1. Texto enviado por Mário Beja Santos à Associação de Comandos que lhe havia pedido para escrever um artigo a publicar na Revista "MAMA SUME"
Eu e os Comandos
por Mário Beja Santos
Fui alferes miliciano na Guiné, onde vivi ininterruptamente entre Julho de 1968 e Agosto de 1970. Contei toda esta história da minha comissão em dois livros publicados em 2008: “Diário da Guiné, Na Terra dos Soncó, 1968 – 1969“ e “Diário da Guiné, O Tigre Vadio, 1969 – 1970”, ambos publicados pelo Círculo de Leitores e a Temas e Debates. Durante 17 meses vivi no regulado do Cuor, como comandante dos destacamentos de Missirá e Finete. A minha principal missão era vigiar e garantir a navegabilidade do rio Geba, indispensável para a continuação da guerra. Comandei, na circunstância, um Pelotão de Caçadores Nativos e dois Pelotões de Milícias. Protegia o rio, emboscava, patrulhava e cuidava de centenas de civis, garantindo-lhes o abastecimento, a segurança, o médico, o professor para as crianças, a correcção nas práticas da justiça, ao lado do régulo.
A segunda etapa da minha comissão foi vivida no sector de Bambadinca, intervindo na área operacional, como comandante de colunas até ao Xitole ou Xime, patrulhando, destruindo canoas do inimigo, apoiando as tabancas em autodefesa, mas fazendo igualmente um pouco de tudo, desde de levar e trazer o correio, levar e trazer doentes, garantindo a segurança dos reordenamentos, protegendo a sede do batalhão num posto avançado infecto, para não dizer desumano. Continuei a combater ao lado dos meus caçadores nativos e na companhia de tropa africana, designadamente a Companhia de Caçadores 12 (foi esse o laço que me transportou, décadas depois, para o blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, onde deposito as minhas memórias e o meu indefectível amor àquela terra)
Serve esta apresentação para dizer ao leitor que combati quase sempre com tropa regular que eu apresentei nos meus livros como “alguns dos soldados mais valentes do mundo”, gente que confiou incondicionalmente em mim, a quem confiei missões espinhosas, esgotantes, destemidas.
Os meus soldados ensinaram-me muito, quer os nativos quer os metropolitanos: a crescer entre a solidariedade e a abnegação; e a não fugir ou adiar as missões diárias dos patrulhamentos junto ao Geba, tínhamos nos ombros a responsabilidade de tantas vidas. Eu sei que o leitor considerará inacreditável o que vou dizer: no mínimo dos mínimos, fazíamos 25 km entre Missirá e Mato do Cão, ida e volta, a qualquer minuto de qualquer hora do dia. Missirá ficou praticamente destruída em Março de 1969 e quando partimos, em Novembro desse ano, deixámos um quartel reconstruído, o maior esforço de toda a minha vida. Só foi possível porque contei com dedicação dos meus soldados, que faziam reforços, colunas de reabastecimento, emboscadas nocturnas, não direi sem um queixume (na época das chuvas cheguei a ter 40 por cento dos efectivos acamados) mas com uma elevadíssima capacidade de colaboração. Falo de homens que punham luvas brancas para hastear ou arrear a bandeira portuguesa no mastro três vezes destruído, três vezes renascido, enquanto lá estivemos juntos.
Não combati com os Comandos, dei militares de carácter e de grande valentia para as suas três companhias que se formaram na Guiné:
(i) primeiro, Zacarias Saiegh, meu furriel que comandava Missirá antes de eu chegar. Mantivemos uma relação difícil, mas assente no respeito mútuo, soube em primeira mão da sua decisão em integrar-se na 1ª Companhia de Comandos Africana, que se formou em Fá, e que nos coube proteger durante meses, do lado de cá do rio Geba. Foi fuzilado em 1977, em Porto Gole, nesse estranho drama que foram os fuzilamentos de uma intentona que, enquanto não houver provas, não passou de uma vil purga;
(ii) Mamadu Camará, que quando cheguei a Missirá era o 221, e uma noite, debaixo de fogo, pressentindo que a deflagração de uma morteirada inimiga me ia atingir, atirou-se sobre o meu corpo, tendo ficado com muitos estilhaços nas costas e pernas, foi brutalmente ferido no reencontro na região do Cantanhez, veio em 1972, é cidadão português;
(iii) Cherno Suane, o meu guarda-costas, o mais querido dos meus irmãos, que viveu o inferno do Cumeré, sujeito a prisão arbitrária e às mais horríveis sevícias, entre 1977 e 1980, consegui que viesse em 1992, é também cidadão português, preenche com resignação todos os anos papelada infernal para trazer o filho mais velho, até agora a burocracia delirante é mais forte que o reencontro familiar;
(iv) Queta Baldé, o mais precioso colaborador que tive na preparação dos meus livros, nunca vi memória como a dele, fugiu para o Senegal para não ser morto, em 1974, aqui o temos entre nós, vive na Amadora, tal como o Mamadu e o Cherno subsiste entregue a tarefas humildes para ter os filhos na faculdade;
(v) e Serifo Candé, que fui visitar a Biana, no leste da Guiné, em 1991, e que não acreditou que eu não o tivesse ido buscar para o trazer para Portugal, o Serifo é o meu remorso, é bem provável que eu tenha que voltar à Guiné e trazer este homem de modos tão gentis que nunca percebeu porque é que não volta a hastear, cheio de aprumo, uma bandeira verde rubra que ele prometeu defender até à morte.
Este foi o legado que deixei aos Comandos, este legado é uma das tragédias da minha vida, continuo sem saber aonde arrecadar o sofrimento destes homens que nem sempre puderam refazer o sentido das suas existências.
Deixei para o fim uma sentida homenagem ao meu instrutor em Mafra, já na especialidade de atirador de infantaria. Era pouco mais velho do que eu, um homem seco de carnes, um olhar azul firme e decidido, com uma expressão de rectidão e confiança em tudo o que dizia e fazia. Ensinava com desvelo, era convincente e de bom trato. Tinha uma arte de comunicar, imprimindo sabor, às matérias mais áridas. Ele ficou em Mafra, eu parti para Ponta Delgada, daqui regressei para formar batalhão, fui dado como “ideologicamente inapto para a guerra de contra-guerrilha, mormente no Ultramar Português”, e os meus superiores, à cautela, lançaram-me na rendição individual, acabavam-se assim os incómodos.
Voltei a ver o já então capitão Garcia Lopes num encontro espúrio em Bissau, ele estava nos Comandos, ouviu-o vibrar na descrição de um regresso de operação com os seus soldados feridos: “Custe o que custar, um Comando traz todos os seus camaradas, feridos ou mortos, nem que necessário seja dar a vida”. Guardei esta frase, dolorosamente já tinha trazido nas espáduas o Paulo Ribeiro Semedo, compreendi perfeitamente a mensagem e os sentimentos do capitão Garcia Lopes.
Gostava muito que esta lembrança chegasse aos ouvidos deste distintíssimo oficial. Aprendi na vida que marcamos os outros com uma simples frase, a rectidão de um gesto ou um sopro de coragem.
Os Comandos, por inerência, são gente exemplar na minha vida. Espero que percebam que tenho muito orgulho nestes meus soldados que partiram para outras guerras e que continuam meus compatriotas, heróis anónimos que ganham humildemente o que as pensões não dão para uma vida decente. Tão gente exemplar como aquele capitão Garcia Lopes que aproveitou um encontro espúrio em Bissau para me recordar que a camaradagem é mais exigente nas horas más que nas boas.
[Revisão / fixação de texto: CV/LG]