02-02-1974 - 10h00 -, O meu pelotão, que estava reduzido a 15 ou 17 unidades, e um pelotão de Madeirenses que nos tinha vindo reforçar recentemente, saímos para fazer contra-penetração no trilho de Lamel, numa acção motivada por informações recolhidas de que um dos quadros superiores, de maior nomeada do PAIGC - Luís Cabral -, ia passar ali para o interior da Guiné.
Ao fim de algumas horas de marcha, paramos para almoçar (uma ração de combate individual) e descansarmos um pouco entre as habituais conversas e algumas anedotas.
Findo este período deslocamo-nos pela picada até ao “alto de Lamel”.
Ao chegarmos lá, o primeiro homem da coluna - o Reis -, avistou um vulto suspeito aninhado na picada, que, aparentemente, estava a colocar uma mina.
Pousámos o equipamento que trazíamos, além do normal nestas saídas, e, de armas em punho, fomo-nos aproximando do local onde o Reis tinha avistado o tal suspeito. Este ao aperceber-se da nossa presença fugiu de imediato para o interior do mato.
Quando o Reis – o nosso homem da metralhadora HK-21 -, chegou ao local onde tinha estado o tal suspeito, estalou um “fogachal” medonho.
Abrigamo-nos rapidamente do fogo inimigo e respondemos de imediato do mesmo modo.
A nossa sorte nesta emboscada, foi o Reis andar sempre com a HK-21 limpa e lubrificada, coisa que eu sabia bem, pois quando passava na caserna do 2º pelotão via-o sempre a limpar esta sua atribuída arma, e eu rotineiramente perguntava-lhe: “Reis essa arma está bem limpa?”
Ele sorria e respondia invariavelmente: “Furriel está limpinha e bem lubrificada.”
A compensação deste trabalho dava agora os seus frutos, na reacção a esta emboscada, pois o Reis quando via os inimigos levantarem-se, para avançar em nossa direcção, disparava curtas e certeiras rajadas, obrigando-os a deitarem-se novamente, tendo abatido assim 2 ou 3 dos guerrilheiros atacantes.
A troca de fogo estava cerrada e começou a instalar-se a confusão.
Em determinado momento reparei que o homem das transmissões - o Marante -, havia deixado cair a antena do rádio AVP-1, sem se aperceber.
Avisei-o, apanhei a antena e entreguei-lha ao mesmo tempo que lhe gritei: “É a única hipótese que temos de contactar com o quartel!”
O PAIGC lançava em nossa direcção sucessivas granadas de RPG 2 e RPG 7, e, confesso, perante aquele cenário infernal só pensei que não ia sair vivo dali.
Para agravar o nosso estado psíquico e anímico, vimos a nossa força ficar substancialmente reduzida, já que o pelotão de Madeirenses, quando a emboscada rebentou, desatou a fugir em debandada pelo meio da picada fora, deixando-nos ali sozinhos em pleno combate contra um inimigo muito superior, quer pelo poder de fogo em cena, quer pelo número de activos que se deduzia estar ali em grande número.
Comecei a chamá-los e a insultá-los aos berros ferozmente, com todo os nomes feios e depreciativos de que me lembrei e possam estar a imaginar.
Apesar de toda a confusão instalada, notei que a tropa avançada do PAIGC estava a tentar envolver-nos atravessando a picada em posição de técnica de combate.
Disse ao homem do morteiro: “Martins, bate a zona para onde eles se estão a dirigir… rápido!
O Martins assim fez e como não obtivemos resposta, fomos retirando lenta e atentamente para o lado de Farim.
A dado momento só tínhamos 2 ou 3 granadas de morteiro de 60 mm, porque no início da emboscada a rapaziada começou a disparar, tudo o que tinha à mão, indiscriminadamente, sobre a mata sem ainda sequer terem avistado qualquer IN.
Como eu não tinha avistado nenhum alvo, também não tinha disparado qualquer tiro e até deu para dispensar 3 dos meus carregadores da G3 a três dos meus homens.
