra, por motivos disciplinares;
- O Firmo Fernandes por motivo de doença, e igualmente o António Cró;
- O furriel Azevedo por ter manifestado incapacidade cardíaca, passou a trabalhar na secretaria, sem substituição no pelotão, mas com o meu acordo, porque tínhamos feito entre os furriéis um pacto no sentido de regressarmos juntos;
- O António Jesus por incapacidade cardíaca deixou o pelotão e passou a tomar conta da cantina.
- Entretanto, o alferes Lopes, como vem do texto anterior, também não foi substituído. Nesta ocasião começam a notar-se baixas frequentes por doença, e o pelotão actuava com o efectivo mais reduzido.
O PauleiroA alcunha deriva do local de nascimento e crescimento, o Paúl do Mar, pequena aldeia de pescadores que se estende sobre uma estreita plataforma de calhau, na costa oeste da Madeira, entre o mar e a escarpa alcantilada, sem outras saídas que não fossem o mar, ou uma vereda que galga a encosta quase vertical e extensa, de cujo cume, as casas lá em baixo parecem poder apertar-se nos dedos da mão. Hoje possui acessos viários que permitem a circulação de viaturas a motor.
Começou a lida da pesca ainda menino. Na época não se sentia necessidade de dar aos filhos educação escolar, pelo que o Alfredito brincava na água, interessava-se pela faina e, menino ainda, começou a ajudar o pai.
O Paúl do Mar, localizado na costa sudoeste da Madeira é uma vila piscatória tradicional
Foto retirada do site da Revista Madeira Live, com a devida véniaSó a tropa veio quebrar a rotina. Mas o menino fizera-se homem, magro e musculado, olhar vivo e curioso, com temperamento alegre e de trato fácil como convém aos homens do mar. Desempoeirado, arguto e ágil, o Pauleiro impunha-se pelas suas capacidades e camaradagem. A guerra não lhe metia medo, era como uma sucessão de vagas que haveria de passar, enfrentando-as de proa embicada.
A 2679 incorporou-o com destino à Guiné, e o Foxtrot deu-lhe conveniente acolhimento. Provavelmente deu ele mais ao pelotão, do que o pelotão a ele, tudo em doses equilibradas. Talvez se registe um empate. Mas o Pauleiro com a alegria que irradiava, com a aptidão para a mata e a voluntariedade mobilizadora dos primeiros tempos, distinguia-se e foi dos que mais contribuiram para a coesão e determinação do grupo.
A ele devo a vida, conforme terei que relatar em episódio mais tarde. E se com ele tive algumas poucas birras de teimosos, imediatamente as ultrapassávamos sem ressentimentos ou sequelas.
Acabou a tropa e rumou ao Curaçao em busca de melhores pesqueiros. Nessas costas marítimas derivou até ao Equador, onde constituíu família de cultura hispânica.
Julgo que é dono do seu barco. Telefonei-lhe pelo Natal há poucos anos, e atendeu-me a esposa, que em castelhano referiu que o Alfredito andava no mar, "
volverá al final de la semana". Quando lhe falei mais tarde, não se lembrava de mim.
A mãe vivia só no Paúl, perto de uma filha, mas tem filhos dispersos pelo mundo, da Austrália ao Equador, com quem mantém ténues laços através de esparsa correspondência.
Alfredito, provavelmente, ainda sonha em juntar o mundo, inspirado pelo mar e as estrelas do hemisfério sul.
Esta foto aconteceu no regresso de uma ida à lenha e, da esquerda para a direita, vêem-se: Gonçalves com a mortífera moto-serra; Rodrigues, o conhecido Mama-Sono; Santos, o manteigueiro que infelizmente já nos deixou; Pauleiro com a G-3, Faria, um dos nossos cabos; com a camisa mal abotoada e sempre bem disposto, o nosso condutor alcunhado se Zip; malmente ataviado e armado em Cisco Kid, cá o je, autor da prosa; por fim, com outra G-3, o França, também já retratado.
Foto: © José Manuel M. Dinis (2009). Direitos reservados.__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 30 de Julho de 2009 >
Guiné 63/74 - P4759: História da CCAÇ 2679 (22): Falando sobre Bajocunda (José Manuel M. Dinis)