Mais ou menos a meio da emboscada, o 1º Cabo Ferreira, que nesse dia foi escalado para levar a bazuca, levou um tiro num pé e, em vez de rastejar até nós como mandam as “regras”, não o fez, tendo-se posto em pé, sendo logo alvejado com uma granada de RPG no peito, o que lhe provocou a morte instantânea.
Fomos obrigados a continuar a retirar para o lado oposto (Farim), com vários feridos graves, já que o inimigo estava a utilizar a táctica de envolvimento (vulgar meia-lua), cortando-nos a retirada para o nosso quartel.
Entrei então na picada de Lamel onde se cruzava o trilho, com mais dois ou três homens armados de G3, em posição de rajada.
Comecei a sentir o coração mais acelerado, pois sabia que se estivessem ali meia dúzia de “turras”, era o suficiente para nos apanharem à mão.
Rezando para que não fosse necessário, eu ia disposto a vender cara a minha vida se preciso fosse.
A certa altura chegou junto de mim um soldado com um buraco no braço esquerdo manifestamente originado por um estilhaço. Amarrei-lhe o meu lenço verde-preto dividido em diagonal, que usava habitualmente para me camuflar, a fim de lhe estancar o sangue e amparei-o segurando-lhe também a sua arma, porque a sua vontade era abandoná-la ali, dadas as terríveis dores de que estava a padecer.
Atravessamos o trilho de “Lamel” sem problemas, e atingimos a ponte do mesmo nome, que era o ponto de encontro das duas picagens vindas de Jumbembem e de Farim.
Fiquei preocupado quando cheguei à ponte de Lamel só com dois ou três soldados, pois não sabia da localização dos restantes.
O que seria feito do resto do pelotão? – perguntei-me.
Passados uns 10 a 15 minutos aparecem mais 4 ou 5, que me narraram uma história de arrepiar.
Contaram-me então, que não tiveram tempo de fugir para um lugar mais seguro e refugiaram-se numa grande cova natural, que existia na parte inferior ao lado da picada, e, ali anichados silenciosamente, ouviram os guerrilheiros do PAIGC, murmurando entre si, a aproximarem-se daquele local.
O que lhes valeu foi que eles iam tão obcecados para capturarem os nossos despojos (bornais, cobertores, etc), que largáramos na picada quando retiramos durante o confronto na emboscada, que nem deram por eles.
Quando eles acabaram de falar, gelou-se-me o sangue nas veias só de imaginar esta situação, porque caso tivessem sido detectados, ou teriam sido mortos, ou apanhados à mão. “Há gajos com muita sorte!” – pensei eu.
Finda a emboscada, saíram do quartel em nosso auxílio a CCAÇ 51 (que sofreu também uma forte emboscada), e o Grupo Especial de Milícias 322 (Jumbembem), que foi igualmente emboscado.
Enfim, aquela zona esteve toda a ferro e fogo… um autêntico inferno.
Mais tarde, chegaram finalmente reforços de Farim, tendo-nos escoltado (2ª Companhia do BCAÇ 4512), até ao nosso aquartelamento em Jumbembem.
Chegado ao quartel, continuava obcecado pela morte do 1º Cabo Ferreira, que, além de tudo o mais, era casado e deixou à sua esposa dois filhos para criar.
Este sensível e terrível facto, aliado a alguns remorsos e mau estar que eu sentia, porque uns dias antes eu tinha optado por castigá-lo com dois reforços, para evitar o seguimento de uma participação por abandono de um posto de vigia, se tivesse agravado numa punição superiormente agravada pelas nossas hierarquias, fez com que eu não conseguisse conter algumas lágrimas.
Foram as primeiras e as últimas que derramei na Guiné!
Foto 36 > Jumbembem > 1973 > Saída de um grupo em direcção de Lamel
Foto 38 > Jumbembem > 1974 > Estado em que ficou uma Berliet destruída por uma mina A/C, em Lamel
Foto 40 > Jumbembem > 1974 > Com uma metralhadora HK 21, que a dada altura passei a usar em substituição da G3